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A sinergia sino-brasileira e o dilema da Nova Rota da Seda

É bastante claro que a eventual adesão do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota representaria um caminho natural para o Brasil

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Por Tiago Nogara (*), de Xangai - Nas últimas semanas, alguns dos grandes meios de comunicação nacionais e internacionais têm dado ênfase à disjuntiva brasileira acerca de possível ingresso na Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), ou Nova Rota da Seda, promovida pela China. Esse debate se acirra não casualmente, mas exatamente no contexto da vindoura visita de delegação chinesa de alto nível para o Brasil, tanto para o encontro do G20 quanto para as conversações bilaterais que serão conduzidas pelos presidentes Lula e Xi Jinping.

Particularmente, a recente declaração de Celso Amorim de que o Brasil não estaria “entrando em um tratado de adesão” e que priorizava uma “negociação de sinergias” foi recebida pela imprensa e por alguns analistas como uma veemente sinalização brasileira de não adesão. Entretanto, não é verdade que tais palavras tenham representado qualquer inflexão da postura brasileira, e tampouco uma resposta definitiva acerca da ICR.

Em abril de 2023, no contexto da visita de delegação chefiada por Lula à China, Amorim deu entrevista ao Global Times afirmando que o Brasil estava aberto a estudar possível ingresso na ICR. Entretanto, salientou que apesar da adesão formal do Brasil ainda não ter se consumado, o seu conteúdo (ou seja, a profunda cooperação bilateral em distintos níveis) já era uma realidade há décadas. E de fato, os números diuturnamente divulgados envolvendo as relações sino-brasileiras não permitem que Amorim seja desmentido.

Mas tal realidade igualmente não impede o Brasil de aderir à ICR, e tampouco de buscar ampliar tal sinergia para níveis ainda maiores, como reconhecem tanto Lula quanto Amorim. Foi com esse espírito que o presidente Lula declarou em julho ser possível o ingresso do Brasil na iniciativa, mas destacando que o Brasil não queria ser “reserva”, e sim “titular”. Da mesma forma, também recentemente Amorim declarou, em agosto, que, apesar dos investimentos em infraestrutura serem importantes, o cerne da parceria com a China deveria residir na “cooperação forte em tecnologia”, admitindo que tal aprofundamento também poderia se concretizar no escopo da ICR, envolvendo projetos tais como a possível produção de baterias de carros elétricos no Brasil.

Esse entendimento brasileiro se constrói a partir de um objetivo bastante claro: tornar os vínculos com a China um elemento-chave para a cruzada em busca da revitalização do parque industrial nacional, esforço que de forma inequívoca passa por alavancar os projetos conjuntos que envolvam investimentos produtivos, transferência de tecnologia e cooperação científica. E obviamente, de forma alguma tais interesses de aprofundamento dos vínculos bilaterais decorrem em qualquer concepção apriorística de não-ingresso na ICR, mas tampouco eles devem ser condicionados à adesão.

O certo é que, no que tange especificamente ao conteúdo da ICR, é bastante claro que eventual adesão representaria um caminho natural para o Brasil e, diferentemente do que muitos propagam, totalmente afim com os interesses voltados para a reindustrialização do país. Afinal, seu escopo e abrangência refletem oportunidade singular para alavancar investimentos voltados ao fortalecimento da capacidade produtiva nacional, com a modernização da infraestrutura também servindo à redução dos custos logísticos e consequente fortalecimento das condições para o país se fortalecer no âmbito das cadeias globais de valor.

Devido a uma série de condicionantes políticas que excedem o debate acerca dos benefícios concernentes ao ingresso na ICR, é nítido que o governo brasileiro ainda não tem uma posição definitiva sobre a questão. Mas tampouco é pressionado para tal. Ocorre que, desde o começo do terceiro mandato de Lula, tanto o presidente quanto Celso Amorim têm dado declarações ambíguas, nas quais, em geral, afirmam que eventual ingresso estaria condicionado a uma negociação mais aprofundada acerca dos seus termos. De um lado, costumam apontar que a potencialização dos laços entre Brasil e China persistirá independentemente de o Brasil entrar ou não na Nova Rota da Seda. De outro lado, também sinalizam que o Brasil tem interesse de buscar condições especiais para eventual adesão, e que tal gesto não significaria um alinhamento geopolítico ou qualquer movimentação que abale os vínculos do Brasil com os Estados Unidos e a União Europeia.

A China é a maior parceira comercial do Brasil desde 2009, e o Brasil constitui o destino prioritário dos investimentos chineses na América do Sul. A Parceria Estratégica com a China data dos anos 90 (a primeira desta natureza estabelecida pela China), e desde a década de 1970, quando do restabelecimento dos laços diplomáticos, há crescente convergência entre os países acerca de diversos tópicos da agenda multilateral, ao tempo em que se expandem os projetos de cooperação entre ambos — envolvendo amplas áreas, tais como investimentos, comércio, agricultura, educação, saúde, cultura, esporte, ciência e tecnologia. Nesse sentido, é natural que o Brasil se sinta atraído pela ICR, promovida pela China para contribuir para aumentar a interconectividade entre os países no mundo, com o decorrente fortalecimento do comércio e interações, servindo como meio para consolidar uma ordem global pacífica e cooperativa. Os investimentos em infraestrutura são um déficit histórico do Brasil e do conjunto da América Latina. 

Não por acaso, a maioria dos países da América do Sul já aderiu a ela. E isso não representou um “alinhamento ideológico” e tampouco perda de soberania diplomática para quaisquer dos países aderentes, na medida que a China não intervém nos assuntos domésticos de terceiros e não condiciona o ingresso a convergências de cunho geopolítico. Daí que governantes das mais diversas colorações ideológicas tenham expandido os laços bilaterais com os chineses e simpatizado com os rumos e as proposições da Nova Rota da Seda. Consequentemente, não há o que o Brasil possa temer com relação a uma eventual adesão. As recentes declarações de oficiais americanos contra a ICR, sob a égide da retórica da “Nova Guerra Fria”, são ameaças veladas contra a opção soberana dos países da região a ampliarem os vínculos cooperativos com a China. O Brasil nada tem a ganhar seguindo os rumos de tal visão paternalista e neocolonial de Washington, que mais uma vez demonstra abertamente seu insaciável desejo de controlar o rumo da política externa dos países latino-americanos, atualizando os princípios da enfadonha Doutrina Monroe.

Logicamente, o peso político do Brasil no mundo e a respectiva envergadura de sua economia e indústria fazem com que pleiteie condições diferenciadas para acordos de cooperação de longo prazo, tais como os que a China lhe propõe por meio da ICR. E é nesse sentido que o governo Lula sinaliza a necessidade de discussões mais aprofundadas e detalhadas sobre alguns pontos, de forma que as “relações ganha-ganha” se consolidem não apenas aumentando o fluxo comercial bilateral, mas servindo como elemento catalisador para o necessário processo de reindustrialização do país. Nesse sentido, as obras do PAC e a Nova Rota da Seda também tendem a ser complementares.

Às vésperas da vinda de Xi Jinping e da delegação chinesa ao Brasil, ambos os governos têm enfocado aprofundar as sinergias, ao invés de ressaltar eventuais diferenças de concepções. Inúmeras iniciativas recentes demonstram isso. Na última semana, foi amplamente noticiado o projetado início das operações da empresa chinesa de satélites SpaceSail no Brasil. Há pouco mais de um mês, a presidente do Banco dos BRICS, Dilma Rousseff, foi agraciada por Xi Jinping com a Medalha da Amizade da China, grandiosa honraria que sinaliza o claro alinhamento que ambos os países vêm mostrando à frente dos BRICS. São crescentes as expectativas acerca do papel que o Brasil ocupará na cadeia de valor vinculada ao mercado dos carros elétricos, e as perspectivas de produção não apenas dos automóveis, mas também das baterias para os carros elétricos no país passam diretamente pela cooperação com os chineses. O alinhamento entre ambos na construção de uma agenda propositiva no vindouro encontro do G20 apenas reforça o compromisso para a construção de uma ordem global multipolar, regida pela paz e a cooperação para o desenvolvimento. Assim, o foco excessivo de determinados setores acerca do impacto de uma momentânea não adesão brasileira à ICR mais diz sobre seus mais profundos e silenciosos desejos, ávidos pelo estremecimento das relações entre os dois gigantes do Sul Global, do que sobre a inquebrantável e crescente sinergia sino-brasileira.

(*) Pesquisador Visitante do Instituto de Estudos Regionais e de Países, Universidade Sun Yat-sen, China

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