'Brasil não quer comemorar uma vitória sozinho', diz ministro do Combate à Fome sobre urgência de ações globais
Segundo o ministro Wellington Dias, "quando um país melhora, os outros países olham e os que passam fome e estão na pobreza correm para onde está melhor"
Leonardo Fernandes, Brasil de Fato - A Aliança Global Contra a Fome foi lançada em julho deste ano, durante uma cúpula ministerial do G20, no Rio de Janeiro. Sob a presidência do Brasil à frente do bloco das 20 maiores economias do mundo, a iniciativa está orientada pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, que pretende acabar com a fome no mundo até 2030.
A menos de um mês da 19ª Cúpula de Chefes de Estado do G20, também no Rio de Janeiro, o Brasil de Fato conversou com exclusividade com o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias.
Na entrevista, o ex-governador do Piauí revela que a meta do Brasil determina um prazo mais curto: acabar com a fome no país até 2026, quando finaliza o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Eu estou bastante animado, mas repito, o Brasil não quer comemorar uma vitória sozinho", afirma Dias, reforçando a importância de ações de integração entre os países.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Ministro, o Brasil trouxe para a centralidade do G20 o tema da segurança alimentar, a partir do lançamento da Aliança Global a Fome, em julho. Como têm sido, de lá para cá, as conversas para adesão dos países a essa proposta, e como ela deve chegar à reunião dos chefes de Estado em novembro?
Wellington Dias: Quando a gente estava encerrando o século passado, nós tínhamos um momento muito bom do mundo. Eu sempre lembro dos anos 2000. Uns diziam que o mundo ia acabar, mas tinha toda uma esperança e responsabilidade para a entrada de um novo milênio. Foi nesse ambiente que nasceu o diálogo para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [ODS], em 2015. E a meta era que 15 anos depois, em 2030, nós pudéssemos alcançar um mundo melhor. E um mundo melhor começava com a responsabilidade da meta 1, que era erradicar a pobreza, a meta 2, o ‘fome zero’, e a gente tinha a meta 13, que já era a contenção das mudanças climáticas, para citar aqui três que o presidente Lula coloca como decisivas, que se tornaram uma questão de vida ou morte.
Então eu conto isso para dizer que além de cuidar do Brasil, o presidente Lula propôs em Nova Déli [na Índia] que os países mais ricos, que historicamente só tratavam da pauta dos ricos, pudessem também trabalhar com responsabilidade a pauta dos mais pobres. O combate à fome, combate à pobreza. Foi criada uma força-tarefa e aqui, coordena, como presidente do G20, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que cuida da tributação dos mais ricos para que se tenha dinheiro para os mais pobres, e a parte do acordo para as dívidas. As dívidas com juros altos dos mais pobres estrangulam e impedem o crescimento.
Cabe a mim, pelo Ministério do Desenvolvimento Social, a Força-tarefa da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, junto com o ministro Mauro Vieira [das Relações Exteriores], com um conjunto de outras áreas do governo, da sociedade, trabalhar de forma participativa. Eu estou animado. São 193 países membros da ONU, cerca de 70 países são os mais desenvolvidos, 123 são os países em desenvolvimento. Cada país faz o plano nacional. No Brasil é o plano Brasil sem fome, é o plano de redução da pobreza, é o plano da promoção da dignidade. Esse é o plano que estamos trabalhando desde o ano passado.
O que o Brasil defendeu e foi aprovado é: não podemos trabalhar de forma separada fome e pobreza, e ainda temos que acrescentar a promoção da dignidade. [O combate] à fome é um passo, mas se não tirar da pobreza, você vai ter que sustentar pelo resto da vida, transferindo renda, com alimento, e isso não traz dignidade, mas também, a pobreza, a fome não se resolve só com renda e alimento. Precisa da moradia. Por isso, o Minha Casa, Minha Vida no Brasil precisa ter energia, ter comunicação, água potável, educação com acesso às pessoas, podendo acessar a educação, serviços de saúde. Ou seja, são 46 programas integrados ao Cadastro Único com a rede de assistência social no Brasil.
Eu digo isso para que se entenda que agora em novembro vamos ter a cúpula. São os chefes de Estado do G20 que manifestam uma posição de apoio e compromisso de fazer o seu plano, assim como o Brasil já começou o ano passado a executar, e os países desenvolvidos ajudarem outros países com conhecimento.
Nesse sentido, o que o Brasil tem a contribuir com o mundo?
Um país como o Brasil [pode] colocar a Embrapa, a Fiocruz, o próprio MDS com as suas equipes, as suas experiências, a serviço de outros países e ajudar financeiramente. Vamos nos reorganizar, assim como outros países, direcionando para esse objetivo do combate à fome e à pobreza. É isso que a gente quer de cada país. Então eu estou animado que a gente deve chegar na aliança já com várias adesões.
Eu estive agora em Roma, discutindo não só com países da Europa, mas países do mundo. Estive em Nova York, com o presidente lá na Cúpula do Futuro, que também vai na direção da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Também abri um diálogo para ter uma coordenação dos empresários e uma coordenação dos parlamentos do mundo. Esse é o sentido da Aliança.
Eu acredito que o grande erro do mundo é que se trabalhou ações pulverizadas. Faz lá na Etiópia, lá em Camarões, ou em um determinado país, uma agenda ali espontânea, ajuda ali uma comunidade a ter um projeto agrícola, ajuda outra comunidade a melhorar a escola, mas não é um plano estrutural para aquele país. Agora, a gente diz: ‘precisa da participação do Estado soberanamente. Cada país sabe os seus problemas e o que precisa. Ele vai dizer o que ele pode’.[Por exemplo], eu recebi esses dias vários ministros de Camarões que queriam o apoio do Brasil para o programa de alimentação escolar. O Brasil se propôs [a ajudar] e vamos trabalhar junto com Camarões, assim como outros países.
Ministro, o Brasil chegou a sair do mapa da fome e retornou a ele menos de uma década depois. Além das ações de assistência, quais medidas estruturantes o senhor destacaria para evitar que isso ocorra novamente?
Numa ação como essa de alimentação escolar, por exemplo, nós temos o combate à fome com café da manhã, merenda, almoço. Se a escola é de tempo integral, a tarde novamente tem o lanche e só depois volta para casa. Ou seja, menos despesa na casa dos mais pobres, mas também alimento saudável que é dado na escola. Esse alimento é comprado da agricultura familiar, gera emprego, renda, atividade econômica. O dinheiro circula. O país manda o dinheiro pra escola e a escola paga aos agricultores. Isso impulsiona também a economia.
Outra medida são as ações com transferência de renda como Bolsa Família, é um dinheiro que a gente faz chegar através do cadastro das pessoas em situação de extrema pobreza, quem tem renda muito baixa. Aquele dinheiro, ao chegar, permite àquela família acessar, comprar alimento ali onde vive. O dinheiro circula na feira, no mercadinho, e gera um fator de desenvolvimento.
Transfere renda, mas também tem obrigações. Obrigação com a saúde, obrigação com a educação. Aquele garoto que recebeu o primeiro cartão do bolso do Fome Zero, o Natanael, na época tinha 8 anos. Agora é um advogado casado com uma advogada, já numa família de classe média. 64% da geração do Natanael saiu da pobreza e não voltou mais, nem com a pandemia.
Então, é estruturante, é forma segura, é isso que queremos para o mundo. O Brasil quer comemorar, e não só em 2030, o presidente Lula é duro comigo: ‘Eu quero, neste mandato, o Brasil fora do mapa da fome’. Então a equipe aqui, muito competente, dedicada, trabalha para a gente chegar em 2026 e poder ter um diploma que diga 'Brasil fora do mapa da fome’, reduzindo pobreza e levando muitas pessoas para a classe média.Eu estou bastante animado, mas repito, o Brasil não quer comemorar uma vitória sozinho. Quando um país melhora, os outros países olham e os que passam fome e estão na pobreza correm para onde está melhor. Esse processo de desorganização migratória tem a ver com guerras. Agora estamos recebendo pessoas do Líbano e já cuidamos de 1300 famílias. A gente organiza as condições de uma vida digna, assim como queremos que 8 milhões de brasileiros que estão em outros países também sejam bem tratados.
E quais outros programas estão sendo repensados para promover de fato uma mudança estrutural na vida das pessoas mais pobres?
O programa Luz Para Todos começou lá em 2003 e prossegue. Enquanto tiver alguém onde não chegou a energia, nós vamos chegar lá. Estamos alcançando os últimos 500 mil que não tinham energia. Agora também é a internet Onde não chegou ainda, estamos trabalhando para chegar. Na habitação, nós queremos alcançar 2 milhões de moradias, com prioridade aos mais pobres. Onde não chegou ainda a Farmácia Popular, o Auxílio Gás, a Tarifa Social de energia, precisa chegar. Também garantir o pé de meia para os estudantes não desistirem, para poder terminar o ensino médio, chegar a uma universidade.
Recentemente houve modificações no programa Bolsa Família, certo? Qual o objetivo?
Estamos querendo tirar pessoas da informalidade. As pessoas precisam saber, é estrutural o que eu vou lhe dizer. O Brasil criou um programa que, quando alguém entra no cadastro, só sai por cima. Ou seja, assinar a carteira de trabalho, ter um CNPJ para um pequeno negócio não é mais razão, como era no governo Bolsonaro, para perder o benefício.
Agora não. Só sai do Bolsa Família se sair da pobreza. Uma família de cinco pessoas, por exemplo, precisa alcançar cinco vezes meio salário mínimo, que é R$ 706. Ou seja, é preciso alcançar uma renda acima de R$ 3.530 naquela família de cinco pessoas para sair do Bolsa Família, porque saiu da pobreza.
Este mês, para ter uma ideia, cadastramos mais 400 mil famílias. Nós estamos falando que cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas que estavam passando fome, a gente deu a mão e trouxe para o Bolsa Família. Olha a notícia boa: 488 mil famílias evoluíram de renda e saíram da extrema pobreza, mas não saem do Bolsa Família. Recebem o salário do negócio e metade do bolsa família, e 295 mil saíram da pobreza, ou seja, assim como essa família de cinco pessoas atingiu mais de R$ 3.530 de renda, algumas indo para a classe média. Já são próximos de 3 milhões o número de pessoas que saíram da extrema pobreza do ano passado para cá. Eu estou falando de famílias. Multiplique por cerca de três vezes. Então eu digo que o Brasil está no caminho certo.
Aqui no Brasil, em 2023, tiramos 24,4 milhões da fome. Tivemos a redução da extrema pobreza para o mais baixo nível da história, que significa alcançar o mais baixo índice de desigualdade medido pelo índice Gini, que alcançou 0,490. E por que? Porque melhorou a renda. A renda de todas as pessoas cresceu 11,5% e a renda dos mais pobres cresceu 38,6%. E não só transferência de renda, como o Bolsa Família e o BPC e outros programas, mas também pela renda de trabalho.
Quando falamos em acesso a alimentos, é preciso também discutir a qualidade deles. Hoje, há um intenso debate sobre a necessidade de banir alimentos ultraprocessados, com baixíssima qualidade nutricional e muitas vezes contaminados pelo uso excessivo de agrotóxicos. Isso está na agenda do governo?
Nós tivemos uma grande vitória por ocasião da reforma tributária que o ministro Fernando Haddad, orientado pelo presidente Lula, coordenou. Eu trabalhei na coordenação na área social e aprovamos pela primeira vez no Brasil [o entendimento] que o alimento saudável é parte do direito à alimentação. A alimentação no Brasil é um direito constitucional. E agora não só comida, mas alimento saudável.
A cesta básica também foi reformulada para que também tenha esse conceito de alimentação saudável. Caberá agora, na finalização da reforma, a política de impostos sobre super processados, sobre alimentos que cientificamente forem comprovados como prejudiciais à saúde. Porque a gente cuida da fome, mas cuida também da obesidade, da saúde. Junto com a ministra Nísia Trindade, a gente olha o ser humano de forma integral, desde a gestação até a melhor idade, até a condição de idoso, idosa, para que tenha uma vida saudável, para que se aumente a expectativa de vida.
Outro tema fundamental para o povo brasileiro, e que tem uma relação direta com o enfrentamento à fome e às desigualdades, é o acesso à terra. É possível falar em combate à fome sem abordar o tema da alta concentração da terra no Brasil?
A terra é fundamental. Mais ainda agora, quando a gente tem esses impactos das mudanças climáticas. Veja o que aconteceu com o Rio Grande do Sul. Olha o que acontece agora na Amazônia, a gente vivendo a seca, uma situação dramática, não mais apenas no Nordeste. É também o Sudeste, o Centro-Oeste e o Pantanal pegando fogo. Então é uma responsabilidade grande. E estamos trabalhando a regularização fundiária rural e urbana.
Regularizar terras na cidade também é democratizar a cidade, regularizar propriedades rurais também é democratizar o campo. E que são terras de indígenas, terras de quilombolas. Como é que o Estado entra para proteger os que precisam de proteção? Muitas vezes grileiros que podem pagar escritórios caríssimos de advocacia, que têm suas articulações, desequilibram com os pequenos. Aí é preciso chegar a Advocacia Geral da União, a Defensoria Pública, de maneira integrada com os estados, com municípios, para a gente garantir ali a democratização da terra.
O senhor tocou no tema das guerras e conflitos armados pelo mundo. Segundo a ONU, quase 100% da população da Faixa de Gaza vive agora uma situação de insegurança alimentar em algum nível. Além disso, os países mais ricos têm direcionado seus orçamentos para a manutenção desses conflitos. O senhor acredita que essa conjuntura internacional possa vir a prejudicar a pauta do combate à fome?
Até aqui, tem tido a maturidade dos países. Eu pude conversar com a Rússia e com a Ucrânia e todos são a favor da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, e querem apresentar seus planos. Até porque a guerra gerou fome e pobreza nesses países. Israel, Palestina, Líbano, Jordânia, toda aquela região, a Faixa de Gaza, nós temos momentos dramáticos. Eu tenho participado aqui no Brasil na dura defesa de que temos que ter o respeito aos tratados da ONU para, por exemplo, que se permita a entrada de alimentos, de medicamentos, daquilo que são necessidades dos seres humanos.
Nós estamos falando de crianças, de mulheres, de idosos, de pessoas. E o Brasil é um país que sempre preservou uma relação de paz com o mundo. Somos um povo irmão dos povos desses países. Nós temos aqui, independentemente das divergências que possamos ter, a defesa dos direitos humanos. O presidente Lula muitas vezes é pouco compreendido por sustentar que temos que ter aqui uma relação na busca da paz, e não da guerra pela guerra. A posição do Brasil é de garantir que se tenha as condições de paz, e sim, são 33 regiões do mundo em situações de conflitos, com muitas mortes. E em todos eles, situações de crescimento da fome e da pobreza.
Há necessidade de ter um tratamento diferenciado. Por isso que o presidente Lula defende uma nova governança da ONU. A ONU, quando criou o Conselho de Segurança, quando criou os vários conselhos, era um mundo completamente diferente do mundo atual. Não tem, por exemplo, lá nesses conselhos, a América Latina e o Caribe. Não tem a presença de países da África, de países árabes. Ou seja, há necessidade de se recompor uma governança que seja legitimada, que não tenha um país que vete, que seja com diálogo, mas com a coragem de ter a paz como prioridade e não a guerra. De ter ali a condição, de apoio efetivo, para tirar pessoas de situações como essa da faixa de Gaza. Como é que a ONU não é capaz de colocar a força necessária para alimentar as pessoas que ali estão? Como é que não se coloca ali a oportunidade de um diálogo para a paz? Seja nessa região da faixa de Gaza, seja na Ucrânia.
A matança, em qualquer lugar do mundo, recebe o repúdio do Brasil. E mais do que isso, a posição clara, no sentido de ao invés de colocar dinheiro para mais armamento, dinheiro para ampliar a guerra, nós temos que encontrar as condições de investimentos para a paz. Qual a origem desse conflito? Ou seja, por que a gente não busca respeitar os tratados existentes? E isso causa uma insegurança para o mundo.
Está lá um dos princípios da FAO: a fome do meu país não é só a fome do meu país, ela, a fome, é também uma insegurança para todo o mundo. Onde tiver alguém correndo o risco, seja em razão da falta de alimento, de medicamento ou seja pela violência que ali é praticada, é um dos nossos. É um ser humano que a gente tem que proteger. O Brasil vai seguir com essa posição: de um lado, uma política de paz, do outro lado, conter as mudanças climáticas, e do outro lado, ter a prioridade da pauta do combate à fome e à pobreza. Claro, olhando para a saúde, para a educação, olhando para o desenvolvimento.
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