Só depoimentos de policiais não são suficientes para condenar um réu, diz Justiça do Rio
De acordo com a Defensoria Pública do Rio, a mudança foi um avanço e gerará decisões mais justas
Sérgio Rodas, Conjur - A alteração do enunciado da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que permitia a condenação do réu com base apenas em depoimentos de policiais, não deve aumentar a qualidade das ações penais, pois a nova redação é confusa, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Por outro lado, a Defensoria Pública do Rio — autora do pedido de reformulação da tese — acredita que a mudança foi um avanço e gerará decisões mais justas.
O Órgão Especial do TJ-RJ alterou nesta segunda-feira (9/12) o enunciado da súmula, que tinha a seguinte redação: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
Por 13 votos a 1, o colegiado aprovou a proposta de enunciado apresentada pelo desembargador Luiz Zveiter, relator do caso. A Súmula 70 agora tem a seguinte redação: “O fato de a prova oral se restringir a depoimento de autoridades policiais e seus agentes autoriza condenação quando coerentes com as provas dos autos e devidamente fundamentada na sentença”.
Mudou pouco
O advogado e ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Geraldo Prado, hoje investigador integrado ao Instituto Ratio Legis da Universidade Autônoma de Lisboa, não acredita que a nova redação da Súmula 70 melhorará de modo significativo a qualidade dos processos penais e das sentenças.
“A rigor, mudou pouco. Do ponto de vista da prova penal haverá algum ganho, por exemplo, nos casos de flagrante delito, se a convicção judicial vier apoiada em gravações produzidas pelas câmeras que os policiais estiverem usando. E é pelo uso das câmeras que o bom policial estará protegido e as violências policiais poderão ser coibidas. Ainda assim, um conjunto probatório depende de investigação que se qualifica pela coleta de múltiplos elementos que devem ser coerentes e harmônicos entre si.”
Segundo Prado, o problema do enviesamento dos depoimentos dos policiais não é corrigido pela motivação da sentença, mas pela harmonia dessa prova com outros elementos probatórios, sem hierarquia entre eles.
“Qualquer prova condenatória deverá estar em harmonia com outras provas. Não faz sentido especificar uma delas — ‘o depoimento de agentes policiais’ —, salvo se o que se pretende é conferir a essa prova, a priori, maior peso, o que não é correto teoricamente. O melhor teria sido revogar a súmula e editar outra, coerente com posições do Supremo Tribunal Federal, exigindo o uso de câmeras nas abordagens policiais”, opina o processualista penal.
A nova redação da Súmula 70 “não é muito clara”, avalia o advogado Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da UFRJ.
“Uma interpretação possível é a de que foi criado regime jurídico de prova legal negativa: depoimentos policiais precisam ser corroborados por provas de outra natureza (à semelhança do que ocorre com o testemunho do colaborador premiado). É preciso aguardar a jurisprudência do TJ-RJ baseada nessa nova redação”, destaca Malan.
Avanço tímido
A Defensoria Pública do Rio pediu, em 2018, o cancelamento ou, subsidiariamente, a revisão da norma ao Centro de Estudos e Debates do TJ-RJ. O então defensor público-geral do Rio, André Luís Machado de Castro, citou a análise de 1.250 acórdãos publicados entre 2013 e 2016, feita pela Coordenação de Defesa Criminal do órgão. O estudo apontou que magistrados vinham interpretando a Súmula 70 no sentido de presumir a veracidade dos depoimentos de policiais.
O defensor público-geral destacou que a normativa não tinha sido seguida por outros Tribunais de Justiça, e ressaltou que a jurisprudência do STF e do STJ considera que os depoimentos de policiais têm o mesmo valor probatório dos de outras testemunhas. Da forma como vinha sendo aplicada, disse Castro, a Súmula 70 “representava a completa subversão do sistema acusatório”, porque “deslocava o ônus probatório para a defesa, eximindo a acusação de produzir a prova daquilo que verte na denúncia”.
O acórdão do TJ-RJ, embora não alcance o pedido de cancelamento, é um avanço na busca por julgamentos mais justos e fundamentados, avalia a Defensoria. Para a coordenadora de Defesa Criminal do órgão, Lúcia Helena de Oliveira, a alteração do texto é um marco, mas defensores seguirão lutando para que as decisões observem todas as provas.
“A Súmula 70 tem 21 anos, e há duas décadas lutamos por um novo horizonte nesse tema. Embora o pedido inicial fosse pelo cancelamento, a pequena alteração do texto da súmula, para incluir a necessidade de coerência dos depoimentos dos agentes policiais e autoridades com outros elementos dos autos, é um avanço. Temos um marco que deverá ter como consequência uma mudança de cultura nos julgamentos. Nesse sentido, vamos precisar monitorar os julgamentos para garantir que nossos assistidos tenham decisões mais justas, e que essas decisões observem todo o conjunto probatório e, também, os avanços tecnológicos. E, caso os resultados não sejam satisfatórios, seguiremos pleiteando os direitos de nossos assistidos”, diz Lúcia Helena.
O coordenador do Núcleo de Investigação Defensiva da Defensoria, Denis Sampaio, também afirma que a súmula original era um retrocesso em matéria de Direito Probatório.
“A nova redação exige que condenações baseadas em depoimentos de policiais estejam coerentes com as provas dos autos, com o fundamento expresso da coerência nas decisões. Podemos considerar um avanço no debate técnico, já que o texto anterior apenas ressaltava o depoimento do policial. A partir do novo texto, o juiz deverá realizar um confronto entre as provas produzidas nos autos, no que tange à comprovação da autoria. Porém, nosso trabalho segue no monitoramento dos impactos práticos nas futuras decisões judiciais, em especial com o avanço tecnológico que impõe o uso de câmeras corporais acopladas às fardas policiais.”
Impacto nos julgamentos
Em parceria com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), a Defensoria fez um estudo sobre os impactos da Súmula 70 no julgamento de processos criminais. A pesquisa analisou dados entre 2019 e 2023, com foco em casos de tráfico de drogas julgados pelo TJ-RJ.
O levantamento revelou que, nos processos analisados em que houve aplicação da Súmula 70, 88,76% dos condenados eram do sexo masculino e negros. Esses números ilustram como a aplicação da Súmula 70 contribui para reproduzir desigualdades raciais, especialmente no contexto de delitos relacionados à Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), apontaram a Defensoria e o Geni-UFF.
Parecer de professores
Permitir a condenação com base apenas em depoimentos de policiais, como faz a Súmula 70 do TJ-RJ, distorce o processo penal, legitima abusos das forças de segurança e amplia a seletividade do sistema criminal, contribuindo para o encarceramento de negros e pobres.
Foi o que afirmaram Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da UFRJ e da Uerj, e Mariana de Assis Brasil e Weigert, professora de Criminologia do programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá.
Em parecer encomendado pelo Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, eles opinaram pelo cancelamento da norma. Os dois apontaram que o depoimento policial é “um dos pilares de sustentação das sentenças criminais condenatórias, especialmente nos delitos patrimoniais e nos ilícitos relacionados com o Direito Penal das drogas”.
A Súmula 70, destacaram eles, baseia-se na presunção de regularidade da atividade policial e das suas manifestações nos procedimentos administrativos e judiciais apuratórios de crimes. “Em razão do cargo, os agentes do Estado estariam resguardados pela fé pública e os seus depoimentos somente poderiam ser refutados se apresentadas provas que evidenciassem má-fé.” Porém, na América Latina, a regra é a violação, por ação ou omissão, da legalidade por parte de agentes dos sistemas punitivos, ressaltaram os professores.
Ao mesmo tempo em que os depoimentos de policiais recebem credibilidade exagerada, os de acusados, especialmente negros e pobres, são desvalorizados, fazendo com que eles sofram “injustiça epistêmica”, avaliaram os pareceristas. A injustiça epistêmica ocorre quando um ouvinte, por preconceito, atribui a um falante um nível de credibilidade que não corresponde às evidências de que ele esteja falando a verdade, conforme conceito formulado pela filósofa Miranda Fricker.
Decisões do STJ
O STJ vem consolidando o entendimento de que condenações criminais não podem ser exclusivamente fundamentadas em depoimentos de policiais.
Por avaliar que houve violação do direito ao silêncio e uma série de injustiças decorrentes da origem social do acusado, a 6ª Turma da corte superior absolveu, em junho de 2023, um jovem que foi condenado por tráfico de drogas apenas com base no depoimento de policiais que fizeram a prisão em flagrante (Recurso Especial 2.037.491).
De acordo com o colegiado, o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo adotou raciocínio enviesado ao considerar como verdade incontestável a palavra dos policiais que fizeram a abordagem, adotando, assim, interpretação que considerou mentirosa a negativa do acusado em juízo. Essa postura teve seu ponto de partida no silêncio do acusado na fase investigativa.
Relator do caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que o TJ-SP cometeu “injustiça epistêmica” ao atribuir excesso de credibilidade aos depoimentos dos policiais e ao desvalorizar a palavra do réu, um jovem negro e pobre.
“O tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja pela injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos”, afirmou Schietti.
Em outro caso, a 5ª Turma do STJ anulou, em 2022, uma condenação do TJ-RJ baseada apenas em depoimentos de policiais e fundamentada na Súmula 70 (AREsp 1.936.393). Relator da matéria, o ministro Ribeiro Dantas propôs limitar a presunção de validade dessa prova: a palavra do agente público tem fé pública, mas sua validação como prova dependerá da gravação em áudio e vídeo do momento da abordagem para demonstrar qualquer dos elementos do crime.
Em voto-vista, o ministro Joel Ilan Paciornik divergiu. Para ele, não se pode supervalorizar, tampouco desvalorizar, o testemunho do policial. Em vez disso, essa prova deve ter o mesmo valor de qualquer outro testemunho levado aos autos. Ao juiz, caberá valorar o conteúdo junto com os demais elementos dos autos para aí, sim, determinar a importância da prova.
O julgamento na 5ª Turma, porém, terminou sem uma definição clara sobre qual das posições deveria prevalecer. Isso porque ambos os votos tiveram a mesma conclusão no caso concreto: entenderam que o réu por tráfico de drogas deveria ser absolvido. E os demais ministros prometeram reflexão sobre o tema.
Por considerar pouco críveis os relatos de policiais, a 6ª Turma do STJ trancou, em fevereiro, a ação penal contra um homem acusado de tráfico de drogas depois de ter sua residência invadida pela polícia (HC 861.086).
Os ministros entenderam que a experiência e o senso comum tornam difícil acreditar que uma pessoa atende ao chamado de policiais, autoriza a entrada deles em casa, confessa que faz parte de uma facção criminosa e indica em qual cômodo armazenou grande quantidade de drogas. Com informações da assessoria de imprensa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
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