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    "Elite intelectual é burra e não percebe a riqueza da pluralidade", diz Conceição Evaristo

    Escritora vencedora do prêmio Jabuti em 2015, Conceição Evaristo fala sobre arte, política e sua "escrevivência"

    Escritora Conceição Evaristo (Foto: Walter Craveiro/Flip)

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    José Eduardo Bernardes, Brasil de Fato

    Considerada uma das principais escritoras contemporâneas do Brasil, Conceição Evaristo, 74 anos, afirma que a troca com artistas de outras gerações são seu combustível para manter a esperança e o vigor. Foi assim que engatou sua participação no novo álbum da cantora baiana Luedji Luna, (Bom Mesmo é Estar Debaixo D’Água), com a declamação do poema “A Noite Não Adormece Nos Olhos das Mulheres”.

    “A literatura tem essa vantagem, porque é possível dialogar com várias artes e com a música então, só reafirma essa presença, essa marca, esse diálogo, essa possibilidade de diálogo com um grupo mais jovem”. 

     Assista:


    E a sintonia com os mais jovens não para por aí. Evaristo, que é doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro, revela que, há algum tempo, tenta escrever uma letra de rap, que segundo a escritora, é uma das maneiras de a juventude acessar a literatura. 

    “O rap é interpretação também, o jogo de corpo. Eu já vi, por exemplo, um texto de rap sendo trabalhado ao lado de um texto de Carlos Drummond de Andrade. Então, oferece essas possibilidades de leituras, de textos literários diferentes”. 

    Com dois romances publicados, além de livros de poemas e contos traduzidos em línguas estrangeiras, Conceição Evaristo foi homenageada pelo Prêmio Jabuti como Personalidade Literária de 2019. Em 2015, a escritora já havia sido laureada por seu livro de contos Olhos D’Água, e revela que, somente depois do “reconhecimento” passou a ser respeitada no meio literário. 

    No entanto, a autora ainda se sente uma “estranha no ninho”. "O primeiro local de recepção da minha obra foi junto aos meus pares, foi o movimento negro, o movimento de mulheres que recepcionou a minha obra. Foi um caminhar muito lento até. Eu tenho episódios, por exemplo, de sair para uma mesa com outros escritores e outras escritoras, estar no mesmo evento e essas pessoas não me cumprimentarem”. 

    Um dos sintomas que ainda reforçam para a escritora o seu sentimento de "estranha no ninho", que ela caracteriza como uma "legitimidade da elite branca" sobre a literatura, foi a negativa da Academia Brasileira de Letras, em 2018, em lhe conceder uma cadeira entre os imortais da literatura nacional.

    “Há sujeitos e sendo bem explícita: o sujeito branco, seja ele homem ou mulher, ele tem licença pra falar de tudo, ele vai falar de gato, ele vai falar de sapato, ele vai falar de sexo, ele vai falar de amor e ele vai falar de religião, de tudo. Ele pode dizer tudo, todos assuntos são pertinentes a ele”, diz Evaristo. 

    “Determinadas classes sociais, quando falam sobre os seus próprios assuntos, normalmente essa fala não é legitimada ou ela só passa a ser legitimada a partir do próprio sujeito falante. É como se não tivéssemos o direito de falar, não tivéssemos o direito de pensar, não tivéssemos o direito de escrever. Eu acho que a elite, não todos, mas a elite intelectual brasileira - e eu já falei isso e repito - é uma elite burra. É uma elite burra, de não perceber a riqueza que nós temos nessa pluralidade de vozes.”

    Confira alguns trechos da conversa com a escritora no BDF Entrevista desta semana:

    Brasil de Fato: Queria começar esse papo falando contigo sobre a tua participação no álbum da Luedji Luna, com o poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”. Essa troca com outras mulheres negras que começam agora a trilhar seu caminho também te renova, te dá mais esperança de alguma maneira?

    Conceição Evaristo: Sem sombra de dúvida é o que me potencializa, o que me dá vigor ainda. Eu vou fazer 75 anos e essa troca que eu tenho com a juventude, a juventude me ter como referência, me procurar e me incluir em trabalhos que eu não estaria presente...Eu não sou uma pessoa que canta, eu não sei cantar, não sei dançar, mas são artes que me agradam muito. 

    Então uma jovem cantora como a Luedji me chamar, achar que faz sentido fazer um trabalho comigo, isso me honra muito e me dá a certeza de que vale à pena, de que eu estou indo pelos caminhos certos, que eu estou conquistando a consciência de pessoas mais jovens. Isso, pra mim, é uma experiência e um contato riquíssimo. Eu tenho aprendido muito em contato com as pessoas mais jovens, das mais diferentes artes. 

    E você já tinha feito algum trabalho com música ou foi a primeira vez? 

    Não, eu já tinha feito. É o terceiro trabalho. A literatura tem essa vantagem, porque é possível dialogar com várias artes e com a música. Então, só reafirma essa presença, essa marca, esse diálogo, essa possibilidade de diálogo com um grupo mais jovem. 

    Eu ando experimentando fazer um rap. Tem uns três anos que eu tô trabalhando a letra e eu quero realmente terminar e entregar pra esse jovens interpretarem pra mim. Porque o rap é interpretação também, o jogo de corpo. 

    É uma maneira, inclusive, da juventude dessa periferia, que acho um termo meio complicado, acessar também a literatura.

    Eu já vi, por exemplo, um texto de rap sendo trabalhado ao lado de um texto de Carlos Drummond de Andrade. Então, oferece essa possibilidade de leituras, de textos literários diferentes. 

    Eu tenho prestado muita atenção no Emicida, tem também um intérprete mineiro que eu tenho olhado, o Djonga. Mas como eu também gosto muito de priorizar as mulheres, e como esse texto do rap tem muito uma marca de voz de mulher, eu quero pensar também em mulheres. Mas, na verdade, se eu conseguir fazer, porque não é fácil, e aí eu deixo pra quem quiser pegar. 

    Eu ando experimentando fazer um rap

    Uma coisa que se relaciona muito com o rap e a literatura, principalmente a tua literatura, é o que você define como "escrevivência". Essa ideia de trazer a tua história, a tua trajetória para a arte. Você cresceu e teve a infância em uma favela de Belo Horizonte. Você acha que foi isso que te trouxe essa potência para a literatura? 

    Eu não tenho a menor sombra de dúvida. É dessa minha experiência com esse lugar diferenciado que a minha literatura brota, que inspira minha literatura. Eu digo muito também que eu não nasci cercada de livros, eu nasci rodeada de palavras, então foram experiências que me colocaram numa situação de olhar o entorno, de ouvir o mundo. 

    Eu fui uma menina, uma adolescente muito curiosa, eu prestava muita atenção nas coisas, nas pessoas, na fala das pessoas, eu acho que isso aguçou a minha sensibilidade, a minha escuta, essa possibilidade de prestar atenção. Então essa experiência diferenciada, e eu digo diferenciada por se diferenciar da de grande parte de escritores e de escritoras das classes hegemônicas, eu acho que me conduziu.

    Eu tenho muito medo de as pessoas interpretarem isso como uma apologia da pobreza, uma apologia da carência. Mas é o que eu digo, a carência, a pobreza elas são lugares também de aprendizagem, né? Você pode, dali, criar condições de saber. São lugares também de episteme, mas só se você vence. 

    Se você não vence, continua sendo um lugar de interdição e nesse sentido, a pobreza não ensina nada. Pelo contrário, ela interdita as pessoas de uma aprendizagem, mas quando você consegue sair desse espaço da pobreza e olha pra trás, aí sim, acho que você pode tirar ensinamentos e eu fico grata à vida, que eu tive essa possibilidade e que a grande maioria não tem. 

    Você teve o livro de contos Olhos D'água premiado no Jabuti e, anos depois, você foi homenageada pelo mesmo prêmio. Eu já ouvi você dizer que só depois desse reconhecimento que passou a ser lembrada pelos escritores, até tietada. Você ainda se sente distante desse ambiente da literatura, do meio literário? 

    Sim, às vezes eu ainda me sinto uma estranha no ninho. O primeiro local de recepção da minha obra foi junto aos meus pares, foi o movimento negro, o movimento de mulheres que recepcionou a minha obra. As professoras e professores levando pra sala de aula, levando para os seus TCCs, para as dissertações, as pesquisas. 

    Então foi um caminhar muito lento até. E realmente ser conhecida ou ser acreditada no círculo de escritores mais tradicionais, de escritores já legitimados foi muito mais difícil. Eu tenho episódios, por exemplo, de sair para uma mesa com outros escritores e outras escritoras, estar no mesmo evento e essas pessoas não me cumprimentarem. 

    Eu acho que havia uma certa dúvida: "O que essa mulher negra escreve?" E depois do prêmio Jabuti parece que legitimou: “Então ela escreve sim”.

    Alguns escritores que anteriormente estiveram comigo em várias situações me ignoraram, o que chega a ser uma indelicadeza, porque se a gente está no mesmo hotel, no mesmo evento, pelo menos regras de boa educação quando você cruzar com o outro no corredor, no café e coisa e tal, deveriam ter. Não estou dizendo que são todos não, mas aconteceu sim. 

    Depois dessa legitimação do Jabuti parece que sanou um pouco da dúvida, parece que justificou a minha presença, o meu status de escritora.

    Eu não nasci cercada de livros, eu nasci rodeada de palavras.

    Na sua tentativa de ingressar na Academia Brasileira de Letras você disse recentemente que, por ter sido um movimento de fora para dentro, teria incomodado à Academia. Você acha que a ABL é uma instituição empoeirada pelo tempo, que talvez não consiga enxergar fora dos seus domínios?

    É. Mas eu ainda acredito que, por força da própria história, da movimentação da sociedade, a Academia vai ter que acompanhar o tempo. Agora, por exemplo, se cogitou a candidatura de Daniel Munduruku, que é uma candidatura de um escritor indígena, mas não sei como que ficou isso, não conversei ainda com Daniel. 

    Então a Academia vai ter que acompanhar, ou então ela vai ficar cada vez mais empoeirada, cada vez mais mofada, cada vez mais representante de determinadas categorias sociais e de determinados gêneros. Porque você olha a Academia e a maioria são escritores homens e brancos. Nós temos poucas mulheres. Acho que tem que haver também, com o tempo, essa equidade de gênero. 

    Também uma equidade de condição étnica, de experiência de condição social, ou então vai continuar sendo enfeite, o que é uma pena, porque temos acadêmicos e acadêmicas que são sujeitos pensantes mesmo, que são capazes de pensar essa realidade brasileira. São capazes de pensar o Brasil e no entanto não é o que se vê. 

    Eu acho que a gente sempre fala no Brasil plural. E hoje nós temos muito mais pluralidade de pensamentos. Então tem que ter uma pluralidade de ação, de representatividade, que a academia infelizmente ainda não tem. 

    Existe uma potência na tua escrita de trazer como protagonistas personagens negros e negras. Como protagonistas do seu destino, das suas ações. Você acha que isso é um choque também pra Academia, para esses escritores que beberam muito da fonte do colonialismo? 

    É. Eu me lembro de uma amiga do movimento negro, uma moça que faleceu há um bom tempo. E ela falava que a gente lida com temas malditos. Talvez a nossa temática, as histórias que a gente conta, a nossa inspiração literária, não agradem tanto. 

    Mas ao mesmo tempo tem também a questão da legitimidade, de quem a Academia julga legítimo para escrever ou para falar. Então há sujeitos e, sendo bem explícita: o sujeito branco, seja ele homem ou mulher, ele tem licença pra falar de tudo, ele vai falar de gato, ele vai falar de sapato, ele vai falar de sexo, ele vai falar de amor e ele vai falar de religião, de tudo, ele pode dizer tudo, todos assuntos são pertinentes a ele. 

    Determinadas classes sociais quando falam sobre os seus próprios assuntos, normalmente essa fala não é legitimada ou ela só passa a ser legitimada a partir do próprio sujeito falante. É como se não tivéssemos o direito de falar, não tivéssemos o direito de pensar, não tivéssemos o direito de escrever, eu acho que isso também incomoda.

    Eu acho que a elite, não todos, mas a elite intelectual brasileira – e eu já falei isso e repito – é uma elite burra. É uma elite burra, de não perceber a riqueza que nós temos nessa pluralidade de vozes. 

    A gente gosta muito de falar que o Brasil é um país multicultural, é um país mestiço, mas quando se trata de determinadas situações, ele deixa de ser esse país mestiço, ele deixa de ser um país multicultural, pra uma cultura que se pretende hegemônica, de ditar as regras do jogo, de todos os modelos de fazer ou de não fazer, inclusive a arte.

     As várias formas da arte, a música, a dança, o cinema, o teatro, existem justamente porque não estamos satisfeitos com o mundo.

    Seu nome e de outros personagens geniais da cultura brasileira foram excluídos pelo presidente da Fundação Palmares (Sérgio Camargo) dos quadros de homenageados da instituição. Me parece um ataque sem precedentes. Como é que você recebeu essa notícia e qual o tamanho do desmonte das conquistas que a gente conseguiu nos últimos anos, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018?

    Olha, especificamente do sujeito que está na Fundação Palmares, eu tenho me recusado a falar sobre ele. Eu prefiro falar sobre o pai dele, o poeta Oswaldo de Camargo, que deu uma contribuição imensa – e que dá ainda, porque Oswaldo está aí, vivo – ao movimento social negro e à literatura brasileira. 

    Eu acabo, por exemplo, de fazer a quarta capa de um livro de Oswaldo de Camargo, que vai sair pela Companhia das Letras. Então eu prefiro celebrar a existência de Oswaldo de Camargo de pensar em Oswaldo de Camargo, do que falar alguma coisa daquele moço. 

    Quanto às nossas conquistas sociais, e que a gente vê esse processo de regressão, eu que vou fazer 75 anos e vivi a minha juventude justamente no momento de eclosão dos movimentos sociais, a gente achava que construiria um outro Brasil. 

    Tudo era muito forte nos anos 1960 e foi abafado depois pela ditadura. Mas o movimento agrário era muito bonito, o movimento operário era muito bonito. Digo bonito no sentido de potência, de ação, o movimento universitário, o movimento estudantil e nós tínhamos muita esperança, de acreditar muito em uma mudança do Brasil.

    E a gente teve um momento, há um tempo atrás, que a gente acreditava outra vez nessa participação democrática e agora estamos neste momento. Mas eu acredito também que o movimento na história é esse. Ao mesmo tempo que alimenta a tristeza, o desânimo, que revela a nossa impotência, nos faz novamente buscar esse caminho da utopia, do sonho, da luta pela justiça, nos faz compreender que o mundo não está pronto. 

    E pelo contrário, cada vez mais a gente sente a falta de ser um mundo realmente pleno, em que todas as pessoas possam realmente gozar da felicidade, gozar do prazer da vida, ter o direito à vida. Então eu acho que é sempre esse processo de luta, esse processo de crença, de busca e que vai se realizar de diversas formas.

    Alguns acham que vai se realizar através da política, com políticos que fazem uma trajetória política por idealismo, por compromisso com o povo. Nós vamos ter outros que serão só aproveitadores. Nós vamos ter líderes que realmente vão estar no coração do povo, outros vão se impor e depois virão os líderes de barro, que quebram e se esfacelam no primeiro momento.

    As várias formas da arte, a música, a dança, o cinema, o teatro, existem justamente porque não estamos satisfeitos com o mundo. Eu acho que o dia que tiver uma sociedade perfeita, o mundo perfeito ou o dia que cada indivíduo se julgar perfeito, não há mais processo de luta, de busca, não tem mais sonhos, talvez a humanidade tenha que caminhar sempre nesse eterno buscar.

    Ao mesmo tempo que a tristeza, o desânimo, revelam a nossa impotência, nos fazem novamente buscar esse caminho da utopia, do sonho, da luta pela justiça, nos faz compreender que o mundo não está pronto.

    Você comentou sobre como a potência do movimento negro é que te trouxe pra superfície, que te alçou ao sucesso. Como você vê o movimento hoje, com diversas lideranças importantíssimas nesse momento tão trágico para o país?

    Eu acho que o movimento negro, vou repetir uma frase aqui de Nilma Lino Gomes, de Belo Horizonte, em que ela diz que o movimento negro é educador (O movimento negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação - 2017.)

    E se a gente quiser colocar no cotidiano uma gênese do movimento negro, nós vamos ver as células desse processo desde a escravização no Brasil. E você também pode pensar no movimento negro como movimento de autodefesa e aí podemos, inclusive, pensar nos quilombos. 

    Acho que o movimento negro, nas suas ações, nas suas reivindicações, inclusive reivindicações políticas, nas reivindicações de sermos respeitados em nossas humanidades, isso permitiu um leque de discussão e uma busca de representatividade muito grande.

    Na própria mídia, com que veemência jornalistas negras tem se afirmado. As atrizes e os atores negros, que a gente sabe que ainda enfrentam, sem sombra de dúvida, uma grande dificuldade... Mas houve um tempo que você contava no dedo também quais eram as atrizes e os atores negros que estavam numa grande emissora de televisão e, infelizmente, em papéis muito bem definidos. Eram papéis que representavam personagens subalternizadas. 

    Agora, isso não aconteceu de uma hora pra outra, e ainda tem muita coisa pra acontecer. Eu acredito que essa juventude não vai voltar atrás, não tem como.

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