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Conciliando o inconciliável sobre o "marco temporal"

O indigenista Eduardo Aguiar de Almeida presta solidariedade total ao movimento indígena brasileiro na luta contra o "marco temporal"

Indígenas protestam em frente ao STF pela rejeição do marco temporal (Foto: Carlos Moura/SCO/STF | Webert Cruz/Mídia Ninja)

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Por Eduardo Aguiar de Almeida (*) - Na noite de 14/10/2024 um evento on line promovido pelo Ministério dos Povos Indígenas – MPI pode ter feito história. A iniciativa buscou esclarecer questões que envolvem as “audiências de conciliação” da “comissão especial” criada pelo Supremo Tribunal Federal para debater o “marco temporal”, ou “marco da morte”, como alguns preferem chamar, ou “marco da volta à barbárie colonial”.

Bom, é óbvio que a barbárie colonial, genocida e invasora de terras, persiste. Na prática, nunca deixou de existir no Brasil. Nesse sentido, a expulsão do colonizador europeu, entre 1822 e 23, praticamente não significou muito coisa. Os métodos colonialistas seguem operantes, ainda que ilegais. O marco temporal promovido pelo Brasil das trevas tenta apenas reinstitucionalizar o genocídio invasor.

Na live coordenada pela ministra Sonia Guajajara, houve um claro intuito de mostrar que o Movimento Indígena Brasileiro está firme e unido, e que não conciliará com qualquer tentativa de reduzir os direitos dos povos indígenas. E mesmo assim, tanto o MPI quanto os líderes e apoiadores da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, fizeram questão de frisar que a lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional, não será tolerada. Não haverá acordo ou conciliação que possa implicar na concordância com uma lei que conflita com a Constituição Brasileira.

O que quer o STF com essa comissão especial e as audiências de conciliação?

Uma hipótese otimista, do ponto de vista da ordem democrática e humanista, é que o Supremo deseja evidenciar, pelo debate público, as graves ameaças de retrocesso político, jurídico e civilizacional no Brasil caso haja perdas reais de direitos dos povos indígenas. Com isso, pavimentaria as vias públicas para reafirmar o caráter inconstitucional da lei fascistóide ante a insensatez de um poder legislativo onde há uma hiper-representação dominante de setores reacionários decadentes e uma gritante sub-representação dos setores populares e democráticos.

Outra hipótese, anexa à primeira, é a de que o Tribunal ganharia tempo, arrefecendo a irracionalidade fascista da majoritária bancada do genocídio. Isso é controverso pois essa própria bancada já vem trabalhando numa PEC (projeto de emenda à Constituição) para apunhalar os artigos 231 e 232 da nossa Lei Magna e acabar de institucionalizar o genocídio.

Uma terceira hipótese, pessimista, inverte o raciocínio: o debate “conciliatório” visaria arrefecer e rachar a força política, ideológica, filosófica e moral da Resistência Indígena brasileira, criar divisões, isolar e demonizar as lideranças lúcidas e autênticas, rotulando-as de “radicais” e, daí, selar um recuo que apazigue as forças do ódio racista e fascista. Essa hipótese pode ser real ou um balão de ensaio. Se colar, colou. Se não colar, disfarça...

Um campo minado de armadilhas. Iscas ardilosas pra todo lado. Nada de novo. Aí alguns dizem que esse Congresso atual é o pior da história, tal e tal. Não é verdade, basta ver a história da república no Brasil. Apenas o assanhamento fascista anda em alta e os motivos nós bem sabemos. Há uma inegável crise no sistema capitalista, um declínio visível da ordem imperial unipolar no mundo e, no Brasil, ante o avanço da democracia e o desgaste da direita tradicional, ocorre também uma contraofensiva instrumentalizada desde fora que articulou com êxito um crescimento da extrema-direita.

O que mais chama a atenção nessa situação toda são os graves riscos de comprometimento de visão do contexto maior e o aumento de ilusões e sedução por falsidades e artimanhas das classes dominantes. Logo o Movimento Indígena (!), que sempre lutou sem ilusões, sem se preocupar com cálculos milimétricos de “correlação de forças”, seja no Congresso, no Governo, nos Tribunais ou na sociedade. Até porque todos os cálculos mais óbvios sempre indicaram correlação de forças negativa. Altamente desfavorável, quase sempre, sobretudo no governo, no Parlamento e nas Cortes. Os povos indígenas também enfrentaram a Ditadura Militar, bom lembrar.

O Movimento Indígena percebeu que tinha aliados na sociedade, na opinião pública, tanto nacional quanto internacional e apostou tudo na justeza de suas causas, seus discursos, seus pleitos. Através dessas simpatias, conseguiu acumular apoios na mídia (inclusive a grande, golpista, controlada por oligarquias conservadoras), em parte dos meios religiosos, em ambientes políticos (sobretudo os democráticos e de esquerda), nos movimentos sociais, nos meios artísticos e intelectuais, na tecnocracia, em ambientes acadêmicos e jurídicos, juventude, etc. Uma luta eminentemente ideológica, baseada na força das ideias e dos simbolismos, da busca por liberdade e direitos de existir enquanto etnias. Não foi fácil nem mole. Continua não sendo. Incontáveis mártires caíram sob a violência absurdamente desproporcional das classes dominantes e seus paus mandados. Como ocorre há 500 anos. O colonialismo, a usurpação de terras, a violência invasora, o genocídio, nunca cessaram. Mudaram apenas os tempos, as tecnologias, as escalas, as velocidades, o encolhimento dos territórios, a devastação do ambiente, e, decerto, alguns conceitos jurídicos e filosóficos. Um padrão relativamente estável de conveniências e de contradições das forças colonizadoras na relação com os povos indígenas e demais excluídos perdura há cinco séculos.

Por quais razões os povos indígenas hoje iriam modificar sua lógica de luta? Logo quando a ira colonialista se reacende ideologicamente com as armas da violência e da falsidade do fascismo?

Diga ao povo que avance. Essa palavra de ordem exprime muito bem o caráter da Resistência Indígena nos últimos 50 anos, no Brasil, nas Américas e em todo o mundo. Um exemplo extraordinário, em vista da ideia de “defensiva estratégica” que toma conta dos movimentos sociais e políticos anti-opressão desde o golpismo pró-Império dos anos 60 e 70 que grassou em nosso Continente e a queda do chamado “socialismo real” do Leste Europeu há trinta e poucos anos.

Gente, a composição do Supremo hoje somada a uma compreensão geral mais evoluída dos Direitos Indígenas e afins nos tempos atuais sugerem um ambiente mais favorável às causas dos povos originários. Festejemos isso e avancemos. Ainda assim, não nos iludamos. Esse poder judiciário brasileiro, assim como toda a ordem jurídica no essencial, e as instituições públicas de uma maneira geral, são partes de um Estado fundamentalmente controlado pelas classes dominantes nacionais e internacionais. Não faz muito tempo, o Supremo aprovou “condicionantes” absurdas, inconsistentes, quando afinal viu que não tinha como não reconhecer os direitos territoriais dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol de Roraima. Salvo engano essa própria tese diabólica do “marco temporal” estreou nesse processo.

A luta é incessante. Os arrogantes que se autoconsideram escolhidos de Deus para monopolizar [e degradar] terras e excluir “o outro” irão sempre inventar artifícios, os mais descabidos e criativos, para defender suas primazias. Irão corromper também, claro, como sempre. Não há como criar ilusões nem aceitar acomodações. A conquista de espaços de poder num governo de índole democrática assume grande importância, mas jamais pode resultar em fator de acomodação ou barganha. Até porque esse governo pode ter boas intenções, mas não deixa de ser uma instituição do Estado dominado e moldado pela hegemonia burguesa oligárquica e colonialista. E, não raro, certas lideranças desse governo, por mais simpatias que declarem ter pela causa indígena, mostram percepções confusas ou equivocadas sobre a luta democrática e socialista. O poder executivo no Brasil atual é uma malha de arapucas, em que os gestores acabam tendo poder limitado de ação. E o que aconteceu nas últimas décadas de ideologia capitalista neoliberal? O capital ampliou as armadilhas e os mecanismos de controle sobre a máquina estatal. Privatizaram empresas do povo, deram “autonomia” ao Banco Central, criaram agências reguladoras “independentes” [do poder popular democrático] mais vulneráveis [dependentes] às influências do capital, aumentaram a influência do dinheiro no processo eleitoral e parlamentar, ampliaram o descontrole clientelista do orçamento, etc, etc. O resultado é um Presidente da República popular “amarrado” e um Congresso dominado por reacionários que agem contra os interesses populares e democráticos, forçando barganhas de “governabilidade” que acabam dificultando as ações e políticas públicas democráticas do governo.

O que os povos indígenas podem esperar desse quadro? Ficar a reboque do governo e dos demais poderes? Com certeza não!

Tudo isso não significa que os canais de diálogo devam ser desprezados. Evidentemente que não. Mas para haver diálogo sério e consequente é preciso haver respeito, consideração. Não dá pra sentar-se com representantes da burguesia rural radical em Brasília enquanto, nos territórios, prepostos destes assassinam, agridem e ameaçam indígenas que lutam por direitos garantidos na lei do país. Se o Supremo não garante, de algum modo, a preservação de um clima de respeito mínimo essencial para que haja diálogo, é preciso analisar melhor qual a real validade da proposta. Os indígenas integrantes do Governo poderão, claro, representar o Governo e suas instituições no foro determinado pelo Supremo, mas deverão deixar claro que não representam o movimento indígena, além de explicitar uma noção elementar de que qualquer diálogo ou tentativa de conciliação (do inconciliável!) estarão fadados ao fracasso e ao questionamento de legitimidade se a parte indígena não participa do processo.Outro tema abordado na live de segunda à noite, foi o recente acordo de aceitar “pagar pela terra” para destravar a homologação judicializada há 19 anos da TI Nhanderu Morangatu, em Mato Grosso do Sul. No meu entendimento de leigo, o relato do Secretário Executivo do MDI, Dr. Heloy Terena, mostra que, tecnicamente, o acordo teria sido bem conduzido. Contudo, o que a mídia e os fazendeiros divulgam simplifica a questão e manipula a informação de um modo muito perigoso. Esse caso não é o único no país em que governos estaduais emitem títulos a fazendeiros de terras incidentes em terras indígenas. É preciso observar também a possibilidade de má fé e contornos criminais nesses eventos. Esse caso específico evidencia bem o caráter do poder judiciário no Brasil. Ora, se o argumento para travar a homologação e desintrusão da TI era a existência de títulos de terras concedidos pelo Estado, o Estado que responda na justiça ao pleito dos que se sentem prejudicados e enganados. Os títulos, até onde entendo e pude observar no caso da TI Paraguaçu-Caramuru, na Bahia, devem ser considerados nulos e as áreas desintrusadas. Não podem as famílias indígenas, já vítimas de esbulho, preconceitos e violência, viver prejudicadas por problemas terceiros, configurando assim uma flagrante injustiça.Para finalizar, quero destacar a lucidez e clareza de alguns dos depoimentos na fase de perguntas da live, de modo especial de Jaquie Guarani-Kaiowa, Txai Suruí, do representante Sateré-Mawé e do Coordenador da APIB, Kleber Karipuna, todos explicitando aspectos político-ideológicos primordiais envolvidos na questão. Kleber inclusive, citando Maurício Terena, lembrou o aspecto mais político (e eu acrescentaria ideológico) do que jurídico da questão do marco temporal e das tentativas de “conciliação”. Festejo também a mensagem de unidade na luta deixada por Brasílio Xokleng: “vamos dar as mãos!”, o que nos remete ao “ninguém solta a mão de ninguém”. Digam ao povo que avance! Nenhum direito a menos!

(*) Eduardo Aguiar de Almeida é indigenista

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