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    Crimes ambientais. Estados e empresas poluidoras devem ser levados à justiça internacional

    O negacionismo climático aumentou o risco da mudança mundial catastrófica. Deveria o direito penal internacional ser usado contra aqueles que promovem essa tendência perigosa? Os líderes econômicos e políticos não podem mais fingir que se trata de manter a rotina de sempre (business as usual). Quer induzam danos ambientais de forma ativa, ou simplesmente ignorem a ameaça existencial contra a sobrevivência da espécie humana, os Estados e as empresas devem ser responsabilizados por suas ações ou pelo imobilismo em relação à mudança climática.

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    Por: Catriona McKinnon (*)

    Fonte: Correio da Unesco https://pt.unesco.org/courier/2019-3/crimes-ambientais-devem-ser-levados-justica

    Um incêndio começou no teatro, do qual não há saídas. Sem controle, o incêndio matará e ferirá muitos no teatro, começando por aqueles que estão nos assentos mais baratos. Muitas pessoas podem sentir o cheiro da fumaça, mas outras ainda não o notam. Algumas pessoas estão tentando alertar a todos para que o incêndio possa ser contido antes que se alastre fora de controle. Outro grupo – a maioria sentada nos assentos mais caros – está tentando gritar em voz alta que não há incêndio, ou que não é sério, ou que ainda há tempo de sobra para apagá-lo. Este grupo usa linguagem emotiva e insiste que não se deve confiar no outro grupo.

    “O negacionismo climático se beneficiou da generosidade da indústria de combustíveis fósseis”

    Muitas pessoas no teatro estão confusas por essas mensagens conflitantes, ou convencidas por aqueles que negam o incêndio. Nesse conjunto de confusos/convencidos há pessoas suficientes para desacelerar, de maneira significativa, os esforços daqueles que ouvem os alertas corretos, aqueles que estão tentando apagar o incêndio. Nesse cenário, aqueles que gritam “Não há incêndio!” devem ser silenciados, pois há um incêndio que requer medidas urgentes e imediatas para impedir que ele se alastre e se torne incontrolável. No entanto, o incêndio não está sendo combatido de maneira adequada porque muitas pessoas no teatro não sabem em quem acreditar.

    Podemos comparar aqueles que negam a realidade da mudança climática ao grupo que ocupa os melhores lugares do teatro? A resposta é óbvia: sim.

    Acelerar a extinção da humanidade

    As sanções penais são as ferramentas mais potentes que temos para balizar uma conduta que esteja além de todos os limites da tolerância. A conduta criminosa viola os direitos básicos e destrói a segurança humana. Reservamos o duro tratamento da punição para condutas que causam danos ao que há de mais fundamentalmente valioso para nós. A mudança climática está causando exatamente esses danos.

    Ao longo dos últimos 250 anos aproximadamente, temos queimado combustíveis fósseis para produzir energia barata, destruído sumidouros de carbono, aumentado a população mundial, e não conseguimos deter a influência maligna dos interesses corporativos na ação política que poderia ter tornado a mitigação exequível. Agora, temos uma janela de apenas 10 anos ou menos para evitar o uso total do orçamento de carbono de 1.5 graus centígrados, de acordo com o Relatório Especial de 2018 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC). Se seguirmos em nossa atual trajetória de emissões sem uma mitigação agressiva, poderemos perceber o aquecimento na faixa de 4°C a 6,1°C acima das médias pré-industriais até 2100. Mesmo que todos os países cumpram suas atuais metas de mitigação no âmbito do Acordo de Paris de 2015 (COP21), provavelmente perceberemos um aquecimento de, pelo menos, 2.5 graus centígrados até 2100.

    Catástrofe anunciada

    Um aumento na temperatura de 4°C a 6,1°C até 2100 seria catastrófico. Grandes áreas da Terra se tornariam inabitáveis com as elevações do nível do mar e das temperaturas. Eventos climáticos extremos, quebras de safra, e conflitos causados pela migração em massa nunca antes vistos na história da humanidade, provocariam intensa pressão sobre os lugares habitáveis remanescentes. Nessas condições frágeis e turbulentas, o próprio  aumento do efeito do aquecimento poderia colocar a humanidade em risco de extinção, conforme publicou o periódico Futures, em setembro de 2018. Esse aumento ocorre quando se ultrapassa o limite de tolerância, ou seja, a hora no sistema climático em que o efeito não pode mais ser interrompido, ocasionando o desencadeamento de processos que agravam o aquecimento. Por exemplo, a floresta Amazônica, que deixou de ser a região que mais absorvia carbono no mundo para se transformar em uma fonte de emissão de carbono; ou o enorme recuo do gelo polar, que reduz o reflexo da luz do planeta e eleva a velocidade de seu processo de aquecimento. Esses limites de tolerância são descritos no quinto relatório de avaliação do IPCC (Fifth Assessment Report – AR5) como um limiar fundamental no qual o clima mundial ou regional muda de um estado estável para outro.

    Os aumentos na temperatura de 4°C a 6,1°C não são prováveis, mas também não são ficção científica. Essa ameaça existencial se torna mais real a cada ano que passa sem uma mitigação agressiva para atingir a marca de zero emissão líquida até 2050. Mesmo que o Acordo de Paris aborde de maneira agressiva a ambição de mitigação para fechar o hiato de emissões até 2030, continua a ser o caso, pois já atingimos 1°C de aquecimento. Esperam-se novos aumentos na temperatura, devido ao intervalo de tempo entre as emissões e o aquecimento que elas induzem, e ao longo tempo de vida das moléculas de carbono na atmosfera.

    Entre o comportamento irresponsável…

    Deveríamos usar o direito penal para combater a mudança climática? A geração de pessoas vivas atualmente, no Antropoceno, é capaz de danificar e degradar o meio ambiente de tal forma que pode causar a extinção da humanidade. O “postericídio” é uma resposta moralmente necessária às novas circunstâncias da humanidade no Antropoceno. O escopo do direito penal internacional faz com que seja a esfera certa para enfrentar as ameaças existenciais criadas pela mudança climática. O direito penal internacional visa a proteger toda a comunidade humana, independentemente das fronteiras nacionais, agora e no futuro. O direito penal internacional expressa os valores que unem a comunidade humana ao longo do tempo. Ele assevera a condenação de “atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade”– como previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) de 17 de julho de 1998, que define, inter alia, os crimes internacionais sobre os quais o TPI tem jurisdição.

    Para que haja um crime, deve haver um criminoso. A morte e o sofrimento causados pelos impactos climáticos são profundamente chocantes, mas isso não é o bastante para instaurar um processo no âmbito do direito penal internacional. A morte e o sofrimento são causados por erupções vulcânicas, contudo, não há agentes culpáveis nesses casos.

    A atual crise climática tem sido causada pela atividade humana dos últimos 250 anos aproximadamente, levando ao acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera. A crise climática é, em grande parte, uma consequência não intencional de ações ao longo da história que destruíram os sumidouros de carbono, aumentaram os fluxos de carbono, e concentraram os estoques de carbono. A maior parte dessa conduta está além do alcance legítimo do direito penal internacional, até porque as pessoas relevantes estão mortas. A maior parte, mas não tudo.

    … e o “postericídio”

    Propus que o direito penal internacional deva ser ampliado para incluir um novo crime que chamo de “postericidio”. Ele é cometido pela conduta intencional ou imprudente, apta a provocar a extinção da humanidade. O “postericídio” é cometido quando a humanidade é colocada em risco de extinção por conduta realizada com a intenção de tornar a humanidade extinta, ou com o conhecimento de que a conduta é adequada para ter esse efeito. Uma pessoa é imprudente quando ela age mesmo sabendo que sua conduta acarretará um risco inadmissível a outra. É nas condutas imprudentes, que provocam a mudança climática, que devemos identificar as condutas “postericidas”.

    As emissões de uma única pessoa não são capazes de provocar a extinção da humanidade devido aos impactos climáticos – contudo, as emissões de muitos jatos particulares e poços de petróleo que as pessoas possuem podem provocá-la. Entretanto, indivíduos em seus papéis de líderes políticos e empresariais podem exercer amplo controle sobre o quanto a mudança climática pode piorar em consequência de sua ação. O presidente de um país pode retirar um Estado de um acordo mundial de mitigação; um diretor-executivo pode autorizar a retenção de informações sobre o progresso e os impactos da mudança climática, pelo fato dessas informações ameaçarem os resultados da empresa.

    Em geral, os indivíduos têm controle sobre condutas que eles próprios não praticam, por exemplo, ao dar ordens diretas aos subordinados, ou em virtude de relacionamento especial com outras pessoas cuja conduta cause danos. Isso significa que podemos atribuir responsabilidade indireta aos indivíduos de poder, autoridade e influência dentro de grupos que, como coletivos, pioram a mudança climática a ponto de causar a extinção da humanidade. Assim como o direito penal internacional considera os líderes militares responsáveis pelo genocídio cometido por suas tropas, ele deve responsabilizar os líderes políticos e econômicos pelo “postericídio” cometido sob sua autoridade. Esses líderes devem ir a julgamento no TPI e serem responsabilizados pelos valores fundamentais compartilhados pela comunidade humana.

    Negacionismo criminoso

    Quem deveria ser processado por “postericídio”? Poderíamos começar examinando a estabelecida rede internacional de organizações, devidamente financiadas, dedicadas ao negacionismo climático organizado (Para saber mais sobre este assunto, leia o artigo Text-mining the signals of climate change doubt, na revista Global Environmental Change, volume 36, de janeiro de 2016). O epicentro dessa atividade está nos Estados Unidos. Um conjunto de grupos conservadores de reflexão tem deliberadamente enganado o público e os tomadores de decisões políticas sobre as realidades da mudança climática. O negacionismo climático ideologicamente motivado por esse conjunto tem sido financiado pela indústria de combustíveis fósseis, que incluem, por exemplo, a Koch Industries e a ExxonMobil. Esse negacionismo climático tem exercido um impacto significativo sobre a opinião pública e tem impedido a legislação para combater a mudança climática.

    Responsabilidade penal indireta

    Rex Tillerson [antigo CEO da ExxonMobil, que também serviu como Secretário de Estado dos Estados Unidos de fevereiro de 2017 a março de 2018], Charles Koch e David Koch [proprietários da Koch Industries] deveriam ser julgados pelo crime de “postericídio” no TPI? Suas responsabilidades penais indiretas seriam suscitadas pela autorização de vários atos de negacionismo climático praticados por outros, sem os quais, provavelmente, teria havido uma ação política agressiva inicial sobre a mudança climática.

    O negacionismo climático dificultou muito os esforços agressivos de mitigação que poderiam ter evitado nossa atual emergência climática. Ele ampliou o risco que a humanidade enfrenta da catastrófica mudança climática mundial. Deveriam ser responsabilizadas  as pessoas em posições de autoridade nos Estados ou nos grupos industriais cujas mentiras nos colocou em perigo e também nossos descendentes. O dano causado pelos negacionistas climáticos é hediondo e eles não têm desculpas. Chegou o momento de processá-los por “postericídio”.

    (*) Catriona McKinnon – Professora de Teoria Política na Universidade de Exeter, no Reino Unido, Catriona McKinnon publicou diversos artigos e livros sobre justiça climática e sobre tolerância e ideais políticos liberais. Atualmente, ela está concluindo uma monografia em que defende o “postericídio” (Endangering Humanity: an international crime), escrevendo um livro introdutório sobre justiça climática e pesquisando as questões éticas levantadas pela geoengenharia.

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