Intercept esclarece que expressão ‘estupro culposo’ não foi utilizada em processo; MP também nega uso do termo
Site The Intercept Brasil diz em atualização sobre o caso Mariana Ferrer que a expressão ‘estupro culposo’ foi utilizada "para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo". Em nota, o MP-SC também negou que a expressão tenha sido utilizada nas alegações finais ou na sentença do juiz
Por Sérgio Rodas, no Conjur - O Ministério Público de Santa Catarina afirmou, nesta terça-feira (3/11), que não requereu a absolvição do empresário André de Camargo Aranha com base no argumento de que ele praticou “estupro culposo” contra a influencer Mariana Ferrer. Na alegações finais do processo, a promotoria também não usa o termo. O pedido para que Aranha seja inocentado é fundamentado na falta de provas sobre eventual dolo em sua conduta. Sem isso, não há o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, parágrafo 1º, do Código Penal).
A 3ª Vara Criminal de Florianópolis absolveu Aranha, com base no princípio in dubio pro reo, por entender que a acusação de estupro só foi baseada nos relatos de Mariana e sua mãe. O juiz Rudson Marcos afirmou que não ficou provado que a influencer estava alcoolizada ou sob efeito de droga a ponto de ser considerada vulnerável e não consentir com o ato sexual por não ter capacidade de oferecer resistência.
O site The Intercept Brasil afirmou, em reportagem publicada nesta terça, que o promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, pediu, e o juiz aceitou, a absolvição de Aranha pelo fato de ele ter cometido “estupro culposo”.
“Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto ‘intenção’ de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que ele cometeu ‘estupro culposo’, um ‘crime’ não previsto por lei. Como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido”, disse o texto do Intercept.
O MP-SC afirmou, em nota, que “não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro”.
De acordo com o MP-SC, não ficou demonstrado que houve “relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência [Mariana Ferrer], ou, ainda, que a outra parte [André Aranha] tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime”.
“Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de ‘estupro culposo’, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável”, destacou o MP-SC.
Expressão ausente
Nas alegações finais do processo, oferecidas em 10 de agosto, o promotor Thiago Oliveira também não pede a absolvição do empresário com base na alegação de que ele teria praticado “estupro culposo”, e sim com o fundamentado de que não ficou provado que ele agiu com dolo. Sem isso, não há crime, analisou.
O integrante do MP-SC disse que Mariana Ferrer, logo antes do ato, “estava com vestes ajeitadas, de pé, conseguia caminhar sem socorro, não apresentava troca de palavras e, portanto, não aparentava estar incapaz de resistir ao interesse do acusado”.
Dessa maneira, ressaltou Oliveira, não há indicação de que Aranha agiu com dolo — isto é, com consciência de eventual vulnerabilidade da influencer. Assim, destacou, não é razoável presumir que o empresário soubesse ou devesse saber que a mulher não desejava a relação sexual.
Nesse cenário, segundo o membro do MP-SC, deve ser aplicado o erro de tipo essencial (artigo 20 do Código Penal). Em tal situação, há a exclusão do dolo do agente, embora exista a possibilidade de condenação por conduta culposa. No entanto, o estupro de vulnerável só admite a modalidade dolosa, e não a culposa, apontou Oliveira. Portanto, se o suspeito não agiu com dolo, não há crime.
Se houve recusa de Mariana, foi após a relação, quando ela disse, em mensagem enviada para uma amiga, que não queria “esse boy” ou quando, já em casa, disse não ter consentido em praticar qualquer tipo de ato sexual, ponderou o promotor.
"Desse modo, não obstante haja a comprovação da ocorrência de conjunção carnal e de atos libidinosos, não há, nos autos, qualquer comprovação de que o acusado tinha conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima para resistir a sua investida”.
Relatos de testemunhas
O juiz Rudson Marcos também não fundamentou a absolvição de André Aranha na tese de que ele cometeu “estupro culposo”.
Na sentença, o juiz afirmou que, para a configuração do estupro de vulnerável, é necessário que a vítima não tenha condições físicas ou psicológicas de oferecer resistência à investida sexual e que haja dolo na conduta do agressor e ciência da vulnerabilidade do alvo.
O julgador mencionou trecho do livro Direito Penal esquematizado, volume 3: parte especial, artigos 213 ao 359-H (Método), de Cleber Masson. Na passagem, Masson diz que a vulnerabilidade tem natureza objetiva. Dessa maneira, a pessoa é ou não vulnerável se reunir ou não as peculiaridades indicadas pelo caput (ser menor de 14 anos) ou pelo parágrafo 1º ("alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência") do artigo 217-A do Código Penal.
Entretanto, Masson deixa claro que nada impede a incidência, quanto a estupro de vulnerável, do erro do tipo, descrito no artigo 20, caput, do Código Penal. O dispositivo tem a seguinte redação: "O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei". Para o especialista, o erro do tipo não se confunde com a existência ou não da vulnerabilidade da vítima. "Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico", diz Masson na passagem citada pelo juiz.
Rudson Marcos apontou que não ficou provado que Mariana Ferrer estava alcoolizada ou sob efeito de droga a ponto de ser considerada vulnerável e não consentir com o ato sexual por não ter capacidade de oferecer resistência.
Marcos destacou que os exames de alcoolemia e toxicológico apresentaram resultado negativo. O juiz também citou que a única testemunha que corroborou a versão de Mariana foi a sua mãe.
"Em que pesem tais relatos, fato é que as testemunhas que estavam na companhia da vítima afirmaram que esta estava consciente durante o período que tiveram contato com a mesma, um 'pouco alegre', mas nada demais, nada que demonstrasse estado de inconsciência ou incapacidade, nem mesmo foram alertados pela ofendida de que havia sido violentada", avaliou o julgador.
Os relatos de Mariana e sua mãe não permitem concluir que Aranha praticou estupro, avaliou o juiz. Em sua visão, não há outras provas que embasem a versão de que ela não tinha capacidade para consentir com o ato sexual.
"Sendo assim, a meu sentir, o relato da vítima não se reveste de suficiente segurança ou verossimilhança para autorizar a condenação do acusado. Em que pese seja de sabença que a jurisprudência pátria é dominante no sentido de validar os relatos da vítima, como prova preponderante para embasar a condenação em delitos contra a dignidade sexual, nos quais a prova oral deve receber validade maior, constata-se também que dito testemunho precisa ser corroborado por outros elementos de prova, o que não se constata nos autos em tela, pois a versão da vítima deixa dúvidas que não lograram ser dirimidas", analisou Marcos.
Como as provas são conflitantes, não há como impor ao acusado a responsabilidade penal, pois "melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente", declarou o juiz ao inocentar Aranha com base no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal ("não existir prova suficiente para a condenação").
Leia a nota do MP-SC:
A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.
Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.
Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de "estupro culposo", até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.
O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.
Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.
O MP-SC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente.
Atualização feita pelo Intercept na reportagem sobre o caso:
"Atualização, 3 de novembro de 2020, 21:54: A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo"
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