BNDES, empreiteiras e o novo governo Lula
"Mais que um retorno ao passado, uma nova política para o BNDES e as empreiteiras precisará ser construída no governo Lula 3", avalia o pesquisador Pedro Giovannetti Moura
Por Pedro Giovannetti Moura*
(Publicado no site Le Monde Diplomatique)
Passear pelas discussões nos grandes jornais que ganham projeção no início do governo Lula 3 é se deparar com dois tipos diferentes de fake news: há as condenadas – que especialmente versam sobre as tratativas golpistas do oito de janeiro e a família Bolsonaro – e, com elas, coexistem outras, as aceitas. Aceitas, repetidas e, na realidade, alçadas a uma suposta verdade. A entrevista de Aloísio Mercadante ao Jornal Valor Econômico, no início de fevereiro, ilustra esse “segundo tipo” de fake news, a da grande mídia.
Dando vasão ao grande temor do Grupo Globo e de setores do mercado, as perguntas ao presidente do BNDES logo se iniciam com um questionamento frontal à continuidade ou não da política de campeãs nacionais. Em uma clara tentativa de constrangimento ao entrevistado – o que denota uma busca das forças do capital em tutelar o governo Lula -, as quatro perguntas iniciais confrontam de forma crítica o tema do financiamento de empresas brasileiras no exterior. Por fim, é lançado mão, por parte dos entrevistadores, do argumento da “falta de transparência” nos empréstimos do banco concedidos pelos governos petistas [1]. Ao, implicitamente, retomar o tema da “caixa preta do BNDES”, o jornal omite os R$48 milhões de reais jogados no lixo ao serem entregues para uma auditoria externa averiguar possíveis irregularidades nos empréstimos concedidos pelo BNDES entre 2005 e 2018. Como se sabe, não foi encontrada nenhuma irregularidade, conforme reconhecido pelo próprio ex-Presidente Jair Bolsonaro [2]. Assim, resiste o lava-jatismo, com mais convicções do que fatos.
O falseamento do legado do BNDES nos governos petistas, no entanto, obedece a um propósito bastante evidente por parte do jornal e da narrativa liberal: impor um consenso e tornar hegemônica uma ideia de que o banco, durante as administrações petistas, teria sido usado enquanto um instrumento de ajuda à países governados pela esquerda à revelia dos interesses brasileiros. Dessa forma, sob um verniz de pragmatismo e defesa dos interesses nacionais, tenta se apagar um frutífero debate sobre a experiência das políticas de campeãs nacionais durante os governos petistas, o papel do BNDES na exportação de serviços e, em última instância, se demoniza a ideia de se utilizar um banco de fomento estatal para a promoção do desenvolvimento industrial nacional. O constrangimento e o falseamento, assim, são empregados enquanto instrumentos de dissolução de um debate.
Em contrapartida, me parece que é exatamente a partir de um balanço crítico da última experiência petista que devemos balizar a discussão sobre o papel dos instrumentos estatais para o investimento em infraestrutura e internacionalização de serviços nacionais.
A política de campeãs nacionais
“Uma líder nacional pode ser entendida como uma empresa nacionalmente possuída e controlada que é ‘escolhida’ pelo governo (ela recebe um quinhão desproporcional de ‘ativos intermediários’ que lhe permite tornar-se um ator dominante em sua ‘base competitiva’ – o mercado interno), em troca do que é obrigada a investir intensivamente em ativos próprios baseados no conhecimento. Esses ativos, por seu turno, permitem-lhe globalizar-se por meio da exportação ou do investimento no exterior.” [3]
Talvez o ponto de partida para o entendimento da política de campeãs nacionais nos governos petistas seja, paradoxalmente, uma desnacionalização do conceito, isto é, situá-lo a partir de um mais amplo escopo geográfico. Se Luciano Coutinho, Demian Fiocca e outros economistas foram responsáveis por formular uma política de investimentos que significou liberações do BNDES para a promoção da internacionalização de empresas nacionais na ordem de U$5,86 bilhões, em 2005 – contra U$100milhões, no começo dos anos 1990 -, a política não foi um raio em céu azul. Pelo menos desde os anos 1990 a discussão sobre a intervenção estatal para a promoção da internacionalização de empresas nacionais ganhava espaço, sobretudo ao redor do conceito de Developmental State, estruturado por Chalmers Johnson.
Se debruçando sobre o caso do desenvolvimento econômico japonês – então apontado como economia capaz de superar os Estados Unidos por cientistas sociais e econômicos – o estadunidense afirmara haver no país uma interação entre burocracia estatal e empresas privadas nacionais bastante particular, que conferiram ao país um sucesso na internacionalização de suas empresas [4]. O modelo de Johnson foi tomado como base para analisar outros casos de países que empregaram políticas públicas de investimento e criação de condições para promoção de internacionalização de suas empresas – Canadá, Alemanha e França são alguns dos exemplos mais recorrentemente estudados. No entanto, na transição dos anos 1990 para os anos 2000, o grande case de sucesso estava no estudo das economias do sudeste asiático. Somente a coleção Routledge studies in the growth economies of Asia foi responsável pela publicação de 73 obras que versavam sobre os modelos de desenvolvimento no continente asiático. Alguns dos países abordados, que se aproximariam do conceito original de Johnson, seriam China, Taiwan, Indonésia, Singapura, Tailândia e Índia.
Algumas das economias do sudeste asiático foram, assim, consideradas por Alice Amsden – importante expoente do debate sobre as estratégias de desenvolvimento nos países periféricos – enquanto modelos de desenvolvimento “independentes”. Estes seriam capazes de consolidar seus sistemas nacionais de produção e impulsionar a construção de empresas e conglomerados que passaram a investir de modo significativo em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Os países latino-americanos, por sua vez, foram considerados modelos “integracionistas”, marcados pelo acolhimento de empresas multinacionais estrangeiras sem a assimilação de suas tecnologias para empresas nacionais e diversas experiências de fusões e privatizações. Como resultado, tivemos a não conversão da América Latina em uma região com países-sede de empresas com capacidade de liderança no comércio internacional.
É dentro desse debate do desenvolvimento das economias periféricas que situamos a política de campeãs nacionais que caracterizou o aumento de financiamento para grandes empreiteiras nacionais – como Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – durante os governos Lula. A escolha pelas grandes da engenharia brasileira, assim, consistia em um objetivo estratégico dos governos petistas em utilizar empresas com experiência internacional já comprovada. A Camargo Corrêa participara da construção da então maior hidrelétrica do mundo, Guri, na Venezuela; a Odebrecht vinha de vitórias em licitações nos Estados Unidos e entrada no continente europeu; a Andrade Gutierrez se convertera em um conglomerado atuando em diferentes setores. Assim, o objetivo do governo era converter essas empresas com uma prévia inserção no mercado mundial em grandes players e líderes mundiais do setor.
O emprego de dinheiro proveniente do BNDES para ampliar a atuação de empresas que já contavam com receitas próprias e, muitas vezes, financiamentos provenientes de instituições de fomento associadas ao Banco Mundial, se explica, primeiramente, pelo caráter fechado desse mercado de grandes obras. Carlos Medeiros, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada-Infraestrutura (Sinicon) reforça que, atualmente, cerca de 300 empresas, provenientes de 15 países, praticamente cartelizam esse mercado de grandes obras de infraestrutura. Estudo da LCA Consultoria mostra que, até 2004, cerca de 80% das grandes obras de infraestrutura latino-americanas eram dominadas por um conglomerado de empresas estadunidenses, espanholas, italianas e francesas, sendo a Espanha – economia longe do patamar de desenvolvimento industrial de Alemanha e França – responsável por 1/3 das obras na região. [5]
É sobre esse cenário mundial que se entende a política de promoção de serviços de engenharia levada à cabo pelos primeiros governos Lula e Dilma 1. O investimento brasileiro, a despeito de comparativamente pequeno – BNDES Exim e BB Proex somaram desembolsos de US$5,9bi, contra US$35bi do EximBank chinês; o Fundo de Garantia a Exportação (FGE) apoiou US$8,9bi, contra US$35bi de seu par espanhol CESCE -, produziu resultados importantes. Estes podem ser medidos, sobretudo, em dois indicadores econômicos: a geração de divisas e empregos no país.
Entre 2003 e 2012, o saldo líquido de serviços de engenharia mais que quadruplicou, saindo de menos de US$1bi para US$4,3bi, sendo um dos únicos setores de serviços a apresentar superávit. No acumulado do período, há um saldo positivo de cerca de US$20bi para o país. Mesmo o tão atacado mecanismo de empréstimo do BNDES para países tomadores de empréstimos para contratação de serviços brasileiros foi superavitário: até 2015, dos cerca de US$10bi emprestados, US$12bi foram pagos. Já com relação ao número de empregos gerados diretamente pela cadeia de obras de engenharia que, aqui, além das grandes construtoras engloba as médias e pequenas empresas contratadas durante a execução de grandes obras, há um salto de 402mil, em 2007, para 788mil, em 2014. O gráfico abaixo sintetiza o aumento da “fatia da pizza” brasileira no mercado de obras latino-americano. [6]
Do ponto de vista político, o uso das empreiteiras, historicamente, projetou o Brasil como uma liderança regional. A primeira obra internacional da Odebrecht (a hidrelétrica de Charcani, no Peru) foi parte de assinatura conjunta de acordos comerciais entre os países; tal situação se repetiria no Equador e Venezuela. A despeito das acusações de “subimperialismo” por parte do Estado brasileiro – tema este para um outro artigo -, a atuação das empreiteiras nacionais contribuiu para dotar uma região historicamente carente de obras de infraestrutura de elementos básicos quando se cogita algum nível de integração regional.
Dessa forma, um balanço mais honesto da política de campeãs nacionais e as empreiteiras nacionais parece um importante primeiro passo para uma discussão do papel do BNDES na exportação de serviços no governo Lula 3.
Um retorno ao passado?
Conforme sugerido por Dédalo ao seu filho Ícaro na famosa lenda grega, ao presenteá-lo com asas: nem tão ao céu e nem tão ao mar.
Discutir uma nova política para a empreiteiras nacionais, em 2023, se inicia por constatações que, em absoluto, não significam ignorar por completo as experiências anteriores.
Antes de mais nada, o Brasil vive hoje um déficit de infraestrutura de grandes proporções: em 2020, nosso investimento em infraestrutura foi de aproximadamente R$115bi, ou 1,55% do PIB nacional, o menor investimento nos últimos anos. Relatório elaborado pela Pezco Economics aponta para a necessidade de um salto na ordem dos R$339bi de investimentos públicos para combater nossos gargalos de infraestrutura [8]. Esse investimento propiciaria, também, uma maior geração de empregos: antes da deflagração da Operação Lava-Jato, a Odebrecht era a maior empregadora do país, superando, inclusive, a Petrobras. Assim, medidas como a de pagamento das dívidas dos acordos de leniência das empreiteiras com obras, como aventada pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, parecem alternativas interessantes ante essa realidade.
Além disso, há a possibilidade de aumento da fatia do Brasil no mercado mundial de grandes obras. Se, em 2015, o Brasil chegou a alcançar a participação mundial de 3,2% do mercado mundial de obras, a Turquia – economia menor e menos diversificada que a brasileira – detém, hoje, 4,4% desse mercado. Na América Latina, após um aumento da participação brasileira, conforme demonstrado em gráfico acima, hoje temos um cenário de mercado controlado pelas empreiteiras espanholas e chinesas.
Isso não pode significar, no entanto, uma mera busca por replicar um modelo passado. Em primeiro lugar, uma nova política de financiamento passa por debater insuficiências da experiência passada à luz das demandas de 2023. A discussão sobre o critério na concessão de empréstimos para outros países pelo BNDES é uma delas. Sempre tendo em vista o balanço global positivo desses empréstimos, casos pontuais, como o venezuelano, demandam maior atenção. A própria história da exportação de serviços de engenharia no país pode trazer exemplos interessantes nesse sentido: a discussão sobre o financiamento da construção da hidrelétrica de Capanda, na Angola, no fim dos anos 1980, é um desses exemplos. Tendo em vista a guerra promovida contra os comunistas do MPLA no país, o governo brasileiro da época firmou um complexo sistema de pagamentos envolvendo agências de financiamento brasileiras e angolanas, além da Petrobras e da Sonangol (petrolífera angolana), conhecido como Countertrade. Sistema semelhante foi utilizado também no Equador, também no fim dos anos 1980. Evidentemente, uma adaptação dessa estratégia pressuporia, entre outras questões, recuperar o caráter estratégico da estatal.
Uma outra questão é a política de juros para pequenas e médias empresas. Se, por um lado, o desenvolvimento das grandes empresas de engenharia afeta de forma positiva toda a cadeia produtiva do setor, que engloba as demais empresas, isso não deve implicar em uma ausência de política própria para as pequenas empresas. É daí que vem a importância das declarações de Mercadante de mudanças na Taxa de Longo Prazo (TLP) para contemplar essas empresas.
Em segundo lugar, é necessário visualizar as mudanças pelas quais passaram as grandes empreiteiras europeias a partir da segunda década dos anos 2000. A espanhola Dragados y Construcciones, parte do grupo ACS, e a italiana WeBuild, antiga Impreglio, são exemplos de grandes investimentos na área de energia verde e renovável. Para além de um marketing nessa área, esse reordenamento no perfil de construções buscou, sobretudo, se adaptar a uma demanda de mercado dos países “do norte”. A Acciona, que hoje constrói metrôs em São Paulo, é a mesma empresa que, na Alemanha, coordena obras para ampliar a geração de energia renovável do país. É sob esse contexto que devemos entender o discurso de Mercadante, ao assumir a presidência do BNDES, em que afirma estar “aqui não para debater o BNDES do passado, mas para construir o BNDES do futuro, que será verde, inclusivo, tecnológico, digital e industrializante” [9]. Em suma, o que propõe Mercadante é reconhecer as novas dinâmicas da indústria mundial.
Por fim, uma discussão que ganha projeção na França pode contribuir para a situação brasileira. Em um contexto de tentativa de reação aos subsídios estadunidenses na disputa pela vanguarda da transição verde, a política de campeãs nacionais passa por um balanço crítico, analisando a necessidade de uma abordagem mais ampla. Além de defender certo afrouxamento das leis de auxílio estatal da União Europeia, a França agora propõe um fundo de toda a UE para impulsionar setores estratégicos. A ministra francesa de Assuntos Europeus, Laurence Boone, afirma que: “Por muito tempo, confundimos política setorial com campeões nacionais. Estamos passando de uma abordagem em torno à empresa para uma abordagem em torno ao setor” [10].
Dessa forma, mais que um retorno ao passado, uma nova política para o BNDES e as empreiteiras precisará ser construída no governo Lula 3.
Considerações finais
Cerca de uma década se passou desde a deflagração da Operação Lava-Jato. Reconhecer o caráter político de desmonte de um setor estratégico da indústria nacional, no entanto, não deve resultar em uma busca pelo retorno a uma situação prévia. A necessidade do combate às narrativas que buscam caracterizar como fracasso e corrupção as políticas de desenvolvimento dos governos petistas, assim, devem servir ao propósito de limpar o terreno para a construção de um novo debate ao redor do tema empreiteiras e BNDES, tendo em vista o novo contexto em que vivemos. É do que precisará o novo governo Lula. É do que precisa o Brasil.
* Pedro Giovannetti Moura é professor de História. Doutorando em História pela UFRRJ. Mestre pelo IEB/USP.
[1]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/02/06/o-brasil-precisa-de-um-eximbank-defende-mercadante.ghtml. Acesso em 02/03/23.
[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/06/bolsonaro-agora-diz-que-caixa-preta-do-bndes-nunca-existiu.shtml. Acesso em 02/03/2023.
[3] AMSDEN, A. H. A ascensão do “resto”: os desafios ao ocidente de economias com industrialização tardia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p.336.
[4] JOHNSON, C. Developmental State: Odyssey of a Concept. In: WOO-CUMINGS, M. The Developmental State. Nova York: Cornell University Press, 1999. p.32-61
[5] Para uma análise mais ampla a respeito do significado desses dados, recomenda-se ver: MOURA, Pedro Giovannetti. A internacionalização da Construtora Norberto Odebrecht: desenvolvimento e integração latino-americana. 2020. 185f. Dissertação (Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras) – Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
[6] Sobre esse fenômeno, ver: MOURA, P.G. Internacionalização de empresas no mundo periférico: um estudo de caso da Construtora Norberto Odebrecht, Esboços, Florianópolis, v. 28, n. 49, p. 854-875, set./dez. 2021.
[7] LCA CONSULTORIA. Exportação de Serviços de Engenharia no Brasil: benefícios para a economia brasileira e mecanismos de apoio. São Paulo, Jan.2014.
[8] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/01/investimento-em-infraestrutura-tem-que-dobrar-para-brasil-dar-salto-de-competitividade-aponta-estudo.ghtml. Acesso em 10/03/2023
[9] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/discurso-de-posse-do-presidente-do-banco-aloizio-mercadante. Acesso em 10/03/2023.
[10] https://valor.globo.com/opiniao/coluna/ue-inova-com-industrias-verdes-estrategicas.ghtml. Acesso em 10/03/2023.
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