Vitória de Massa mostra que o povo argentino recusa o fascismo
"A disputa está longe de ser resolvida, mas o país respira um ar menos poluído que a gritaria de extrema direita que parecia dominar", diz PML
Com seu figurino de falso rebelde típico, onde cabelos desgrenhados e modos malcriados tentam encobrir uma versão contemporânea do fascismo Bolsonaro, Gabriel Milei foi o grande perdedor do primeiro turno das eleições argentinas. Apontado como concorrente imbatível, comprovou-se ao longo da apuração que a verdade era outra.
Por trás de um comportamento repulsivo e ameaçador para a democracia da segunda economia do continente, com um padrão de vida ainda respeitável sob vários aspectos, Milei já fazia força para não ser expelido da rodada final, numa escolha de valor estratégico na definição dos destinos da América Latina.
Ainda que tenha garantido uma chance de virar o jogo na segunda rodada, risco que jamais pode ser descartado de modo, Milei saiu da primeira fase da campanha como o maior derrotado.
A disputa está longe de ser resolvida, mas o país respira um ar menos poluído que a gritaria de extrema direita que parecia dominar o ambiente na véspera. Ao recordar, mais uma vez, a indispensável lição democrática de que nenhuma eleição está resolvida antes da caminhada do povo até as urnas e a contagem de cada voto, o primeiro turno argentino permite algumas reflexões indispensáveis. Classificado como carta fora do baralho pela maioria dos supostos sábios da análise política de Buenos Aires, a partir de agora as conversas para a formação de alianças para vencer o segundo irão convergir para a campanha de Sérgio Massa, atual ministro da Economia, que cravou uma vantagem de 6 pontos sobre o ex-favorito. Tratado como carta fora do baralho pelo conjunto da velha elite argentina, que tentava abrir um segundo turno monopolizado por fatias mais ou menos canibalizadas da direita argentina, nem de longe a ascensão de Massa na reta final pode ser atribuída a seu desempenho à frente da Economia.
O país enfrenta uma conjuntura terrível de salários em baixa, desemprego em alta e informalidade nas alturas. Num país à beira do abismo social e político, a explicação para as urnas deste domingo sugere que a campanha eleitoral assistiu, mais uma vez, a um reencontro do povo argentino com a herança política de Juan Domingo Perón e seus seguidores mais empenhados. Foi ali, num período que se inicia em 1946 e sobrevive, com avanços, recuos, muitos solavancos e tragédias, que o peronismo firmou-se como um projeto político de apoio popular único, animado pela ideia de soberania nacional, crescimento econômico e distribuição de renda. Mantendo-se em posição discreta ao longo do primeiro turno da campanha presidencial, num comportamento que dificilmente poderá manter na segunda fase, a campanha de Sérgio Massa já abriu caminho para as novas gerações.
Num ritual que diz muita coisa, coube a Axel Kicillof, ministro da Economia entre 2013 e 2015, no segundo governo de Cristina Kirchner, fazer um discurso decisivo numa ocasião fundamental -- o comício de encerramento da campanha de 2023 -- numa atuação que resume o conflito apurado nas urnas de ontem. Adepto declarado do pensamento neokeynesiano, corrente progressista do pensamento econômico nas universidades do mundo inteiro, governador de uma província onde residem 15 dos 47 milhões de argentinos e argentinas, Kicillof fez um apelo enérgico ao crescimento, a distribuição de renda e a defesa dos mais pobres -- os célebres "descamisados", que há décadas ocupam o lugar de fiel da balança da política argentina.
Também fez uma defesa enfática do papel do Estado, numa conjuntura onde o adversário principal falava em extinção pura e simples e outros concorrentes murmuravam idéias para amputar o serviço público de várias funções e responsabilidades. O resultado seria visto dois dias depois. O eleitorado da província de Buenos Aires, que abriga o maior eleitorado do país, deu 16% dos votos às palhaçadas fascistas de Milei, reservando 23,5% para o peronismo de Kicillof e Sergio Massa. (A primeira colocada, a conservadora Patricia Bullrich, que ficou com 28% dos votos, terá seu eleitorado esquartejado no segundo turno).
A disputa está longe de ser resolvida, não custa lembrar. Mas o oxigênio político produzido pelo primeiro turno parece mais saudável do que a poluição doentia que infestava o ambiente até a véspera.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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