TV 247 logo
      Luciana Sérvulo da Cunha avatar

      Luciana Sérvulo da Cunha

      Documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena de combate à violência contra a mulher.

      10 artigos

      HOME > blog

      Aqui Tem Brasil: por que o streaming precisa contar nossas histórias

      "O Brasil é um dos maiores mercados de streaming do mundo. Mas sem regulação, seguimos como meros consumidores. Está na hora de ocupar o centro da narrativa"

      Divulgação

      Cena 1 – Interior. Supermercado moderno, Brasil, 2025.

      Carrinhos automatizados deslizam pelos corredores impecáveis. Prateleiras vibrantes expõem novidades de Hollywood, romances coreanos, thrillers escandinavos, animações japonesas e documentários britânicos com narração impecável. Luz, Câmera, Ação e... Algoritmo.

      No mezanino, de terno amarrotado, café na mão, o Governo Brasileiro, dono do supermercado, observa.

      — E aí, como estão as vendas? — pergunta, ajeitando a gravata.

      O gerente global, sujeito simpático poliglota, conhecido por Netflix, sorri confiante.

      — Uma maravilha, senhor. Só em 2023, o mercado de streaming no Brasil passou dos R$ 10 bilhões. Somos um dos maiores mercados consumidores do mundo. O brasileiro é viciado em audiovisual!

      — E o conteúdo nacional, tá saindo bem? — questiona o governo, franzindo a testa.

      — Ah… tá lá no fundinho da loja, ao lado do hidrante contra incêndio. Tem pouca saída. Mas a gente mantém umas obras premiadas internacionalmente no catálogo, só pra constar.

      — Mas ouvi dizer que o Brasil tem uma das maiores indústrias audiovisuais do mundo, confere?

      Netflix desliza os dados no tablet e, incrédulo, lê as últimas notícias:

      “O brasileiro assiste mais vídeo sob demanda (33,9%) do que TV por assinatura (8,2%). Mas o país não exige nenhuma contrapartida legal para exibição de conteúdo nacional. Nenhuma cota. Nenhuma obrigação de investimento. Nenhuma curadoria própria.”

      Silêncio. Sobe som da música ambiente.

      Cena 2 – Corredor dos fundos. Setor ‘Produção Brasileira’.

      Num canto abafado da loja, perto da saída de emergência, uma produtora brasileira independente arruma prateleiras improvisadas.

      Ali repousam histórias nossas: "O Pagador de Promessas" (Anselmo Duarte), “O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão” (J.B. Tanko), “Torre das Donzelas” (Susanna Lira), “Cabra Cega” (Toni Venturi), "Minha Mãe é uma Peça" (André Pellenz), "Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!" (Isael Maxakali e Sueli Maxakali) "Cidade de Deus" (Fernando Meirelles e Kátia Lund), “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles), "Que Horas Ela Volta?" (Anna Muylaert), “Terra em Transe” (Glauber Rocha), “Antônia” (Tata Amaral), “Democracia em Vertigem” (Petra Costa), “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos), “Branco Sai, Preto Fica” (Jeferson De), “Cidade; Campo” (Juliana Rojas), “Bacurau” (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), "Meu Querido Supermercado" (Tali Yankelevich), “Feliz Ano Velho” (Roberto Gervitz), “Era o Hotel Cambridge” (Eliane Caffé), “Lua de Cristal” (Tizuka Yamasaki), “Bixa Travesty” (Claudia Priscilla e Kiko Goifman), “Macunaíma” (Joaquim Pedro de Andrade), “A Hora da Estrela” (Suzana Amaral), “Café com Canela” (Glenda Nicácio e Ary Rosa), “Perigo Negro” (Rogério Sganzerla), “A Febre” (Maya Da-Rin), “O Caso do Homem Errado” (Camila de Moraes), “Cárvao” (Carolina Markowicz), “Eles Não Usam Black-Tie” (Leon Hirszman), “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (Bruno Barreto), "SLAM: Voz de Levante" (Tatiana Lohmann), “2 Filhos de Francisco” (Breno Silveira), “Hijos de la Revolucion” (Luciana Sérvulo da Cunha), “Auto da Compadecida” (Guel Arraes), “O Homem que Virou Suco” (João Batista de Andrade), “Bicho de Sete Cabeças” (Laís Bodanzky), "Jogo de Cena" (Eduardo Coutinho),“Medusa” (Anita Rocha da Silveira), “A Matriarca” (Mariana Bastos), "Todas as Mulheres do Mundo" (Domingos Oliveira), “Céu de Suely” (Karim Aínouz), "Nem Sansão Nem Dalila" (Carlos Manga), “O Outro Lado do Paraíso” (Andrucha Waddington), “Alma Imoral” (Silvio Tendler), “Doutores da Alegria” (Mara Mourão), "Mãri hi – A Árvore do Sonho" (Morzaniel Ɨramari Yanomami), “Uma Noite em 67” (Marina Person), “Filhos do Carnaval” (Alain Fresnot), “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (Paulo Sacramento), “Mulheres Negras: Projetos de Mundo” (Day Rodrigues, Lucas Ogasawara), "Amarelo Manga" (Cláudio Assis),“Caymmi” (Dani Broitman), “Olga” (Jayme Monjardim), "As Bicicletas de Nhanderu" (Patrícia Ferreira Pará Yxapy Mbyá-Guarani), “Meu Nome é Bagdá” (Caru Alves de Souza), "Eu Te Amo" (Arnaldo Jabor),"Minha Vida em Marte" (Susana Garcia), "Bye Bye Brasil" ( Cacá Diegues)...

      Ela murmura, falando para si mesma:

      — Em 2023 o Brasil produziu mais de três mil obras por ano. A lista é gigante. E eu aqui ralando tentando enfiá-las em um espaço de caixa de fósforos.

      Um menino jovem entra no corredor.

      — Moça, tem alguma coisa aqui que fale da minha gente?

      Ela entrega “Negrum3”, um curta-metragem impactante de Diego Paulino que explora a juventude negra LGBTQIA+ em um Brasil que lida com preconceitos estruturais. O menino sorri, faz uma selfie e posta:

       “Tem Brasil aqui, galera. Mas escondido.”

      Cena 3 – A faísca. A mobilização.

      O post viraliza. Cineastas, roteiristas, coletivos, entidades como a Associação Paulista de Cineastas, a APACI, se organizam.

      O Conselho Superior de Cinema emite moção:

      “É preciso garantir 12% do faturamento das plataformas para investimento em conteúdo nacional.”

      A França já faz isso.O Canadá faz desde os anos 90.A Coreia do Sul virou potência porque fez isso.

      O dono do supermercado convoca uma coletiva:

      — A partir de agora, vamos instituir a cobrança de 6% sobre o faturamento das plataformas. Metade desse valor será destinada ao Fundo Setorial do Audiovisual, para editais públicos. A outra metade, as próprias plataformas deverão investir diretamente em produções brasileiras.

      Netflix franze a testa e torce a boca.

      A produtora diz:

      — Melhor que nada... Mas sejamos honestos: 6% significa cerca de R$ 600 milhões num mercado que fatura mais de R$ 10 bilhões por ano só no Brasil. E metade desse valor ainda será controlada pelas próprias plataformas, que decidem o que, como e com quem investir. Continuaremos disputando migalhas num território que é nosso, para um público que também é nosso. Ainda estaremos fora do centro das decisões — e da vitrine com neon, que é o que merecemos!

      Cena 4 – O ponto de virada.

      A sociedade pressiona. Artistas se posicionam. Os dados chegam aos gabinetes:

      • O Brasil tem mais de 60 plataformas de VOD atuando no mercado.
      • A indústria criativa representa 3,11% do PIB, mais que a automobilística.
      • O streaming fatura bilhões sem pagar contrapartida.
      • Com 12%, podemos investir mais de R$ 1 bilhão/ano em nossas histórias.
      • Isso pode gerar mais de 300 mil empregos diretos e indiretos.

      Parlamentares parecem finalmente compreender que o audiovisual não é só entretenimento — é estratégia de soberania nacional. Nenhum país se consolida como potência sem investir na construção da própria imagem e de sua identidade. Regulamentar o streaming não é intervenção no mercado, é planejamento estratégico. É garantir que o Brasil deixe de ser corredor de consumo para se tornar autor do seu próprio roteiro.

      O dono do supermercado, completamente convencido de que aumentar o percentual é um “negócio da China”, volta ao microfone, agora com voz firme e anuncia:

      — Alô, alô, atenção, temos uma nova promoção! A partir de hoje, o investimento mínimo será de 12% do faturamento. E, desta vez, a curadoria da seção brasileira não será terceirizada: será feita por quem vive, cria, sonha e produz neste país. O Brasil vai ocupar a vitrine central — como protagonista, não mais como figurante.

      Netflix engole a seco e silencia. Percebe que a lógica mudou — e talvez descubra que também pode lucrar mais apostando na potência criativa do Brasil.

      A produtora então sobe ao mezanino. Abre espaço para novas vozes. Reforma e amplia as prateleiras.

      O jovem volta à entrada do supermercado, agora com o carrinho cheio de obras brasileiras.

      Olha para cima. Um letreiro novo brilha no topo da loja:

      “Aqui tem Brasil.”

      Fade out.Começam os créditos — todos com trilha sonora nacional original.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

      ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

      ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

      iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

      Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: