A segunda morte da menina Ágatha. Que show da justiça é esse?
Vidas de crianças pretas e periféricas não importam para a sociedade e para a justiça burguesa brasileira
“Eu tô com ódio!”, desabafa Daniele Lima Félix, tia da menina Ágatha Vitória, morta com um tiro nas costas disparado por um policial militar, ao saber da sentença que absolveu o assassino de sua sobrinha de apenas 8 anos de idade. Eu também estou com ódio. Todo ser humano que se dê o respeito e que respeita a vida do outro, também deveria estar com ódio. O conselho de sentença, formado por 5 homens e duas mulheres, deveria estar com ódio de suas inúteis e desqualificadas existências. A justiça deveria estar com ódio de si mesma por ter que proclamar tal decisão. Deus deveria estar com ódio ao ver mais uma, entre tantas outras centenas de crianças inocentes, perder a vida de forma tão cruel e violenta. A tão temida ira divina que os fundamentalistas religiosos costumam invocar sobre as pessoas que não professam a mesma insanidade de fé que eles, deveria cair sobre todos os envolvidos nessa absurda absolvição.
Não estamos falando de um caso isolado, onde uma criança foi baleada sem querer pela primeira vez na história do país. Estamos falando de um modus operandi assassino adotado por uma polícia, que assume a responsabilidade de matar pessoas pobres, pretas e periféricas indiscriminadamente por meio de suas ações “estratégicas”. Na noite da última terça-feira (5), Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos de idade, também foi morto pela munição de um policial militar na Baixada Santista, após mais uma suposta operação de combate ao crime. E para deixar mais explicitado que a polícia veio para roubar (e os 21 PMs presos por extorsão na última quinta-feira, no RJ, não deixam a profecia mentir), matar e destruir, agentes compareceram ao velório do menino para intimidar possíveis protestos contra a ação que resultou na sua morte. Há poucos dias tivemos policiais invadindo outro enterro e agredindo os familiares do defunto que eles haviam matado. A polícia é o diabo de farda. Mas dizem que o diabo só age com a permissão de Deus. O Estado.
Uma prova de que não há exagero ou desrespeito a polícia militar neste artigo, são os números do relatório “Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão”, divulgado na última quinta-feira (7), mostrando que 243 mortes de crianças e adolescentes foram registradas em nove estados brasileiros em 2023, como resultado de intervenção do Estado. Os dados da Rede de Observatórios da Segurança também revelam que 4025 pessoas foram mortas pela polícia em 2023, nos estados do Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Dessas mortes, havia informação sobre raça para apenas 3169 pessoas, das quais 87,8% (2782) eram negras. O que equivale a uma pessoa negra morta pela polícia a cada quatro horas em apenas 1 ano. Segundo uma reportagem publicada no site da BBC Brasil, em vários estados em 2023, a proporção de negros mortos pela polícia é maior que a proporção de negros na população. Isso é normal?
Entre as crianças mortas pela polícia em 2023, estão Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, morto durante uma operação na Cidade de Deus, no RJ, e Eloáh da Silva dos Santos, de 5 anos, morta pela polícia no Morro do Dendê, zona norte da cidade carioca. Em 2020 as vítimas foram João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos; Alice da Silva Almeida, de 3 anos; Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos. Antes de Ágatha, foi a vez de Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, baleada dentro da escola em 2017. Todas essas crianças têm algo em comum. Seja na cor da pele ou na condição social dos bairros onde moravam. Por que crianças não são baleadas sem querer em Alphaville ou no Leblon? Nesses lugares não tem criminosos ou a polícia não costuma realizar operações nessas regiões? Se começarem a realizar, talvez a guerra ao tráfico e o combate aos verdadeiros donos das drogas se torne mais efetiva.
Ágatha carregou a vitória apenas em seu nome. A polícia e a justiça impuseram a ela uma derrota fatal. A morte dupla. Uma sentença que deixa como recado que vidas de crianças pretas e periféricas não importam para a sociedade e para a justiça burguesa brasileira. É normal estar com ódio. Quem não está, perde a humanidade e a capacidade de se indignar com a violência, e naturaliza o absurdo. “Eu não estava entendendo. Aconteceu um barulho que parecia uma bomba e ela gritando ‘mãe, mãe, mãe’. Eu falando ‘filha, calma”, relatou Vanessa Sales, mãe de Ágatha, durante o julgamento do assassino de sua filha. A mãe não estava entendendo que a sua filha de apenas 8 anos de idade, havia levado um tiro e estava morrendo ao seu lado, dentro de uma kombi de transporte de passageiros. Quem entenderia? Um policial que tivesse com a sua filha na mesma situação entenderia? O Comandante da polícia entenderia? O Governador entenderia? E se Ágatha, Eloah, Thiago, Ryan, João Pedro, Alice, Maria Eduarda, Emily, Rebecca, e as outras centenas de crianças mortas pela polícia fossem um dos nossos filhos? Nós entenderíamos?
“A Justiça deste país é lamentável, mas a Justiça de Deus não vai falhar”, disse a tia de Ágatha, cheia de ódio e esperança num Deus que nos ensinaram que sabe o que faz, e que nada acontece sem a sua permissão. Partindo desse pressuposto, a sentença da justiça dos homens parece estar respaldada pela justiça divina. Deus quis assim. Uma vez que se ele permitiu, é porque ele não quis impedir que acontecesse. Será mesmo? Apesar de os seres humanos fazerem de tudo para que eu mude de ideia, eu sigo crendo em Deus. Num Deus que, por amor à humanidade, deu livre arbítrio para agirmos e sermos responsabilizados por nossos atos. Responsabilização é o que está faltando para quem acha que pode agir como bem entende. Mas quem deveria responsabilizar e punir essas pessoas? Deus. O Estado. Mas ele não tem amor pela humanidade. O sistema não te ama e o senhor da guerra não gosta de crianças pretas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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