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    Jorge Folena

    Advogado, jurista e doutor em ciência política.

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    A despolitizacão da justiça é uma pauta histórica da esquerda

    "Entendo que a pauta da revisão do Poder Judiciário não pode ser interditada em decorrência dos posicionamentos apresentados pelos fascistas"

    Sede do Supremo Tribunal Federal (Foto: Dorivan Marinho/STF)

    Na primeira década do século XXI, o campo democrático, popular e progressista teve importante predomínio político em governos e parlamentos na América do Sul. Assim foi na Venezuela, no Equador, na Bolívia, na Argentina, no Uruguai e no Brasil.

    Nesses países, a classe dominante tinha como força auxiliar, entranhada na estrutura do Estado, o Poder Judiciário, que ao lado da Forças Armadas e da burocracia, é uma instituição historicamente oriunda do antigo regime feudal-absolutista que, mesmo não dispondo de representatividade – pois tem relativa autonomia administrativa e política, adaptou-se (como “o leopardo” de Tomaso di Lampedusa) plenamente às necessidades do Estado liberal, a fim de servir aos controladores do poder político.

    Assim, os governos populares e democráticos, ao longo da implementação de suas políticas públicas, sofreram violenta interdição, por meio de decisões judiciais que invadiam a esfera de competência dos Poderes Executivo e Legislativo.
    Em 2012, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, diante de um forte cenário de politização da justiça, assim falou: “o político superou o jurídico. O direito tem de se adaptar à vida e não a vida ao direito.”

    Naquela oportunidade, os veículos de comunicação da classe dominante incensavam o Poder Judiciário, por eles considerado indevidamente o “poder do século XXI”, afirmando que “sem um judiciário independente e eficaz não existe adequado controle do poder e, por conseguinte, efetiva garantia de respeito aos direitos humanos”.

    Isso também era afirmado por certos setores da esquerda no Brasil, que defendiam que a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 somente poderia ser alcançada pela força do Poder Judiciário.

    Assim, naquela época, muitos juízes deferiram medidas liminares que atrapalharam governos como o do então prefeito de São Paulo, professor Fernando Hadadd, que chegou a afirmar que a judicialização da política impedia a implementação de políticas públicas na sua cidade.

    Entre 2009 e 2011, o STF promoveu o festival de perseguições políticas ao longo do julgamento mediático do “mensalão”, que era transmitido quase que diariamente pelos canais de televisão, controlados pela classe dominante, para criminalizar a política e, particularmente, o partido dos trabalhadores.

    Em 2013, a presidenta Cristina Kirchner encaminhou ao congresso argentino projetos de lei para democratizar o Poder Judiciário, tendo afirmado que “a través de presentar medidas cautelares se interrumpe la aplicación de leys”. Cristina Kirchner tomou essa iniciativa porque, após o parlamento argentino aprovar a importante “lei dos meios”, que regulamentava o controle econômico das empresas de comunicação social, uma medida liminar suspendeu a eficácia da lei, aprovada em 2009 após amplo debate político na sociedade.

    Naquele mesmo ano, a Suprema Corte argentina julgou inconstitucional a lei 26.855, que ampliava de 13 para 19 o número de membros do Conselho da Magistratura e determinada que 12 deles seriam escolhidos pelo voto direto da população. O argumento de inconstitucionalidade era de que “a proposta feria o princípio da separação de poderes”, que, na verdade, é um instrumento de controle político, empregado pela classe dominante para manter o controle efetivo da estrutura do estado liberal. Importante registrar que o único juiz que votou favorável à constitucionalidade da referida lei foi o jurista Eugenio Raúl Zaffaroni.

    Ainda em 2013, houve no Brasil um debate semelhante, com o Partido dos Trabalhadores e suas lideranças questionando o comportamento político do Poder Judiciário. Num embate entre o deputado Marco Maia do PT/RJ e o então presidente da Câmara dos Deputados com Joaquim Barbosa, presidente do STF na época, este último, para reafirmar a autoridade do Tribunal, manifestou que “no Brasil, para qualquer assunto que tenha natureza constitucional, a palavra final é do Supremo Tribunal Federal (...) Não tenho nada mais a dizer.” Em resposta ao presidente do STF, Marcos Maia disse que “o Poder Judiciário tem se arriscado a interpretações circunstanciais da Constituição”, o que exigiria uma postura enérgica do Poder Legislativo.

    Dentre deste cenário, em que a politização da justiça impedia as ações políticas do campo popular, democrático e progressista, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou parecer favorável à PEC 33/2011, de autoria do deputado Nazareno Fonteles, do PT/PI, que estabelecia que deveria ser submetida a reexame pelo Congresso Nacional a decisão judicial que declarasse inconstitucional uma emenda à constituição, na medida em que a soberania popular efetiva reside não no poder judiciário, mas no parlamento e, assim, os representantes do povo é que devem efetivamente “dizer o que é a Constituição”.
    Curiosamente, no dia 24 de abril de 2013, quando foi aprovado o parecer pela constitucionalidade da PEC 33/2011, pela CCJ da Câmara dos Deputados, o ministro Gilmar Mendes deferiu medida liminar suspendendo o processo de votação do Projeto de Lei 14/2013, da Câmara dos Deputados, que estava em curso no Senado Federal, depois de aprovado pela Câmara, que tratava da transferência de parlamentares para outros partidos na mesma legislatura, de verbas do fundo partidário e da propaganda eleitoral.

    É importante lembrar que o mesmo ministro Gilmar Mendes, pressionado pela classe dominante e seus tentáculos inseridos nos meios de comunicação empresarial, em 2016 deferiu medida liminar impedindo a nomeação de Luís Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, tentativa da presidenta Dilma Rousseff de frear o “golpe com Supremo e tudo”, que culminou no seu impeachment.
    Como se pode verificar, as lutas pela democratização do Poder Judiciário e contra seus eventuais abusos constituem uma antiga bandeira empunhada pelo campo popular e progressista, o que mais sofre as perseguições impostas pela classe dominante.

    Ocorre que, em decorrência das medidas de enfrentamento ao fascismo no Brasil e da ameaça representada pelo governo de 2019-2022, que tentou impor uma ditadura no país, a bandeira da despolitização da justiça e da reforma democrática do Poder Judiciário foi deixada de lado pela esquerda.
    Ao mesmo tempo, essa pauta foi sequestrada pela extrema-direita, que ataca o sistema de justiça para tentar concretizar seus projetos de poder e ameaça cassar magistrados que simplesmente cumpriram a Constituição e trabalham para promover a responsabilização dos que tentaram dar um golpe de estado em 08 de janeiro de 2023.

    Contudo, a esquerda precisa retomar esse processo de luta histórica pela reformulação do Poder Judiciário, nos moldes do que está ocorrendo no México, cujo Parlamento aprovou lei para que os integrantes do poder judiciário sejam eleitos diretamente pela população. Precisamos nos reapropriar dessa pauta, necessária para oxigenar um poder essencialmente burocrático, até aqui empregado para a repressão da classe trabalhadora e a serviço da classe dominante, que joga negros e pobres aos milhares num sistema penitenciário já declarado pelo STF como um “estado inconstitucional de coisa”, que serve não apenas para “limpar” a sociedade, mas também para afastar, sempre que necessário, importantes dirigentes políticos do campo democrático, popular e progressista.

    Por tudo isto, entendo que a pauta da revisão do Poder Judiciário não pode ser interditada em decorrência dos posicionamentos apresentados pelos fascistas, devendo ser retomada por uma esquerda aguerrida e sem medo de encaminhar as necessárias discussões com a sociedade e todo o meio político.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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