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Ricardo Nêggo Tom

Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

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Vinícius Júnior já é maior do que Pelé

A luta contra o racismo foi uma coroa que o rei do futebol não quis ostentar

Vinicius Junior (Foto: SUSANA VERA/REUTERS)

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Racismo não se desculpa, não se ignora, e com racista não se dialoga civilizadamente, porque racista não é civilizado. Partindo desses princípios básicos, a condenação inédita que a justiça espanhola impôs sobre três torcedores do Valencia que cometeram crime de racismo contra Vinícius Júnior, durante um jogo do campeonato espanhol do ano passado, foi pedagógica e emblemática. Para quem não se lembra, um grupo de torcedores do “Los murciélagos”, como é conhecido o time espanhol, começou a hostilizar o jogador brasileiro logo na chegada do ônibus do Real Madrid ao estádio do Valencia. Aos gritos de “Você é um macaco”, entre outras ofensas racistas, esses torcedores agiram criminosamente sob os olhos da polícia local que nenhuma providência tomou a respeito.

Durante o jogo, Vini Jr seguiu enfrentando a fúria criminosa dos torcedores racistas do Valencia, que continuavam a direcionar a ele os xingamentos de “macaco”, até que ele acionou o árbitro da partida para que providências fossem tomadas com relação a esses torcedores. Apesar dos avisos sonoros emitidos pelo sistema de som do estádio Mestalla, advertindo aos torcedores e solicitando que as ofensas raciais cessassem, os racistas continuavam eufóricos e incontroláveis. Nos momentos finais do jogo, Vini Jr se desentendeu com o goleiro adversário, tomou cartão amarelo, acertou o rosto de um zagueiro do Valencia, tomou uma “mata leão” de outro adversário, e acabou sendo expulso pelo árbitro após uma chamada do VAR. Ah! E o jogador branco que lhe deu o “mata leão” nem uma advertência sofreu.

Vinícius parecia só na sua luta contra a crueldade racista. Pouquíssimos jogadores de futebol se manifestaram em apoio a ele. Seus parceiros de seleção brasileira, incluindo o privatizador de praias Neymar, quando se posicionavam, era de forma protocolar e rasa. Pareciam não se incomodar com os crimes raciais cometidos contra um ser humano colega de profissão. Nem mesmo alguns companheiros de clube estavam dispostos a lutar com ele. Ainda que fosse para preservar as suas próprias dignidades da condição de cumplicidade por omissão ou descaso. Nada. Pelo contrário, alguns atletas o aconselharam a deixar isso pra lá e focar apenas no futebol e na boa grana que ele receberia ao final do mês para vender a sua honra, dignidade e origem étnica para os racistas. Afinal, alguém já havia feito isso e se consagrado o rei naquele esporte.

Se Pelé e Edson tivessem tido a consciência racial e social de Vini Jr, eles teriam sido deuses de uma raça e não reis de uma falsa humanidade que se entretém relativizando a dor e o sofrimento do outro. Assistindo a uma entrevista dada por “eles” ao antigo programa “Vox Populi”, da TV Cultura, em 1977, onde um espectador branco o questiona sobre ele ser visto como um “preto de alma branca”, me deparei com a resposta de um homem preto aculturado e apegado ao título de rei que o futebol lhe conferiu. Ele inicia a sua resposta dizendo que no Brasil existia mais preconceito social do que racial, e compara esse preconceito ao que sofria os negros nos USA. A partir daí a coisa só piora quando ele diz que brancos e negros no Brasil são vistos com igualdade, e que bastava se comportarem bem para que fossem bem julgados pela sociedade. Vamos “revelar” pelo fato de que ainda não se falava sobre racismo cordial e mito da meritocracia naquela época.

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Questionado por uma espectadora preta sobre a sua ausência de posicionamento nas questões raciais (já cobravam isso dele em 1977) e indiferença com a luta por igualdade dos pretos como ele, Pelé respondeu que sempre foi da paz e não precisava erguer a bandeira da luta, porque, na sua visão, poderia ajudar como o preto que tem permissão para entrar em qualquer lugar. Citando com orgulho as suas idas à “cortina de ferro”, na antiga União Soviética e na China Comunista, e o prêmio de “Cidadão Mundial” oferecido a ele pela ONU, “se a mocinha aí não sabe”, se referindo a espectadora preta que o questionou, e enfatizando que “não é qualquer um que recebe um prêmio como este”. Ou seja, evocou a sua majestade futebolística que, na verdade, exaltava apenas a ele mesmo como homem preto, para marcar o seu posicionamento. Pelé ainda disse que não precisou mudar de cor para ser premiado pela branquitude, e disse abertamente que não queria dividir as raças se posicionando contra a opressão que a sua sempre sofreu historicamente, porque ficaria mal com os brancos e “não poderia fazer mais nada”. Perderia a majestade, talvez?

Comparar a luta antirracista com filiação partidária foi outra bola fora que o maior atleta do século deu na mesma entrevista. “Depois que você escolhe um partido, o outro sempre fica com raiva”, disse ele. Algo que Vini Jr nem considerou ao bater de frente com a Federação Espanhola, com colegas de profissão e com praticamente a maior parte do meio futebolístico. Tudo isso sem ser “Rei”, sem ser considerado o melhor jogador de todos os tempos e sem deixar de ser da paz. Certamente, Vini Jr, ao contrário de Pelé, entende que não há vantagem nenhuma em ser falsamente adorado por racistas, sejam eles cordiais ou declarados, e que a luta contra o racismo, ou contra qualquer outro tipo de preconceito, não se resume às conquistas individuais de ninguém. Se a coletividade não estiver sendo coroada, todos os membros do grupo continuam sendo inferiorizados na origem e na essência. O ego de Pelé, ou do Edson, não foi capaz de perceber isso. A “coroa” posta em sua cabeça deve ter afetado o funcionamento do cérebro.

Pelé parou uma guerra servindo de entretenimento para os opressores, e não como salvação para os oprimidos. Tanto que o conflito separatista na Nigéria teve sequência após a exibição do Santos por lá, em 1969, quando foi atribuído ao rei esse grande “milagre”. Se Pelé divertiu, Vini Jr está conscientizando. Por esse motivo, ele já é maior no meio do futebol e na sociedade. Lutar praticamente sozinho por justiça e fazer com que três racistas sejam presos num país europeu e culturalmente racista, não é para qualquer rei, digo, qualquer um. Se Vini Jr tivesse nascido cinquenta anos antes, poderíamos não ter alguns títulos mundiais no futebol, mas teríamos tido uma representatividade mais engajada na luta contra o racismo e a violência sofrida pelo povo preto no Brasil. Se Pelé quis ser amigo, Vini Jr prefere ser “algoz de racistas”. Um termo que pode sugerir vingança, mas que apenas desabafa o desprezo, a inferiorização, o deboche, o ódio e a violência que recebemos da branquitude ao longo da história. Uma dor existencial que quem sente, não deve se preocupar com as palavras utilizadas para descrevê-la. Vítimas deles é que não continuaremos a ser. Fogo!

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