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    Ramon Brandão

    Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    23 artigos

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    Agudizar o real: entre as sombras do “amanhã sem medo” e a coragem do saber filosófico

    Todos sabemos que nossas vidas são constituídas de conflitos, de improvisos, de tentativas mal sucedidas, de equívocos e, portanto, de erros. Por que haveria de ser o mundo, povoado por homens e mulheres conflitantes, diferente?

    Todos sabemos que nossas vidas são constituídas de conflitos, de improvisos, de tentativas mal sucedidas, de equívocos e, portanto, de erros. Por que haveria de ser o mundo, povoado por homens e mulheres conflitantes, diferente? (Foto: Ramon Brandão)

    No célebre livro “Além do Bem e do Mal”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche observou o surgimento de um ideal de vida que marca o nosso tempo. “Queremos que algum dia não haja nada mais a temer!”, afirma. Assim, uma das marcas da contemporaneidade seria a crença em uma vida futura onde todas as ameaças seriam dizimadas, onde todas as diferenças fossem incorporadas ao mesmo e onde o sentimento de inquietação oceânica se transformasse em um imenso remanso de águas estáticas.

    É um ideal e um desejo que aparece em nossa conflitante atualidade com tanta intensidade e força que se torna irresistível. O ideal da vida mansa e da vida segura se transformou em algo digno de crença e adoração.

    O fato é que essa ideia do “amanhã sem medo” é, na realidade, um movimento reativo. É uma reação impotente que se resigna ao mundo conflituoso (e conflituoso desde sempre) no qual vivemos. Ora, já que nos resignamos à teia de lutas que compõe a vida, acabamos projetando um amanhã abstrato onde haverá paz e sossego.

    Um dos efeitos imediatos e mais perversos dessa fuga em direção às sombras do ideal é, precisamente, o efeito de abrirmos mão da força e da obstinação necessárias à compreensão e transformação do mundo real e efetivo. Nossa potência de vida é capturada por essa “vontade de amanhã” e retorna ao mundo real em forma de difamação e autoritarismo. Não deveria ser preciso lembrar que este mundo, que certamente agoniza, é o único mundo que temos. É a única materialidade possível. A resignação é uma das principais armas do covarde, que despreza aquilo que tem em prol de algo que não passa, quando muito, de uma utopia impotente e egoísta.

    Para compreender o mundo que temos e a realidade da qual gozamos é preciso deixar tal comportamento de lado. Talvez mais, talvez seja necessário dizer “sim” ao mundo e a aceitá-lo em toda a sua penúria. Que as agonias, crises e violências que assistimos todos os dias sejam o combustível que nos move em direção à transformação. Que sejam os obstáculos a serem superados.

    Todos sabemos que nossas vidas são constituídas de conflitos, de improvisos, de tentativas mal sucedidas, de equívocos e, portanto, de erros. Por que haveria de ser o mundo, povoado por homens e mulheres conflitantes, diferente?

    A aventura de existir implica riscos, implica confrontos, implica coragem e curiosidade frente ao desconhecido. Características que viabilizam, certamente, a transformação tanto de si quanto do mundo. Muitos foram os filósofos e grandes pensadores da humanidade que evocaram essa espécie de coragem miúda, discreta, rara: a coragem de acolher mansamente os erros e as tentativas fracassadas, transformando-as em potência de agir.

    Essa tarefa, no entanto, não é tão fácil quanto parece e alguns cuidados são importantes. Por exemplo: é facilmente perceptível nas atuais manifestações populares contra a violência palavras de ordem que, em alguma medida, atualizam esse ideal do “amanhã sem medo”. São muito comuns, nesses eventos, bandeiras do tipo: “Até quando?”; “Queremos segurança!”, etc.

    A repetição recorrente dessas palavras de ordem talvez funcione como agente inibidor da brutalidade bestial das massas. No entanto, é certo que também reforça algumas tendências embrutecedoras, isto é, acaba por fortalecer algumas das linhas de força autoritárias que atravessam o corpo do homem contemporâneo.

    Alguns não se dando conta e outros (com seus gananciosos interesses) não somente percebendo, mas disseminando tal ideia voluntariamente, cobram do Estado a realização – a custos cada vez maiores – deste ideal. Essa linha de pensamento cobra um tipo de ação que abençoa a violência do Estado na arena de disputa da vida.

    Frente a tal questão, como não rememorar as perguntas elaboradas por Foucault no prefácio do livro “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari?

    “Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário? Como desentranhar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Como nos livrar do fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora?”

    Na medida em que esse “amanhã sem medo” se distancia da nossa realidade (ou na medida em que as pessoas conseguem enxergar a inviabilidade absoluta dessa utopia estéreo e pouco complexa), o clamor por segurança, controle e punição aumenta. As súplicas por resoluções desproporcionalmente enérgicas são dirigidas às autoridades e às instituições de segurança e controle que, por sua vez, encarnam o poder soberano do Estado.

    O que talvez não tenhamos compreendido, no entanto, é que a abertura para novas possibilidades de vida não reside na força policial e no exercício autoritário da lei, mas, antes, na destruição de velhos ídolos, de velhas práticas, de velhos ideais e de velhos hábitos de pensamento. A abertura para novas possibilidades de vida implica audaciosas recusas, implica resistência, implica gestos transgressores.

    Não me agrada o termo, mas trata-se, efetivamente, de uma guerra contra a subjetividade e os modos de subjetivação vigentes. Uma guerra pois trata-se de luta, de afrontamento, de confrontos internos e externos.

    Nietzsche ilustra com brilhantismo tal ideia no Prefácio do livro “Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar com o martelo”:

    “A guerra sempre foi a grande prudência de todos os espíritos que se tornaram por demais ensimesmados, por demais profundos; a força curadora está no próprio ferimento”.

    A busca por tudo aquilo que é estranho e questionável no existir e de tudo aquilo que a moral baniu deve ser permanente. Cada conquista, cada passo adiante no conhecimento – de si e do mundo – é uma consequência da coragem por enfrentar o desconhecido, por recusar as normas e morais do nosso tempo.

    A filosofia se faz tão importante e crucial na atualidade como, talvez, jamais o tenha sido; e filósofos como Nietzsche, Foucault e Deleuze, propagando práticas filosóficas que valorizam a luta, o afrontamento no trabalho de desconstrução e metamorfose de si são, me parece, os que mais nos ajudam no embate contra os dispositivos inibidores da potência de vida.

    Pois o que devemos ser, nós, os indivíduos do presente? Não imagino outra coisa senão corpos explosivos diante do qual todos os ideais correm perigo. Devemos ser como Foucault aos olhos de Deleuze:

    “Foucault sempre invoca a poeira ou o murmúrio de um combate, e o próprio pensamento lhe aparece como uma máquina de guerra. É que, no momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se [...] um ‘ato arriscado’, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo”.

    Essas imagens, evidentemente, não nos conforta e sequer nos tranquiliza. Essa não era, aliás, a intenção de tais pensadores. Pelo contrário, sua intenção era a de tornar mais aguda a crise do pensamento e da moral que nos dirige. Eles não acreditam numa transformação pacífica; antes, creem na transformação pela resistência agônica, pelo embate, pelo choque. Somente através deles é que tornaremos urgente a necessidade de repensar os princípios éticos e os modos de ação que tomamos como verdadeiros, como corretos e como justos.

    São essas imagens – imagens de uma inserção corajosa no mundo – que, talvez, seja interessante evocar a fim de não nos apequenarmos ainda mais; a fim de que não nos envergonhemos ainda mais por não encontrar saídas para o impasse que nós mesmos criamos; vergonha por, quando muito, repetir velhas e ineficientes fórmulas (mais prisões, mais polícia, mais controle das liberdades, enfim, mais autoritarismo em nossas vidas), mesmo que elas sejam reconhecidamente nulas e estéreis na resolução dos problemas.

    Como, então, lançar uma crítica que vá além da ótica moralista e, portanto, superficial da qual preguiçosamente nos habituamos? É certo que Nietzsche, Foucault e Deleuze nos coloque algumas pistas. O que está em jogo, segundo eles, é o modo através do qual nos relacionamos com a verdade e, portanto, no fim, o modo através do qual nos relacionamos com a própria moral.

    Assim, a necessidade imediata da atualidade, ao menos por um instante, é a de se afastar das normas vigentes, dos hábitos de pensamento cotidianos para, então, nos aproximarmos de uma percepção agudizada do real. Não mais os ideais, mas aquilo que nos toca o corpo. Não a abstração, a utopia, o moralismo inaplicável; mas a percepção profunda e sensível daquilo que nos diz a materialidade do real. Perceber as imposições, castrações e violências que a realidade política nos faz sofrer... e transmutá-las.

    A transformação do mundo não reside, portanto, na violência institucional. Nunca esteve nela e jamais estará. Também, ao que parece, não reside numa ideia abstrata de fraternidade e comunhão. Existe um impulso em nossos corpos que sempre nos conduz ao confronto, ao embate; e me parece residir aí a fonte de uma transformação possível. Ademais, o confronto e o embate não se reduzem, não podem se reduzir, a uma relação de imposição bélica. Significa, antes, o embate orgânico entre dois corpos que se encontram; entre duas singularidades que, através da diferença, desenvolvem uma visceralidade outra. Representa, no fim, o destemido encontro com o acaso, com as exterioridades, com os devires; por último, significa desnudar nossos corpos para lidar, de maneira não fascista, com as linhas de força que nos atravessam.

    Para que consigamos recusar o ideal inaplicável do “amanhã sem medo” e, consequentemente, para que paremos de difamar a realidade efetiva; para extinguir a semente fascista que habita os nossos corpos e para que superemos a superficialidade da indignação moralista é preciso adotar uma espécie de coragem filosófica – tema muito caro aos filósofos da Antiguidade. Coragem que deve habitar a nossa existência, o nosso modo de ser e de agir no mundo ou, mais precisamente, o nosso êthos.

    Precisamos assumir a responsabilidade de tudo aquilo que nos acontece, de tudo aquilo que existe e que existirá no mundo. Os gestos de grandes pensadores e personalidades do passado nos expõe e escancara a nossa fraqueza, a nossa resignação para com a vida que, por sua vez, está completamente distanciada do pensamento e, por isso, capturada pelo ideal derrotista do “amanhã sem medo”.

    Em tempos de inércia do pensamento, a rememoração de grandes atitudes filosóficas em meio ao conflito se faz imperativa. E tal como fizeram os mestres do pensamento em praças públicas na Antiguidade, a rememoração, hoje, do pensamento de filósofos como Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Gilles Deleuze, bem como outros, são úteis para nos envergonharmos da nossa existência, da nossa tagarelice, do nosso conformismo disfarçado e da nossa incapacidade de agir sequer sobre nós mesmos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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