A nova chacina da polícia do Rio, nos confins de São Gonçalo
Como em outras matanças, o Salgueiro é morada de gente pobre e, em boa parte, preta. Reportagem de Raimundo Rodrigues Pereira, apoiada pela comunidade 247
Por Raimundo Rodrigues Pereira, 247 - Para chegar a São Gonçalo (RJ) se pega a ponte Rio-Niterói e se sai, na margem norte da baía da Guanabara, pela esquerda, na BR 101, que leva para centros turísticos famosos, como Búzios e Cabo Frio. A entrada para o centro urbano de São Gonçalo fica uns cinco quilômetros à direita nessa rodovia. Mas a entrada para o local da chacina - que detalharemos logo mais - fica ainda outros cinco quilômetros adiante e à esquerda. E a primeira parada a fazer, é, pouco depois da saída da rodovia, a praça central do bairro de Itaúna onde, no sábado, 20 de novembro, foi atingido, em operação da Polícia Militar contra traficantes da área e veio a falecer, o sargento Leandro Rumbelsperger, 40 anos. Essa morte é o que muitos consideram o estopim do massacre.
“Nós acendemos o sinal vermelho. Porque a gente já sabe: morre um policial em confronto com traficantes, vai ter revanche da polícia”, disse ao Brasil 247 um integrante da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o primeiro serviço oficial do estado a chegar à comunidade atingida pela chacina ocorrida, ao que tudo indica, na madrugada do domingo dia 21.
A sequência dos fatos é a seguinte:
- O sargento PM é morto na manhã de sábado;
- Ainda na manhã do sábado são mobilizados o batalhão da PM da região e o Bope, a força especial da corporação; elas realizam o que um porta-voz da polícia chama de ocupação do local. Este inclui Itaúna e outras áreas alinhadas ao longo de cerca de 10 quilômetros da estrada das Palmeiras: uma, formada originalmente por um condomínio de funcionários da Marinha, da época do governador Leonel Brizola; e outra, mais ao final e mais recente, também formada originalmente por um condomínio, no caso, para o pessoal da PM;
- Segundo a polícia, ocorrem intensos tiroteios entre essas forças de ocupação e moradores armados, no sábado e no domingo. Neste dia, por exemplo, às três da tarde o serviço de atendimento de urgência, SAMU, foi forçado “por bandidos” a atender um paciente que veio a falecer;
- Domingo, dia 21, às 18 horas, o Bope deixa a região e registra na 72ª delegacia de São Gonçalo a relação do material apreendido na ocupação e um óbito;
- Ainda no domingo, das 6 horas da manhã até o final da tarde, segundo moradores contaram à Auditoria, chegando em dois “caveirões”, seus veículos blindados, soldados da PM ocupam um clube da Vila das Palmeiras, o Piscina's Bar. Comem, bebem, deixam garrafas e latas de bebida vazias, uma panela de comida meio cheia e uma mesa e uma cadeira quebradas dentro da piscina. Deixam um recado na parte interna do portão do clube e uma assinatura: “Obrigado pela recepção. Delta force, bonde do caça siri”. Esta última frase tem a ver com as mortes no manguezal vizinho, onde se caça siri e onde os PMs caçaram moradores, como mostraremos no segundo capítulo de nossa história.
Massacre no manguezal
Domingo, 21 horas, moradores da Vila Palmeiras começam a recolher cadáveres de parentes mortos no manguezal que fica entre a vila e o rio Guaxindiba, que corre ao norte da Vila das Palmeiras. Ao final da operação, oito corpos são depositados num descampado ao lado do manguezal e próximo à última fileira de casas no sudeste da comunidade.
A PM chega para recolher os corpos para a identificação e necrópsia às 9 horas da manhã de segunda. Em seguida, estranhamente, contam os moradores, um policial toca fogo no local onde estavam roupas manchadas de sangue e inclusive uma estranha luva de tipo cirúrgico. Os integrantes da Ouvidoria chegam 20 minutos depois. Filmam a fogueira. Vão depois ao Piscina's Bar, que abrem com auxílio de moradores. E fazem um vídeo da lambança feita pela PM no local.
A autópsia dos oito mortos mostra alguns padrões conhecidos. Era gente jovem: um tinha 17 anos, quatro estavam na casa dos 20; dois na dos 30. Só um tinha mais: 52. Três não tinham antecedentes criminais. As mortes foram na maioria provocadas por tiros na cabeça e nas costas. Possivelmente tinham envolvimento com o tráfico de drogas. Em toda a estrada das Palmeiras, nos cerca de 15 quilômetros entre Itaúna e a Vila, o padrão é um só: o asfalto tem um quebra-molas a cada 10 metros para que os carros trafeguem devagar e com pisca-pisca alerta ligado. E, a espaços mais largos, barreiras mais fortes, com trilhos de aço, pneus e concreto, as quais no período da nossa reportagem, na sua maioria tinham sido derrubadas pela polícia.
Sem investigação do massacre
Não há empenho no comando da PM para investigar a ação dos seus soldados na Vila das Palmeiras. Setenta e cinco policiais participaram da operação e só oito tinham entregado suas armas para exame até agora, começo de dezembro. O comando da polícia divulgou também que nas 16 horas da operação os PMs tinham disparado mais de 1500 tiros, alegando que o fizeram sempre por necessidade, como recurso de última instância. Por que tanta fúria?
Há uma resposta simples. Porque se trata de gente pobre, onde a polícia entra sem mandato e sem bater na porta. E o município, ainda por cima, tem uma tradição considerada ruim por setores conservadores. Sediou um movimento contra a abolição do regime escravista quando, na vizinha Niterói, havia, ao contrário, um clube dos “libertos contra a escravidão”. E derrotado, participou de outro movimento, depois, também sem sucesso, por uma indenização estatal aos senhores que tiveram seus escravos liberados. Em contrapartida, a cidade recebeu também muitos escravos fugidos que se aproveitaram das matas e montes desabitados da área e construíram mini quilombos para se abrigar.
Atualmente, a opinião pública de São Gonçalo parece dividida: o prefeito é um ex-PM, o capitão Nelson, de inclinação bolsonarista e ganhou as eleições como candidato do Avante, contra o candidato do PT, Dimas Gadelha, num segundo turno, por pequena margem, 50,79% contra 49,21% dos votos.
O Brasil 247 já começou a sua investigação sobre o espantoso crime: o manguezal onde os 8 moradores foram mortos é conhecido como uma área de fuga para os perseguidos pela polícia. E além disso, no local da chacina, não estavam apenas os oito que morreram. Há também os que escaparam, vivos. E que falam, como sabemos.
(A segunda reportagem da série será publicada em breve)
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