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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    Vamos parar de fingir que os EUA são uma democracia que funciona

    Uma democracia que funcione poderia facilmente livrar-se de Trump e dos seus sósias. Uma democracia fracassada e o liberalismo falido garantem a sua supremacia

    Donald Trump e Joe Biden (Foto: Reuters)

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    Artigo de Chris Hedges originalmente publicado no seu Substack. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

    Há uma desconexão fatal entre um sistema político que promete igualdade democrática e liberdade, enquanto executa injustiças socioeconômicas que resultam em desigualdades grotescas de renda e estagnação política.

    Resultado de muitas décadas de ações, esta desconexão extinguiu a democracia estadunidense. O contínuo despojamento do poder econômico e político foi ignorado por uma imprensa hiper ventilante que vociferou contra os bárbaros que estavam no portão – Osama bin Laden, Saddam Hussein, os Talibãs, ISIS, Vladimir Putin – enquanto ignoravam os bárbaros no nosso meio. O golpe em câmera lenta acabou. As corporações e a classe bilionária venceram. Não existem instituições, incluindo a imprensa, um sistema eleitoral que é pouco mais que suborno legalizado, a presidência imperial, os tribunais ou o sistema penal, que possam ser definidas como democráticas. Resta apenas a ficção da democracia.

    O filósofo político Sheldon Wolin, no seu livro 'Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism' chama o nosso sistema de “totalitarismo invertido”. A fachada das instituições democráticas e a retórica, os símbolos e a iconografia do poder do Estado não mudaram. A Constituição permanece sendo um documento sagrado. Os EUA continuam a se postular como campeões da oportunidade, da liberdade, dos direitos humanos e das liberdades civis, ainda que metade do país lute para manter-se num nível de subsistência, a polícia militarizada dispara e aprisiona os pobres com impunidade, e o principal negócio do Estado é a guerra.

    Esta ilusão coletiva mascara quem nós nos tornamos – uma nação na qual a cidadania foi despojada do poder econômico e político e onde o militarismo brutal que praticamos no estrangeiro é praticado aqui.

    Nos regimes totalitários clássicos, como a Alemanha nazista ou a União Soviética de Stalin, a economia era subordinada à política. Porém, sob o totalitarismo invertido, o reverso é verdade. Não há algumas tentativas, diferentemente do fascismo ou do socialismo de Estado, para atender as necessidades dos pobres. Ao invés disso, quanto mais pobre e mais vulnerável você é, mais explorado você é empurrado a uma situação da qual não há escapatória. Serviços sociais – de educação até cuidados com a saúde – são anêmicos, não-existentes ou privatizados para enganar os empobrecidos. Ainda mais devastados por uma inflação de 8,5%, os salários foram desvalorizados agudamente desde 1979. Os empregos, muito frequentemente, não oferecem outros benefícios, nem segurança.

    Você pode assistir a uma entrevista que eu fiz em 2014 com Sheldon aqui.

    No meu livro 'America: The Farewell Tour', eu examinei os indicadores sociais de uma nação com sérios problemas. A expectativa de vida nos EUA declinou em 2011 pelo segundo ano seguido. Houve mais de 300 tiroteios de massa neste ano. Cerca de um milhão de pessoas morreram por overdoses de drogas desde 1999. Ocorrem uma média de 132 suicídios a cada dia. Cerca de 42% da população do país é classificada como obesa, sendo um em cada 11 adultos considerados severamente obesos.

    Estas doenças do desespero têm raízes na desconexão entre as expectativas da sociedade por um futuro melhor e a realidade de um sistema que não provê um lugar significativo para os seus cidadãos. A perda de uma renda sustentável e a estagnação social causam mais do que aflição financeira. Como Émile Durkheim assinala no seu livro 'The Division of Labor in Society', esta rompe os laços sociais que nos tornam significativos. Um declínio em status e poder, uma inabilidade para avançar, uma falta de educação e cuidados de saúde adequados, e uma perda de esperança, resultam em formas aleijantes de humilhação. Esta humilhação alimenta a solidão, a frustração, a raiva e sentimentos de inutilidade.

    No seu livro 'Hitler and the Germans', o filósofo político Eric Voegelin desqualifica a ideia de que Hitler – talentoso em oratória e oportunismo político, porém pouco educado e vulgar – mesmerizou e seduziu o povo alemão. Ele escreve que os alemães apoiaram Hitler e as figuras “grotescas e marginais” que o cercavam porque ele corporificava as patologias de uma sociedade adoentada, assediada pelo colapso econômico e a desesperança. Voegelin define a estupidez como uma “perda de realidade”. A perda de realidade significa que uma pessoa “estúpida” não consegue “orientar corretamente a sua ação no mundo no qual vive”. O demagogo, que sempre é um idiota, não é uma aberração ou uma mutação social. O demagogo expressa o zeitgeist da sociedade.

    A aceleração da desindustrialização nos anos de 1970, como eu escrevo no meu livro 'America, The Farewell Tour', criou uma crise que forçou as elites dominantes a inventar um novo paradigma político – como explica Stuart Hall no seu livro 'Policing the Crisis'. Trombeteado por mídias complacentes, este paradigma mudou o seu foco, indo do bem comum para a raça, o crime e a lei e a ordem. Isso mostrou àqueles que estão passando por profundas mudanças econômicas e políticas que o sofrimento deles não deriva do militarismo desenfreado e da ganância corporativa, mas de uma ameaça à integridade nacional. O velho consenso que apoiou os programas do 'New Deal' e do Estado de bem-estar social foi atacado como empoderador da juventude criminosa negra, “as rainhas do bem-estar” e outros alegados parasitas sociais. Isto abriu a porta para um populismo falso, iniciado por Ronald Reagan e Margaret Thatcher – o qual, supostamente, defendia valores de família, a moralidade tradicional, a autonomia individual, a lei e a ordem, a fé cristã e o retorno a um passado mítico, pelo menos para os estadunidenses brancos. O Partido Democrático, especialmente sob Bill Clinton, se moveu firmemente para a direita até se tornar amplamente indistinguível do 'establishment' do Partido Republicano ao qual agora está aliado. O resultado foi Donald Trump e as 74 milhões de pessoas que votaram nele em 2020.

    De nada servirá – como fez Biden na quinta-feira passada, na Filadélfia – demonizar Trump e os seus apoiadores da maneira que eles demonizam Biden e os Democratas. Brandindo punhos cerrados, iluminado por tenebrosas luzes vermelhas e ladeado por dois fuzileiros navais dos EUA em uniformes de gala, Biden anunciou desde o seu palco dantesco que “Donald Trump e os republicanos do MAGA ('Make America Great Again') representam um extremismo que ameaça os próprios alicerces da nossa república.”

    Donald Trump chamou o discurso de o mais “cruel, odiento e divisivo discurso jamais feito por um presidente dos EUA” e atacou Biden como “um inimigo do Estado”.

    O ataque frontal de Biden amplia a divisão. Ele solidifica um sistema no qual os eleitores não votam pelo que querem, já que nenhum dos dois lados entrega qualquer coisa com substância, mas contra aquilo que eles desprezam. Biden não trata da crise socioeconômica, nem oferece soluções. Isto foi teatro político.

    A antipolítica se mascara de política. Mal acaba um ciclo de eleição inundado de dinheiro, começa o próximo, perpetuando aquilo que Wollin chama de “política sem política”. Estas eleições não permitem que os cidadãos participem no poder. Se permite ao público dar voz a opiniões sobre perguntas roteirizadas que são reembaladas por publicitários, pesquisadores de opinião, consultores políticos e propagandistas e retroalimentados para eles. Poucas são as disputas por cargos políticos, incluindo apenas 14% dos distritos congressuais, são considerados competitivos. Os políticos não fazem campanhas sobre questões substanciais, mas apenas sobre personalidades políticas habilmente fabricadas e guerras culturais emocionalmente carregadas.

    Os militaristas – que criaram um Estado dentro do Estado e que nos afundam em um fiasco militar atrás do outro, consumindo metade dos gastos discricionários – são onipotentes. As corporações e os bilionários – que orquestraram um boicote virtual dos impostos e evisceraram os regulamentos e a supervisão – são onipotentes. Os industrialistas – que escreveram os acordos comerciais para lucrarem com o desemprego e o subemprego dos trabalhadores estadunidenses e dos trabalhadores precarizados no estrangeiro – são onipotentes. As indústrias farmacêuticas e dos seguros – que operam o sistema de cuidados de saúde, cuja preocupação principal é o lucro e não a saúde, e que são responsáveis por 16% das mortes por COVID-19 reportadas no mundo todo, apesar de serem menos de 5% da população global – são onipotentes. As agências de inteligência – que executam a vigilância massiva do povo – são onipotentes. Os tribunais – que reinterpretam leis para despojá-las do seu significado original a fim de garantir o controle corporativo e escusar os crimes corporativos – são onipotentes. Por exemplo, os tribunais nos deram o 'Citizens United' que permite financiamentos corporativos ilimitados de eleições, alegando que isto defende o direito de fazer petições ao governo e é uma forma de livre expressão.

    Política é espetáculo, um carnaval espalhafatoso, no qual a constante disputa por poder pela classe dominante predomina nos círculos de notícias, como se a política fosse uma competição para ganhar um campeonato nacional. O verdadeiro negócio da dominação é oculto, executado por lobistas corporativos que escrevem a legislação, pelos bancos que saqueiam o Tesouro, pela indústria da guerra e por uma oligarquia que determina quem será eleito e quem não o será. É impossível votar contra os interesses da Goldman Sachs, da indústria dos combustíveis fósseis ou da Raytheon, não importando qual partido esteja no governo.

    No momento em que qualquer segmento da população, de direita ou de esquerda, se recusa a participar desta ilusão, a cara do totalitarismo invertido se parece com a face do totalitarismo clássico – como Julian Assange o está vivenciando.

    Os nossos senhores corporativos e os militaristas preferem o decoro de George W. Bush, Barack Obama e Joe Biden. Mas eles trabalharam intimamente com Donald Trump e estão dispostos a fazê-lo novamente. O que eles não permitirão são reformistas como Bernie Sanders, que possam desafiar, mesmo que de maneira morna, a sua obscena acumulação de riqueza e poder. Esta incapacidade de reformar, de restaurar a participação democrática e tratar da desigualdade social, significa a inevitável morte da república. Biden e os Democratas lutam contra o culto do Partido Republicano e a sua ameaça à democracia – porém eles também são o problema.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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