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    Denise Assis

    Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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    Um país distópico

    "Um país que, de fato, não dá conta dos filhos desse solo", escreve Denise Assis

    Bandeira do Brasil (Foto: Arquivo/ABr)

    Num Brasil distópico, o ministro da Defesa leva três comandantes das Forças Armadas para dentro do Palácio da Alvorada, a residência momentânea do presidente Lula, para coagi-lo a não alterar o programa de previdência do segmento militar e não promover os cortes que atingem aposentadorias e pensões das três Forças.

    A desculpa é que os militares cumprem uma carreira e que, se adiada a saída pela reforma, a aposentadoria dos aquartelados – eles que se matam pela promoção a general – ficará represada nos cargos de major e coronel, até a reforma ou a promoção.

    A conversa deu resultado. Dentre os projetos de Emenda à Constituição – PECs, que foram encaminhados ao Congresso, não constava o referente às mudanças na vida militar.

    A atitude do ministro foi imprópria, afrontosa e descabida, num momento em que, de alguma forma, vieram dessas Forças as ameaças de morte, por tiro ou envenenamento, ao presidente Lula. Tudo muito recente. A esta altura, vão recorrer à história dos CPFs, dizer que a visita foi dos CNPJs. Mas, convenhamos, seria de bom tom poupar o presidente da presença das Forças que, até outro dia, estavam querendo eliminá-lo.

    Nesse mesmo país distópico, o ministro da Fazenda anuncia uma série de filtros para dificultar o acesso aos benefícios sociais – porque todos nós sabemos, esperteza é o que não falta por aí –, e o governo anterior abusou bastante nesse particular, tentando a reeleição. De quebra, o governo, pressionado pelo tal mercado, deu uma tungada no ganho do salário mínimo e correu para colocar as medidas em prática, no que dizia respeito às providências possíveis. Por exemplo, encaminhar as PECs. Era preciso mostrar boa vontade no arrocho ao andar de baixo.

    Junto a isso, anunciou que seria viabilizada uma promessa de campanha do presidente Lula: a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais. Ao mesmo tempo, disse que seria dada uma mordida nos ganhos de quem aufere até R$ 600 mil por ano, considerados supersalários. Bem sabia o ministro que essa providência dependeria também de um Congresso recheado de parlamentares que ou ganham, ou defendem os que ganham essas quantias vultosas. Resultado: adivinhe qual providência foi adiada para sabe-se lá quando? A mordida nos ricos, é claro.

    Nesse país distópico, um governador opta por uma educação “cívico-militar”, expondo crianças e adolescentes a regras autoritárias e a uma doutrina que os leva diretamente a aspirar, quando crescerem, a ser um Kid preto.

    Num país distópico como o nosso, os Kids pretos recebem bons salários para estudar a vida toda, ter bons hospitais sem pagar caríssimos planos de saúde ou aluguéis exorbitantes e, no final, na conclusão do curso, escreverem dissertações que vislumbram uma guerra suja contra essa corja vagabunda que, como mostrou um vídeo produzido pela Marinha do Brasil, sob as bênçãos do seu comandante, vive na praia.

    O comandante, garbosamente, lançou a peça publicitária com coquetel, convidados das demais Forças em cerimônia solene e exibição do vídeo, abençoado por ele e pago, em última instância, por você, otário, que está aí sacolejando num ônibus rumo ao trabalho.

    Nesse país distópico, uma Força Especial, formada na cartilha de antigas lições, e que um dia escreveu uma dissertação com inspirações nazistas, tem o seu trabalho revelado. O que pregou esse Kid? Morrer pela pátria? Não. Formulou teorias de como eliminar o povo brasileiro, em hipotéticas “guerras irregulares”, e o descreveu como o seu principal inimigo. Para ele, todos comunistas, evidentemente.

    Num país distópico como o Brasil, o futuro presidente do Banco Central autônomo vem a público dizer que, se o presidente da República está reclamando dos juros altos, que aguarde até ele assumir. Nada de matar no peito a inflação e intervir no mercado para baixar o preço do dólar. Serão mais juros altos e olhe lá. (Dizem que foi caô para chegar bem ao cargo, mas vai saber...).

    Num país distópico como o Brasil, um governador institui, à revelia do ministro da Justiça, a pena de morte. Cobrado, diz que a farda dos seus policiais não foi feita para ser envergada por quem não respeita as leis. Mas de que lei estamos falando? A dele, cujo secretário de Segurança apregoa: policial que não tem pelo menos três mortes no currículo não merece estar na corporação. Às favas com a lei federal, onde está escrito que o cidadão faltoso deve ser preso e julgado por seu crime...

    Num país distópico como o Brasil, a luta de classes se dá dentro da Febraban, pelo ministro da Fazenda que, obediente, promete que, se os donos do sistema não estiverem satisfeitos com os resultados da política econômica, ela pode ser mais bem ajustada para que fiquem mais contentes.

    Num país distópico como o Brasil, um policial arremessa de uma ponte, como quem desova o lixo da lixeira, o corpo de um homem porque ele talvez não se enquadre na conta do Benefício de Prestação Continuada (BPC), não está servindo às fileiras militares, não ganha R$ 600 mil por ano e, como disse o historiador Murilo de Carvalho em uma entrevista para o jornalista Roberto D’Avila, certa vez, mora num país que não cabe no Estado. Pendurado nas bordas da sociedade, entre a ponte e a vala negra, ele é arremessado ao seu devido lugar: para fora do Estado. E, assim, vamos reformatando o orçamento, eliminando os que despencam das beiradas de um país que, de fato, não dá conta dos filhos desse solo. Um país distópico.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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