A fome como arma letal em Gaza
O território palestino vive uma situação apocalítica
A fome tornou-se uma arma de guerra contra o povo de Gaza. Isso se soma à destruição de infraestrutura vital e às quase 47.700 mortes em Gaza desde o início da ofensiva militar israelense em outubro de 2023.
Uma recente declaração conjunta de quinze organizações das Nações Unidas (ONU) alerta para esta situação dramática: "Toda a população palestina no norte de Gaza pode morrer de doenças, fome e violência".
Pausa nas rodas humanitárias
Os dados oficiais das Nações Unidas são aterrorizantes. Em outubro passado, 85% das 98 missões humanitárias autorizadas a transportar ajuda para o norte da Faixa de Gaza foram impedidas ou simplesmente recusadas pelas autoridades israelitas. Um relatório da ONU da segunda semana de novembro indica que, em outubro, apenas 37% dos movimentos humanitários coordenados com as autoridades israelenses foram implementados sem problemas.
A meta -exigida até mesmo pelos Estados Unidos e muitas nações da comunidade internacional- de assistência humanitária equivalente à carga de 350 caminhões que entram em Gaza todos os dias já está muito distante. Nos sete dias da primeira semana de novembro, a ajuda total foi limitada ao que 480 caminhões conseguiram transportar pelas passagens de fronteira de Erez West, Kerem Shalom e o chamado Portão 96. Se o mandato das Nações Unidas tivesse sido cumprido, a ajuda essencial para abastecer os 2 milhões de habitantes de Gaza naquela semana teria que ser de pelo menos 2.450 caminhões.
Por essa razão, de acordo com fontes da ONU, um grupo de especialistas em crises alimentares alertou que é provável que um estado de fome generalizada já esteja sendo experimentado no norte de Gaza. Avaliando a situação humanitária, Philippe Lazzarini, coordenador da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA), disse esta semana nas redes sociais que "o Estado de Israel transformou a fome em uma arma" e que o que é permitido entrar em Gaza é "uma média de pouco mais de 30 caminhões por dia". Esse valor representa apenas 6% das necessidades essenciais da população (https://news.un.org/es/story/2024/11/1534191).
A UNRWA, que desde sua fundação em 1950 tem sido a principal organização internacional de apoio à população palestina, continua no olho do furacão devido às críticas sistemáticas de Israel. Em 28 de outubro, o Parlamento israelense aprovou duas leis que proíbem as atividades dessa agência em Israel e na Palestina. Na época, Israel acusou uma dúzia dos 13.000 funcionários da UNRWA na Faixa de envolvimento nos ataques de 7 de outubro de 2023. A UNRWA negou qualquer cumplicidade institucional com o Hamás e rescindiu os contratos desses funcionários. Ao mesmo tempo, a ONU abriu uma investigação sobre essas alegações. A ofensiva político-diplomática de Israel contra a agência teve seu impacto: muitos Estados reduziram parcialmente ou cortaram completamente seu apoio financeiro à UNRWA. Embora alguns deles o tenham restabelecido, a capacidade operacional da agência e até mesmo sua própria existência estão ameaçadas pelos múltiplos obstáculos que deve enfrentar no terreno para garantir sua missão cada vez mais difícil.
Segundo a ONU: Gaza "apocalítica"
Diante do aumento dos ataques aos territórios palestinos, em 1º de novembro, os chefes de quinze organizações das Nações Unidas emitiram uma Declaração exigindo o fim dos ataques contra o povo palestino em Gaza e contra todos os atores humanitários que estão tentando ajudar.
Entre os signatários estão os diretores-gerais da Organização Mundial da Saúde (OMS); do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR); do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); do Programa Mundial de Alimentos (WFP, em inglês); do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Também é assinada pelos chefes da ONU/Mulheres; do Conselho Internacional de Agências de Voluntariado; da Relatora Especial das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos das Pessoas Deslocadas Internamente e do Diretor do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos (UN-Habitat). O presidente da ONG internacional Oxfam se junta à lista de signatários (https://www.who.int/es/news/item/01-11-2024-statement-by-principals-of-the-inter-agency-standing-committee---stop-the-assault-on-palestinians-in-gaza-and-on-those-trying-to-help-them).
Essa posição conjunta pede "mais uma vez que todas as partes envolvidas no conflito em Gaza protejam a população civil" e também exige que "o Estado de Israel pare seus ataques a Gaza e ao pessoal humanitário que tenta fornecer assistência". O documento considera "apocalíptica" a situação no norte da Faixa, onde a população não tem acesso a assistência básica ou suprimentos vitais. A situação médica é desastrosa porque "os hospitais mal recebem suprimentos; na verdade, eles se tornaram alvos, matando pacientes, perdendo equipamentos essenciais e interrompendo serviços vitais".
Os promotores da Declaração afirmam que "dezenas de escolas que funcionavam como abrigos foram bombardeadas ou evacuadas à força; assim como as tendas em que as famílias deslocadas estavam abrigadas. Na verdade, algumas pessoas foram queimadas vivas. As equipes de resgate foram deliberadamente alvejadas. Além disso, seus esforços para resgatar pessoas sob os escombros foram prejudicados."
De acordo com a Declaração, a vida e a infraestrutura produtiva na Faixa de Gaza estão sofrendo uma situação catastrófica: "A população civil, que está fazendo o possível para chegar à segurança, também se tornou um alvo. Além disso, homens e meninos estão sendo detidos e levados para locais desconhecidos... O gado está morrendo, as plantações estão sendo destruídas, as árvores estão sendo arrasadas pelo fogo e a infraestrutura agrícola foi severamente danificada.
Essa realidade é ainda mais complicada pelo fato de que "as restrições impedem que a assistência humanitária atenda às enormes necessidades existentes. Os bens básicos são escassos. O pessoal humanitário está em risco na realização de seu trabalho. Além disso, a insegurança e o exército israelense o impedem de alcançar as pessoas que precisam de ajuda".
Israel viola o Direito Internacional Humanitário
Em outubro passado, e em resposta à adoção de novas leis pelo parlamento israelense que dificultam o trabalho da UNRWA e revogam a imunidade e os privilégios da organização, a Declaração da ONU adverte que, se implementadas, "essas medidas podem resultar em uma catástrofe para a resposta humanitária em Gaza, que não apenas viola o Estatuto das Nações Unidas; as implicações para os direitos humanos para os milhões de palestinos que dependem da assistência da UNRWA também podem ser devastadoras".
Além disso, as várias agências que assinam a Declaração Conjunta denunciam que essas leis "constituem uma violação das obrigações de Israel sob o direito internacional". Por isso, eles falam energicamente: "Diremos claramente: nada pode substituir a UNRWA. O flagrante desrespeito pela humanidade e pelas leis da guerra deve acabar. Como "toda a região está à beira de um precipício político", conclui a Declaração, é essencial que as hostilidades cessem e um cessar-fogo sustentado seja alcançado.
Passos para aliviar o sofrimento
As medidas para aliviar o sofrimento das agências da ONU antecipam meia dúzia de medidas imediatas para reduzir o impacto mortal do conflito: é necessário parar os ataques à população e à infraestrutura civil e garantir o acesso irrestrito à ajuda humanitária. Tão urgente quanto isso é que os produtos comerciais entrem em Gaza. Além disso, os feridos e doentes devem receber os cuidados de que necessitam; o pessoal médico e os hospitais não devem ser visados; não há razão para os hospitais se tornarem campos de batalha.
As agências da ONU insistem na libertação de palestinos detidos arbitrariamente e instam Israel a cumprir as decisões e ordens provisórias da Corte Internacional de Justiça. Ao mesmo tempo, eles instam o Hamas e outros grupos armados palestinos a libertar os reféns imediatamente e a respeitar o direito internacional humanitário.
A reflexão final da Declaração da ONU é dirigida à comunidade internacional e aos países diretamente envolvidos no fornecimento dos meios de guerra que alimentam o conflito no Oriente Médio: "Os Estados-membros devem garantir a observância do direito internacional, incluindo a suspensão do envio de armas quando houver um risco claro de que elas sejam usadas em violação do direito internacional".
Perspectiva desumanizada
No final de outubro, uma avaliação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da Comissão Econômica e Social das Nações Unidas para a Ásia Ocidental (ESCWA) estimou que a pobreza no Estado da Palestina em 2024 chegará a 74,3%, afetando mais de 4 milhões de pessoas, incluindo 2.600.000 novos pobres.
A avaliação, intitulada Gaza War: Expected socioeconomic impacts on the State of Palestine (Guerra de Gaza: impactos socioeconômicos esperados no Estado da Palestina), também estima que o produto interno bruto (PIB) este ano se contrairá em 35,1% em comparação com um cenário hipotético sem guerra, e que o desemprego pode chegar a 49,9%. No Estado da Palestina, projeta o documento, o Índice de Desenvolvimento Humano retrocederá 24 anos, e na Faixa de Gaza o retrocesso será igual aos níveis de 1955, ou seja, 69 anos atrás.
A situação atual em Gaza, na Palestina e no Oriente Médio está além de toda a lógica e excede em muito os diagnósticos mais sombrios imagináveis. Um conflito em que está em jogo muito mais do que a própria sobrevivência de milhões de palestinos porque, como se fosse um apocalipse diário, já está dividindo as águas da própria consciência da civilização humana.
Tradução: Rose Lima
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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