Historiadora defende legitimidade do incêndio da estátua de Borba Gato
Deborah Neves, especialista em patrimônio histórico, considera que revisão da memória é fundamental para debater presente e futuro do país
Opera Mundi - No programa 20 MINUTOS ENTREVISTAS desta sexta-feira (06/08), o jornalista Breno Altman entrevistou Deborah Neves, historiadora especialista em gestão do patrimônio cultural, sobre o incêndio à estátua de Borba Gato.
Para ela, a ação foi legítima e contribuiu para o debate sobre a intocabilidade de estátuas, nomes de rua e monumentos, já que não estava havendo espaço para realizar essa discussão a nível institucional.
“Parece que a história é algo neutro, mas não existe neutralidade. Existem agentes da história, mas eles não existem separados de quem deu seu apoio a eles, como é o caso de José de Alencar [defensor do escravagismo]. Nesse caso, por exemplo, que não é tão claro, talvez ele deva deixar de ser homenageado com nomes de ruas, mas a gente não precisa apagar a contribuição dele para a literatura”, discorreu.
A historiadora afirmou que as cidades não são estáticas e mudam o entendimento daquilo que são as referências identitárias e culturais da população, mudando, portanto, o que deve formar parte do espaço público.
“A gente vê com muita naturalidade quando um edifício histórico vai ser demolido para construir outra coisa, mas não olha com tanta naturalidade a transformação de espaços que têm um lastro afetivo e de memória nem sempre construídos com base na realidade da população”, argumentou.
Como exemplo de transformação de espaços, Neves citou o edifício do DEOPS-SP que hoje é o Memorial da Resistência. “A ditadura transformou a cara de São Paulo e esses locais têm que ser tratados como são e segundo a história que contam, não podemos simplesmente colocar ali uma escola de música, algo que chegou a ser um considerado e cujo projeto foi responsável pela desconfiguração do edifício”, relembrou.
Ressignificar o antigo prédio do DOI-CODI
Atualmente, a historiadora luta pela ressignificação do antigo prédio do DOI-CODI, o escritório da agência de inteligência e repressão política de São Paulo. O processo começou com um pedido de tombamento do local na Vila Mariana, bairro paulistano, que funciona como a 36ª delegacia da polícia civil e está praticamente intacto. Agora, após uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi autorizado a ser convertido num memorial e centro de pesquisas.
“É uma forma de a gente oferecer reparação às vítimas daquele local. A gente pode transformar aquele espaço de violador a defensor dos direitos humanos, porque só o tombamento não ia servir de nada. Seria um local de memória, mas não um memorial, onde a polícia poderia instalar outras coisas ali”, enfatizou Neves.
No dia 9 de setembro será feita uma audiência de conciliação com a polícia para poder criar o memorial. O evento, realizado no próprio edifício, será presencial e aberto ao público.
Construção da memória
Apesar dessa decisão histórica importantíssima, como destacou a pesquisadora, o Brasil ainda está longe de construir uma memória reparadora e revisar seu passado: “A gente vive num tempo em que se defende o direito de defender a ditadura, para a gente ver como as feridas não foram cicatrizadas. Entender a ditadura como um período de violação dos direitos humanos é o que vai permitir construir um presente diferente”.
Para ela, esse comportamento de exaltação do período militar se dá porque “a memória está dissociada da história e da compreensão da história” e por consequência direta da Lei da Anistia.
“A história é sobre o presente. A gente não consegue romper com esse ciclo de militares com protagonismo político porque a gente não conseguiu sequer puni-los pelos crimes que cometeram. A gente trata torturador como herói. Não acho que isso seja falta de memória, mas a memória foi construída a partir de uma interpretação que privilegia a tortura e a morte, o que está dissociado da compreensão da nossa história. Nossos heróis são figuras violentas, como Borba Gato”, refletiu.
Neves lamentou que nem governos de esquerda conseguiram revogar a Lei da Anistia, mas reconheceu que Dilma Rousseff foi a única a pedir desculpas pelos crimes cometidos durante a ditadura. “Isso só mostra o controle que as Forças Armadas têm sobre a sua própria história. E se um policial hoje se sente tranquilo em apertar o gatilho, é porque a Lei da Anistia passou pano para atos horríveis, extremamente graves”, agregou.
A falta de memória, porém, não se restringe ao período militar. Falta refletir sobre o passado colonial e imperial do país que, “porque está distante temporalmente, é pouco discutido”.
“Mas aí quando há uma ação de pôr fogo na estátua do Borba Gato, a gente traz a história colonial para o presente e percebe como a história distante ainda traz tanta controvérsia. Quando você coloca fogo na estátua, você está questionando os fundamentos da sociedade brasileira, baseada na exploração e na violência, que são os próprios fundamentos do capitalismo. Por isso incomoda tanto, porque estamos questionando uma memória ainda muito presente", ponderou.
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