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    Luciana Sérvulo da Cunha

    Documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena de combate à violência contra a mulher.

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    A violência contra Dani Calabresa e a cruel conivência da Rede Globo

    Um país que ignora os altos índices de violência contra a mulher, pouco estuda cientificamente os perfis e as relações entre vítimas e agressores (as), acaba alimentando o silêncio cortante que beneficia agressores (as)

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    Começo essa escrita expressando minha solidariedade e meu carinho à Dani Calabresa exaltando sua coragem em denunciar o ex-humorista Marcius Melhem por assédio moral e sexual na Rede Globo, depois de ter percorrido um longo caminho interno na empresa, sem que essa lhe tenha a acolhido de forma apropriada ou tomado as devidas e necessárias providências, agravando o seu sofrimento. Aconselhando a atriz a fazer terapia, dando assim a entender que a culpa e o problema seriam da vítima e protegendo o agressor, a Rede Globo deixou evidente o que é e como opera o machismo estrutural. Manifesto também o desejo de que não precisemos mais ressaltar e admirar a coragem de uma mulher quando ela viveu o inferno, teve sua vida despedaçada e por uma questão de sobrevivência do seu corpo fragmentado e sua alma roubada, tem que gritar suas feridas. Sim, estupradores são ladrões de corpos e não se diferenciam de abusadores (as), ladrões (as) de almas. Que nós mulheres possamos viver em um mundo onde não precisamos mais ser injustamente corajosas assim!

    Passar por uma relação abusiva com pessoas famosas, admiradas, adoradas e seguidas por milhões de pessoas é o pior dos mundos, pois além do fato de, involuntariamente, termos que trombar constantemente com essa pessoa e a sua “arte” na grande mídia e nas redes sociais, engolimos a seco e revivenciamos dor a cada vídeo, show, espetáculo e comentários nos grupos de WhatsApp, geralmente seguidos de infinitos coraçãozinhos iludidos acompanhados de um surreal “perfeita”(o) ou “phodástico (a)”, nos trazendo a sensação de uma impotência corrosiva e massacrante, sentindo na pele o que significa ter que lidar com a opressão do status e o “poder” da imagem em uma sociedade narcísica onde eles (as) são eleitos Reis e Rainhas. Falo do lugar de quem viveu uma relação de abuso emocional com essas características e até conseguir entender, aceitar e principalmente nomear que o que tinha acontecido comigo se chama “violência psicológica”, levou muitos tempos. Outro tempo tão longo, tem sido a profunda busca pela cura, pois o abuso emocional pode ser devastador para a saúde mental, causando imenso sofrimento psíquico.

    A violência psicológica é a violência mais comum praticada contra as mulheres e uma das mais difíceis de ser reconhecida e combatida. Seja pela cultura machista e patriarcal em que somos criadas e estamos inseridas, seja pela falta de pesquisa, informação e ferramentas de combate a esta violência tão naturalizada e enraizada no cotidiano das brasileiras ou pelas suas características específicas: o abuso emocional não deixa marcas físicas. Ele é uma violência silenciosa por ser velada e insidiosa.

    A violência psicológica está centrada na questão do poder e domínio sobre o outro e pode ser executada por pessoas com perversão narcísica ou algum tipo de transtorno de personalidade. Conforme o psicanalista e filósofo André Martins define, “a vítima a sofre de maneira silenciosa porque se trata de uma violência não assumida e negada pelo (a) agressor(a), que sutilmente inverte a relação acusando o outro de ser o culpado pela situação. Desta forma, a vítima se sente confusa e acaba por sentir-se culpada, o que, por sua vez, inocenta o (a) agressor(a). Não se trata de uma violência física, e esta não é pontual: estende-se ao longo do tempo. Como essa não é uma perversão explícita, ao contrário, ela se mistura no dia a dia, nos pequenos atos, nas pequenas relações, passa despercebida”. Assim, o (a) agressor (a) vai deturpando de maneira sutil e pejorativa a visão que a vítima tem de si, retirando sua vitalidade e vivacidade, diminuindo, humilhando, fazendo ruir sua auto-estima e sua paz interior, a induzindo a um estado de confusão, vulnerabilidade e consequentemente, de dependência emocional, “levando um longo tempo para a vítima perceber, e sobretudo para reconhecer, estupefata, que está presa numa teia”.

    O abuso emocional geralmente está presente em todas as outras formas de abuso e pode ser uma porta para outros tipos de violências, como a violência sexual. Ele pode começar de forma sutil, com desencorajamentos à realização de projetos próprios, por um constante apontar de erros, falhas e defeitos da vítima bem como a subestimação de sua capacidade, até chegar à xingamentos, gritos, cobranças excessivas, falsas acusações, perseguição, desautorização das decisões pessoais (roupas, escolhas, amizades, horários, estudos/trabalho), chantagens, ameaças, depreciações, ciúmes frequentes, ironias e exposição da figura. Alguns exemplos aqui dados podem parecer óbvios, mas ressalto que quando o abusador (a) lança mão deles em uma relação, seja ela amorosa, uma relação de amizade ou de trabalho, a presa já está enredada em sua teia e não consegue ter clareza suficiente para assim perceber. Algumas relações onde já existe um nível de entrega e confiança da parte da vítima, o abusador (a) não precisa fazer uso de uma violência mais explícita, bastando manter um comportamento sedutor e encantador com medidos tons de manipulação e dubiedade com o clássico “morde assopra” ou a prática do sumiço e silenciamento, uma vez que o amor e a paixão da vítima já é o suficiente para servir de seu suprimento narcísico. 

    Pondero aqui que pessoas narcísicas perversas podem estar presentes em nossas vidas em um número muito maior do que possamos imaginar e elas geralmente tem por características imediatas a inteligência, a sedução, a gentileza, a diplomacia, a boa retórica e muitas vezes, o bom humor. Elas não chegam com o pé na porta...não existe abusador ou abusadora que não seja atraente e encantador(a) e é justamente dessa forma que ela atrai suas futuras vítimas. Conforme vamos convivendo na intimidade com eles (as), o que percebemos é uma insegurança gritante, uma inveja incontrolável, uma solidão colossal, uma falta de empatia abismal, uma constante angústia em meio a grande imaturidade emocional e uma incapacidade total de compartilhar suas dores, pois não conseguem olhar pra dentro profundamente e lidar com seus próprios sentimentos e emoções. O (a) narcisista perverso (a) é incapaz de admitir seus erros, sempre se colocará como vítima e projetará nos outros as suas dificuldades, os seus monstros internos e todos os fracassos de sua vida, justificando assim as punições e crueldades que comete e cometeu ao longo de sua vida em muitas relações abusivas, tendo deixado vidas, literalmente, como terras arrasadas.

    Além da violência sofrida, muito está oculto no silêncio doído das vítimas e na omissão dos (as) agressores(as). Um país que ignora os altos índices de violência contra a mulher, pouco estuda cientificamente os perfis e as relações entre vítimas e agressores (as), acaba alimentando o silêncio cortante que beneficia agressores (as), levando as vítimas à depressão, em alguns casos ao suicídio ou à morte por doença degenerativa grave, mantendo assim intacto o ciclo de abusos. O pouco que se estuda no Brasil, limita-se em geral ao assédio moral no trabalho, mas que, devido ao preconceito, à misoginia e ao racismo estrutural que permeiam a nossa sociedade e a elite brasileira, faz com que os resultados desse combate seja cada vez mais favorável aos agressores(as). Considerando também um judiciário seletivo, principalmente quando uma boa parte desses agressores (as) são pessoas dotadas de algum poderio (capital político, financeiro, religioso ou artístico) e as vítimas, além do dano psicológico sofrido, ainda devem lidar com a pressão da opinião popular, ou as ameaças e retaliações dos(as) agressores (as), seus cúmplices, fiéis seguidores e toda sua rede de poder a lhes garantir imunidade e proteção.

    Por isso que hoje, por mais torto ou doído que pareça, é um dia para ser lembrado. Por maior “poder” que uma grande empresa ou uma imagem possa ter nessa nossa doente sociedade narcísica do espetáculo, quando vazia, ou melhor, quando construída ou alimentada e mantida com energias sugadas e almas roubadas, ela vai, ahhh se vai, um dia, murchar e cair! 

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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