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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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A sociedade digital e a falência da ética

A sociedade digital já é uma sociedade sem ética

(Foto: Pixabay Free)

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As possibilidades interpretativas acerca dos usos de plataformas digitais são infinitas. O evidente é que, para termos acesso a este universo, temos de entregar uma parte de nosso ser. É o que está explícito na ideia de dilema das redes: poder e conhecimento em troca da alma: o digital é o Mefistófoles de nossos tempos. Mas há algo que sobeja no nervo entre o prazer e o desprazer, entre a sensação de poder e a culpa trazida pelo veio da realidade. O dilema, como parte constitutiva da experiência humana, é quem cobra o poder de decisão e responsabilidade: o dilema é o leitmotiv da ética. E este é o ponto nevrálgico da questão. O dilema das redes configura um tipo não coincidente aos dilemas habituais da vida. Ocorre que, como um imenso espelho, as redes possuem qualquer coisa de sombra e de reflexo, um espaço “etéreo”, como escreveu o filósofo alemão Christoph Türcke, estranho ao mundo da vida propriamente dita.

A ética possui duas características centrais: a política e o segredo. A ética é política porque sua razão de ser encerra-se no coletivo: é a virtude máxima da política e a palavra mais frequente em políticos de boa cepa - aqueles que possuem um compromisso genuíno com o bem público. A ética, portanto, é uma atitude individual conectada à coletividade: é a função entre indivíduo e sociedade. A ética possui, ademais, um sentido de segredo perante o mundo: é o juízo moldado pelo sacrifício. O segredo da ética coaduna-se à estética. A beleza de um tigre oculta seus órgãos, seu fígado encontra-se entremeado de uma complexa estrutura de sangue, tendões, tecidos, glândulas e nervos. Virado ao avesso, veríamos um animal com diversos órgãos latejando ao longo de sua estrutura. Mais: ele deixaria rastros de sangue e fluídos corporais, enquanto seu coração sujo de terra, permaneceria respirando como um pequeno animal pendurado em seu peito. Um tigre assim é inconcebível na natureza, sendo possível apenas em nossa imaginação. A ética é o segredo necessário à vida. Assim, ocultar-se é condição sine qua non para a aparição. Não para uma aparição qualquer, mas para aquela coincidente aos objetivos da coletividade, para a ordenação da própria realidade, para a construção do que chamamos de verdade. Esta é a premissa do que sedimenta a dialética do público e privado - estrutura solapada nas sociedades contemporâneas. Daí porque é cada vez mais raro encontrarmos na atividade humana aqueles que pautam a existência sob princípios éticos. Uma vez diluída a fronteira entre o espaço público e privado, evocar a ética acompanha o risco de pisar sob o véu da superfície. Porque a ética é essencial à sociedade, uma vez que equilibra as forças entre o indivíduo e o grupo, imaginar uma sociedade sem ética implica considerar o colapso da própria sociedade. A ausência de ética acentua a fragmentação social; da classe trabalhadora aos grupos identitários; dos grupos identitários às bolhas ideológicas; das bolhas ideológicas ao autismo cultural. Segue-se à falência da ética a falência da linguagem, já não mais necessária na sociedade visceral em que vivemos.

A isso segue-se que o imperativo que clama pelo debate sobre a ética acerca do uso que fazemos nas plataformas digitais depara-se com o seguinte problema de saída: a sociedade digital já é uma sociedade sem ética. Toda vez que a acessamos (falar nestes termos é eufemismo em um contexto em que nos vemos mergulhados até a cabeça pelo Big Data), entramos em um mundo sem ética. Ou, caso prefiram: em um mundo “transparente”. Falamos de uma tecnologia que não visa apenas facilitar nossas vidas por meio de robôs, mas de uma tecnologia que visa, por meio de um projeto inscrito no DNA dos algoritmos, exterminar a ética. O digital não possui responsabilidade com o mundo da vida. Sua gênese resulta de sonhos e fantasias. Sua estrutura segue a lógica do inconsciente. É o mais imenso material psicanalítico já produzido. Redes sociais como o TikTok, Facebook ou Instagram são divãs virtuais: neles concentram-se os derivados da consciência, nessas plataformas revelam-se o Id e o Superego, a frustração e os sonhos da vida projetados em mundo de avatares e de prazeres infinitos. O digital não necessita do Eu porque não há princípio de realidade tangível. A crítica inerente à psicanálise desaparece na sociedade digital porque a própria vitalidade do segredo encontra-se sob permanente ameaça. O segredo - esse laboratório fervilhante de sonhos tão necessário às representações - perde sua razão de ser no digital. 

A necessidade da ética sobre o uso do ambiente digital, portanto, deve considerar sua estrutura refratária, estranha à ética. No mundo digital a ética é um forasteiro relegado à margem pela autoridade dos algoritmos. 

Deste modo, a mera prescrição sobre a ética como um debate necessário sobre o digital pode não passar de mera ingenuidade se não levarmos em conta as artimanhas do poder entranhados em sua própria engenharia. Assim como o valor supremo da democracia, a liberdade de expressão, é cooptado pela lógica do “livre” mercado, culminando na principal ameaça à própria democracia; assim a ética que orienta o mundo da vida é cooptada pela sociedade digital ameaçando a própria ética como princípio norteador da vida em sociedade.Sem o acesso democrático à caixa preta do digital, o debate sobre a ética não passa de uma falácia. O Estado deve assumir o digital, já que a própria sociedade - como se jactam os ideólogos high tech - se converteu (ou foi capturada) em sua totalidade pelo digital. 

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