Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio – segunda parte (2/3)
O que se pode observar é que o cerco se faz por meio de estruturas e processos de ordem material e imaterial
(continuação)
Falei do céu, seu juiz? Aprovo tudo o que esse céu faz, do seu jeito. Faço-me de juiz, também. Sei que é melhor ser cúmplice do céu do que sua vítima.
6. O Orçamento
Não é à toa que o orçamento público se descaracteriza. Ele deixa de ter seu fundamento universal e integrador, de planejamento, decisão e gestão de receita e despesa pública, para ser objeto de apropriação por interesses fragmentários, de várias ordens, representados por parlamentares, que estabelecem uma vinculação individual ou social desligada da legitimidade da representação. Desaparece o projeto constitucional para dar lugar a uma barganha ou leilão de prioridades individualizadas, julgadas segundo critérios isolados, afastados do debate público.
Chamou minha atenção, recentemente, um programa implementado por Deputada Federal – não sei se outros parlamentares também empreendem algo semelhante – relativo a obter sugestões, em resposta a edital elaborado por seu gabinete, de emendas para utilização de verbas do orçamento público, mediante a apresentação de projetos de interesse local. Em seguida a sua apresentação, os projetos seriam postos em uma plataforma e submetidos a votação por pessoas interessadas.
Ao que tudo indica, seria um meio – não exclusivo, tudo indica - para apresentação de emendas ao orçamento público, elaborado, segundo determinação constitucional, pelo Poder Executivo, para a distribuição de verbas segundo critério que a parlamentar acredita ser popular, amealhando apoio para o exercício de seu mandato.
Na realidade, porém, trata-se de um artifício, mais um capítulo no processo bastante problemático, do ponto de vista político e jurídico – saliento essas suas perspectivas, para me contrapor ao senso comum das notícias, comentários e análises (de mídia e especialistas), que se propõem a desvendar os aspectos econômicos e pretensamente sociais - do conflito que se estabelece, mais uma vez, em nossa história, em torno da elaboração e da efetivação do orçamento público.
O conflito atual mostra-se um enorme retrocesso na história política brasileira. Principalmente se levarmos em consideração que o Brasil foi responsável pela proposta e implementação de uma das mais significativas contribuições à democratização da configuração da Administração pública, por meio do “Orçamento Participativo.”
Quero dizer, com isso, que o Brasil abandonou o processo de constituição de uma forma de participação política, que pensava o orçamento como um bem efetivamente público (quer dizer, pertencente ao povo), e sua elaboração e implementação como um procedimento de construção também pública. Portanto, um modo qualificado e legítimo de participação efetiva no exercício do poder político, e. sobretudo, de compartilhamento democrático da informação a respeito de como seria formada e distribuída a verba pública.
Essa verba, considerada, no discurso usual, como recurso estatal para a realização dos deveres públicos e das políticas públicas, determinados pela Constituição Federal, seria vista como aquilo que efetivamente é ou deveria ser: a contribuição de cidadãs e cidadãos, e a correspondente retribuição a cidadãs e cidadãos, em esforço comum para constituir e manter o espaço e o tempo públicos, isto é, para formar e aperfeiçoar a sociedade política.
Pensado desse outro modo, o orçamento torna-se inclusivo o integral. É uma peça unitária e universal de construção democrática, que indica a inclusão e a integração da própria sociedade em torno dos objetivos e valores (direitos e deveres) postos por essa mesma sociedade na Constituição.
“Integral,” “inclusivo,” inclusão” e “integração” são os termos chaves, aqui. Indicam que a política é o resultado da participação íntegra e plena cidadã. O orçamento exclusivo e desintegrado nega a política, porque se torna uma mera peça administrativa, destituída de legitimidade (jurídico-política) e distante de sua compreensão constitucional.
Sem participação, isto é, inclusão e integração, não há verdadeiramente política.
O orçamento público – aliás, como tudo que é público – é, ao mesmo tempo, o processo e o instrumento de exercício do poder público democrático, o poder em atuação, atualização, efetivação, numa palavra, o poder ativo ou a política em ação.
Se é assim, segundo concebo, que devem ser postas as definições e questões, como explicar o conflito que hoje se desenvolve em torno do orçamento? O desaparecimento de seu caráter público (ao ponto de ser considerado “secreto,” em suas emendas)? Sua perda de integridade, na forma de um esfacelamento? Seu aprisionamento por assim chamadas “emendas parlamentares,” na verdade remendos que apontam intenções diversas, pretensamente coletivas e locais, mas que negam o caráter inclusivo e integral que caracterizaria o interesse público? Sua utilização como instrumento de troca de apoio ou de sanção de contraposição, em relação ao exercício das atribuições estabelecidas pela Constituição para os chamados Poderes da República, sobretudo do Executivo? E a judicialização desse conflito, a partir de uma demanda de perfeita visibilidade (ou seja, seu caráter de conhecimento público exigido pela mesma Constituição)?
7. Liberalismo e Nação. Neoliberalismo como Regime Antipolítico
Desde o início de sua adoção como (anti-) política de determinados governos, que passaram a atuar para destituir os Estados de sua capacidade, precisamente, de governação, o neoliberalismo teve como resultado o incremento da concentração de riquezas nas mãos de poucos e a difusão ilimitada da pobreza, levando ao colapso dos sistemas de proteção e ao ápice da diferença entre ricos e pobres.
O dinheiro dos poucos privilegiados passou a servir para a reprodução ideológica desse sistema – que exacerba, no âmbito internacional, o apartheid social, comprando equipamentos e criando modos de educação, formação e informação cada vez mais acessíveis a uma parcela decrescente e privilegiada da população mundial. O neoliberalismo institucionalizou o racismo como razão de Estado, impondo segregação e impedindo o movimento natural dos povos em busca de melhores condições de vida.
Fez crescer a miserabilidade e a vulnerabilidade, subtraindo, desvirtuando e privatizando mecanismos de educação, de informação, de acesso a, e de expressão da cultura, de justiça, de saúde, de segurança etc.
Quanto à segurança e à justiça, por exemplo, foram postas à disposição da proteção do patrimônio em detrimento da cidadania: proteção dos que têm contra os que não têm. A insegurança da maior parte do povo e a injustiça a que é submetida, no cotidiano, crescentes, geram o campo fértil para vários tipos de discurso antipolítico: o medo, o ódio, a falsa crença, o dogmatismo, o autoritário, o totalitário.
O conjunto dessas miserabilidades e vulnerabilidades levam ao desfazimento dos liames entre as pessoas e os grupos que formam. Desaparecendo os mecanismos de proteção estatal, estabelece-se um embate na sociedade, no limite, uma guerra civil, que somente pode ser mediada e resolvida pela violência. Violência que é objeto de pregação pelos novos donos da riqueza e dos privilégios, através de seus lacaios, travestidos de representantes, ou mesmo postos diretamente no comando dos Estados, como remédio para a solução de todos os problemas. A forca substitui, uma vez mais, o poder.
Essas características fazem do Neoliberalismo um sistema antipolítico. Seu modo de ser e de agir se dá no sentido de fazer o estado abdicar de seu poder e passar a adotar a força contra os povos, defendendo as minorias que dele vão tomando conta.
Contudo, além disso, o regime neoliberal se faz um antijurídico e anticonstitucional, porque afronta tanto a trama internacional dos direitos quanto o quebra-cabeça das Constituições.
Essa ordem integrada de direito internacional e Constituições estipula valores e regras precisos, no sentido de proteger e obrigar à adoção de estruturas de representação legítima, de promover a submissão ao regime das leis (rule-of-law) e de preservar e garantir direitos. Está assentada na tríade democracia/império do direito/direitos humanos.
O Neoliberalismo prega a extinção da democracia e dos direitos humanos e a desobediência do direito, personificando o antípoda da trama jurídica internacional e constitucional.
Para enxergar e compreender os mecanismos que emprega nesse enfrentamento, é preciso retomar a análise da construção da soberania, agora, a partir de um ponto de vista mais vinculado ao chamado liberalismo político, a outra face da moeda do liberalismo econômico.
Pensando exclusivamente no ambiente europeu (A experiência europeia tornou-se relevante em decorrência da imposição de suas doutrinas e práticas administrativas e constitucionais no curso da conversão, exploração e opressão decorrentes de sua colonização de outras partes e outros povos do Mundo, processo evidentemente eficiente, como resultado da violência que lhe era implícita, na busca incessante de destruir a especificidade de outras experiências e doutrinas. Ver ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.), pode-se considerar que a Constituição Francesa de 1791, dando curso ao estabelecido pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – dois documentos advindos do mesmo impulso transformador (mas não, propriamente, revolucionário - Trabalho essa distinção entre pensamento e projeto revolucionários, por um lado, e constitucionalismo, por outro, em ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.), que fez transmudar a original convocação dos Estados-Gerais, figura típica do Antigo Regime, para a experiência de uma Assembleia, dotada de poder de representação e constituinte -, teria fundado a ideia da soberania nacional, isto é, pertencente à nação – não ao povo. Foi um artifício engenhoso, forjado a partir de duas fontes principais. A primeira, consistente na concepção da ideia de nação, uma abstração, que serviu para afastar qualquer reivindicação de poder efetivamente popular ou democrático. A segunda, correspondente à concepção de soberania, tema, como vimos, caro no curso da construção teórico-pragmática do que hoje chamamos de Estado.
A nação, afirmou Emmanuel-Joseph Sieyès (no panfleto Qu'est-ce que le Tiers-État? que viria se tornar a obra inaugural do constitucionalismo contemporâneo europeu, com larga influência no mundo colonial, responsável pela inserção na teoria do direito constitucional da noção de poder constituinte), seria um conceito fundante da realidade político-jurídica. Na verdade, tratava-se de um dado ficcional, tomado como uma noção preestabelecida, sem história nem concreção física, que reuniria em sua matéria abstrata o conjunto não do povo, mas de características selecionadas ou mesmo inventadas, extraídas de uma composição de expressões consideradas relevantes para a criação de um modelo de organização coletiva e de condutas individuais. Essas características não seriam sensíveis nem visíveis, menos ainda apreensíveis, a não ser como artefato da razão, muito embora impassível de análise. Uma síntese racional formulada para fazer emergir, do conjunto dos estados (états, status), a figura do terceiro-estado (tiers-état). Essa figura, seria, em verdade, uma concepção original e integral da nação, ou, como dizia o Abade revolucionário, une nation complète, a integralidade da nação. Mais do que isso, o terceiro-estado é o todo da nação. Uma parcela que se confunde com a totalidade, uma vez que seria a única necessária. Ainda além, um todo que restaria entravé et opprimé, enquanto existir a outra parte, l’ordre privilégié́. Suprimida a ordem privilegiada, não haveria perda, mas ganho, que faria o todo libre et florissant. Uma matemática estranha e engenhosa, que faz da parte o todo, porque essencial, necessária, e faz o todo crescer pela supressão da parte que se torna um peso morto para a nação, e, com seu perecimento ou extinção, torna mais robusta a parte necessária, fortalece-a ao libertá-la do jugo dos privilégios, permitindo que se desenvolva, em benefício do todo, que é seu verdadeiro significado.
Esse estado não corresponderia a nenhuma classe, no sentido econômico-social do termo, sequer poderia ser assimilado às categorias de burguesia e proletariado, como já se quis fazer, na busca de acomodar a complexidade, a diversidade e a riqueza das práticas e dos discursos expressos no processo revolucionário, ao modelo de uma historiografia refugiada em jargões. Sieyès fala da maioria da sociedade, que estaria presente em todos os estados, não sendo atributo exclusivo de um ou outro. O termo maioria, portanto, significa mais do que quantidade, qualidade. O terceiro-estado é a nação toda porque ele guarda aquilo que é mais autêntico à nação, o que ela tem de melhor e que a define. Essa autenticidade estaria entravada e oprimida. Caberia à assembleia constituinte fazer-se efetivamente representativa, permitindo florescer a liberdade do todo. A nação não está em um lugar nem em uma coletividade determinados. É o todo integral. Seus caracteres se difundem em meio ao conjunto concreto dos estados.
A soberania da nação é então, a partir dessa contribuição prático-doutrinária fundamental, enxertada na Constituição de 1791, no artigo primeiro do título terceiro, e na Declaração dos Direitos, em seu artigo terceiro. A fórmula da Declaração indica o caráter nacional da soberania, mas por meio de um circunlóquio bastante significativo. Não se afirma que a soberania pertence à nação, mas que seu (isto é, de toute souveraineté) princípio “réside essentiellement dans la nation”. Dessa nação emana toda a autoridade, impedindo que quaisquer corpos e indivíduos a exerçam.
Corps e Individu, isto é, nada se interpõe entre nation e souveraineté. Nada pode intermediar a relação (assim, direta) entre a nação e a soberania. Na expressão constitucional, isso fica ainda mais explícito. Diz-se, ao referir o tema dos poderes públicos, que a soberania é una, indivisível e imprescritível, pertence à nação, não podendo ser exercida por nenhuma section du peuple, nem qualquer individu.
A Declaração e a Constituição põem-se contra a fragmentação do poder público e contra a interposição de agentes mediadores, intermediários na construção inovadora de uma relação direta entre a nação e a sua soberania, que é una, indivisível e não perece, isto é, é eterna (não prescreve jamais) e não pode ser assim contestada nem extinta (mesmo que não seja exercida por essa nação).
O alvo dessa interdição são os chamados corpos intermediários, de que eram melhor exemplo os estados sociais ou ordens sociais. Precipuamente, aqueles dotados de um estatuto próprio, derrogatório do estatuto geral ou universal, posto pela constituição de uma sociedade verdadeiramente político-jurídica. Esses estatutos particulares ou privados, naturais no sistema do Antigo Regime, no qual o príncipe se relaciona com a sociedade por intermédio de, e controlado por determinados grupos coletivos, que possuem um estatuto ou regime próprio, na forma de privilégios. Esses privilégios não tinham o sentido que tomarão após a instalação da ordem revolucionária, sobretudo após a Lei Chapelier, de quatorze de junho de 1791, que fez extinguir as corporações. O sistema ou regime Ancien era corporativo por definição. A sociedade é compreendida como composta de várias ordens hierárquicas, não havendo como conceber indivíduos separados das coletividades a que pertenciam e das quais recebiam seu quinhão de presença social, seu privilégio. Não há direitos, portanto, sequer universais. Há estatutos próprios, que fixam condições de existência. O privilégio é apenas o regime a que coletividades e seus membros se submetem, num sistema de múltiplas hierarquias. Tratava-se de um desenvolvimento medieval das antigas noções romanas de status. Noções submetidas a uma interpretação derivada de uma cosmovisão vinculada à violência dos reinados, soberanias, hierarquias, atribuições, submissões e servidões- numa palavra, um sistema complexo de estratificações -, de uma era de intensa conflituosidade, sobretudo territorial.
8. Dos Corpos Intermediários à Nação: Representação Política
Os corpos intermediários serão, então, considerados pela Constituição e pela Declaração como nocentes, pois alçam determinados estados e determinados indivíduos acima de todos os outros. A Constituição faz abolir essas cartas particulares de minorias, que as tornam poderosas em detrimento da maioria (o Tiers-État), que é a parte que realmente conta e que deve assumir seu papel e receber o lugar que merece na nova ordem constitucional. Essa abolição dos corpos intermediários é condição necessária tanto da soberania quanto da igualdade universal perante a lei. Qualquer estrutura social que se deseje representativa de uma categoria da sociedade - como, por exemplo, as corporações de ofício, a igreja, os clubes etc. -, precisa desaparecer, porque a soberania deve atuar sobre a sociedade sem que obstáculos se lhe anteponham. A relação entre a soberania e a sociedade é de transparência. Nenhuma parte da sociedade pode reivindicar o exercício da soberania, não há como dividir a soberania entre grupos e indivíduos. A sociedade é um só corpo, a nação, sua alma, e a soberania, a energia que põe em atuação as relações desse todo, que é um só.
Claro que tudo isso não passa de ficção que, para existir, depende de um aparato jurídico-político posto à disposição desde a Antiguidade, na qual se buscam os modelos de organização e de exercício do poder para forjar instituições que, em realidade, não são novas, mas assumem a aparência de novidade. O que lhes confere o caráter da invenção, da criação, da diferença é o mecanismo que lhes dá vida. Esse efetivamente novo mecanismo é a representação.
E é um grande e grave paradoxo que essa ordem da soberania nacional uma e indivisível, que abomina corpos de intermediação, venha a ter a garantia de sua existência na instituição da representação (ATTIÉ Jr. Alfredo. A Reconstrução do Direito Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003). Esse paradoxo era explicitado pelos artigos segundo, terceiro, quarto e quinto do mesmo título terceiro constitucional.
Enuncia-se que a nação não pode exercer o poder ou os poderes emanados por ela, exclusivamente. Portanto, a Constituição torna-se representativa, sendo os representantes o Corpo legislativo e o rei, aos quais pertence o Poder legislativo: representantes eleitos livremente pelo povo, temporários, com assento na Assembleia nacional, e o rei, que complementa a atividade de legislar por meio da sanção. O Poder judiciário é delegado a juízes, eleitos no momento oportuno pelo povo. Finalmente, o Poder executivo é delegado ao rei, que o exerce por meio de ministros e outros funcionários responsáveis.
Diferentemente do que postulava Jean-Jacques Rousseau, a soberania, posta como uma e indivisível, impassível de representação, fragmentava-se em determinados Poderes, para que se efetivasse seu papel. Da nação emanavam esses Poderes, mas ela não tinha condições de os exercer, fazendo-os objeto de delegação a três Corpos, portanto, intermediários, negando as proibições da própria Constituição e da declaração. Desses Corpos, dois se caracterizariam, ao menos parcialmente, por um processo de legitimação por eleição do povo: a assembleia nacional e o corpo de juízes. Assim, a totalidade do judiciário seria eleita, enquanto o legislativo resultaria da eleição de representantes conjugado ao do rei, ao qual caberia a titularidade, mas não o exercício do executivo, efetivado por ministros e agentes públicos, também não eleitos.
Aqui, bem assim, inicia-se a história da incompletude do projeto da soberania, que deveria constituir uma relação imediata com o povo, mas que sofre o primeiro desvio por meio da abstração da figura do povo na ideia de nação. Em seguida, um novo desvio, mediante a incapacidade de exercício soberano, que passa a ser fragmentado e delegado a Poderes públicos. Quer dizer que a soberania deixa de ser um poder para se tornar mera capacidade. O termo poder é reservado apenas ao exercício dessa soberania, não pela nação, muito menos pelo povo, mas por representantes. A seguir, o desvio da representação, da delegação do exercício dos próprios Poderes a um conjunto de agentes. Finalmente, o desvio consubstanciado no fato de não haver sequer a necessidade de legitimação da plenitude desses agentes: no legislativo, apenas a Assembleia nacional é composta por pessoas eleitas, nele intervindo, contudo, o rei, agente tradicional, sequer parte da nação. Esse rei, exterior à ideia nacional posta nos documentos constitucionais, ainda encarnará o Poder executivo, delegando seu exercício, porém - mais um desvio -, a ministros e agentes, que igualmente não passam pelo crivo da representação, pois são escolhidos pelo rei.
A soberania, em conclusão, passa a ser mera capacidade, não chega a se constituir em poder. É uma palavra, uma ideia abstrata, da qual emana o Poder. Não é una nem indivisível. Esfacela-se e dá margem ao exercício efetivo por corpos intermediários públicos: assembleia nacional, rei, ministros e agentes, juízes.
9. Sobrevivência dos Corpos Intermediários e o Sítio em torno do Estado
Esse é o campo institucional que vai embasar o projeto republicano pós-revolucionário, fixadas as estruturas que permitem que o Estado desenvolva suas funções, visando sua própria grandeza e à da nação que representa, perante as demais. Ele concede um espaço de sobrevivência aos corpos intermediários sim. Mas eles não são mais os corpos intermediários do Antigo Regime. Não são aqueles corpos sociais, dotados de estatuto próprio e derrogatório do estatal. Esses novos corpos estão inseridos na ordem constitucional e funcionam como mecanismo de exercício do poder estatal. Não são criados pelo campo social, mas pelo político. Na evolução do constitucionalismo, vão se tornar os poderes afetos a instâncias de representação estatal, como estabeleceu, de modo pioneiro, nessa tradição, a Constituição Americana, em 1787. Esse documento tirou o caráter abstrato ou meramente funcional do embate das potências legislativa, executiva e judiciária, para localiza-las, incumbi-las a órgãos ou corpos determinados. Hoje, quando falamos nessas funções, queremos referir determinados órgãos concretos. O legislativo é um Parlamento ou Congresso; o Executivo, o Presidente ou o Primeiro-Ministro; o Judiciário, um Tribunal ou vários Tribunais.
Muito bem, é essa forma de organização que se encontra em crise. Ela foi descaracterizada pelo advento do novo regime econômico-social, que se fez implantar na organização estatal, assumindo o lugar do político propriamente.
As Constituições, em geral, como faz a nossa, ainda falam da tripartição de poderes, afirmando que todo o poder pertenceria ao povo, que delegaria seu exercício a representantes eleitos. Ainda dizem que a legitimidade seria alcançada por meio da realização de eleições periódicas. A realidade, contudo, do exercício desse poder, desses poderes, é bem diversa.
Essa realidade aponta para uma restauração da intermediação corporativa, cujos agentes prescindem dos mecanismos de legitimação representativa. Prescindem mesmo da ideia de representação.
É fácil perceber, inserida na tradição constitucional, por exemplo, a excepcionalidade das profissões e funções jurídicas públicas, que estão dissociadas da representação. Exercem parcela da capacidade soberana, mas não são, na maioria dos países, eleitas. É algo que não passou despercebido, contudo, e já há, aqui e ali, propostas para a recomposição constitucional dessas profissões (Veja-se, recentemente, ATTIÉ, Alfredo. “Justiça para as Cidades” in A Terra é Redonda, publicado em 28.06.2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/justica-para-as-cidades/; e ATTIÉ, Alfredo “México – a Reforma do Poder Judiciário” in A Terra é Redonda, publicado em 28.10.2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/mexico-a-reforma-do-poder-judiciario/).Contudo, não chega a pôr em xeque a ordem do liberalismo político, que já previa ou tolerava essa intervenção de atores não pertencentes à nação, como vimos, no exercício das tarefas de governação e controle. Tomando conta da formação dos profissionais do direito e do modo como ingressam nas funções públicas jurídicas, assegurando-se que não questionem a ordem de dominação estabelecida e sirvam como instrumento de sua efetivação, nos campos civil, administrativo e penal, o liberalismo não apenas tolera e respeita, mas, sobretudo, disciplina a maneira como o direito é interpretado e aplicado. No regime neoliberal, ainda, ele incentivará um desvio de interpretação e aplicação excepcional da lei, uma manobra requisitada quando as garantias se mostrarem obstáculo para alcançar objetivos diferentes do que aqueles planejados pela antiga elite liberal. O neoliberalismo incentivará, também, a constituição informal e formal de uma administração transfronteiriça de determinadas regras, desrespeitando qualquer resquício de soberania ainda pretendida pelo garantismo jurídico. Nessa concepção bastante atípica do direito e da justiça, a formação dos profissionais do direito se perde em uma rede de cursos de especialização elaborados nos países de jurisdição da common-law, voltados a habilitar profissionais aptos a defender o interesse de grandes corporações em todos os Países (Ver ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021).
Ocorre que, no regime neoliberal, os corpos intermediários se inserirão de modo essencial nessas tarefas governamentais, de controle e de jurisdição, ao ponto de descaracterizar integralmente a vocação universal e representativa da Constituição.
A par do exemplo do esfacelamento orçamentário, que referi, há a questão fundamental das agências (No Brasil, ver as leis 9.427, de 26 de dezembro de 1996, 9.472, de 16 de julho de 1997, 9.478, de 6 de agosto de 1997, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 9.961, de 28 de janeiro de 2000, 9.984, de 17 de julho de 2000, 9.986, de 18 de julho de 2000, 233, de 5 de junho de 2001, 11.182, de 27 de setembro de 2005, 10.180, de 6 de fevereiro de 2001; e 13.848, de 25 de junho de 2019, e a Medida Provisória 2.228-1, de 6 de setembro de 2001.), inseridas no âmbito das relações públicas a partir dos processos de privatização de bens e serviços públicos, sob a justificativa da eficiência administrativa (No Brasil, o momento de início de inserção das agências data de 1997, após o início precisamente, do processo de privatizações.) e dos Bancos Centrais (Lei Complementar nº 179/2021, no Brasil,) além de outras tantas instâncias de tomada de decisão, formulação de políticas públicas e resolução de conflitos, órgãos dotados de “autonomia”, cujos titulares exercem atividades que deveriam ser públicas, decidem sobre direitos, sobre obrigações e estabelecem e implementam políticas “públicas”, retirando dos Poderes tradicionais boa parte de suas atribuições e, mais grave, impedindo a atuação de governo e de controle por órgãos e pessoas dotadas de representação política.
Constituem um campo de sítio, em torno dos Poderes, interpondo-se em sua comunicação com o povo constituinte ou representado. São corpos intermediários cuja representatividade é setorial, ligados a estruturas de empreendimento e prestação de serviços pertencentes aos âmbitos econômico e social. São espelhos daqueles clubes, privados e exclusivos, cujos porta-vozes aparecem, de quando em quando, na mídia, graças ao trabalho das chamadas “assessorias de imprensa” e “relações públicas”, para emitir opinião: a versão e a argumentação de interesses corporativos, privados, maquilada de interesse da nação.
As agências estabelecem ou obtêm um estatuto próprio que, à guisa de possibilitar a gestão e fiscalização de atividades por entes privados, acabam por impossibilitar a atuação dos poderes e órgãos de representação legítima universal.
São estratos (status), estruturas que visam a impedir o acesso e a comunicação entre representantes e representados legitimados – agora, ficticiamente, ou, no limite, falsamente – por escolhas populares viciadas pela imiscuição de mecanismos de deturpação de campanhas. Mecanismos derivados ou que constituem mesmo um dos modos do estado de sítio.
Entre povo e poder passam a resumir a comunicação no modelo dos “serviços de atendimento ao consumidor” (SAC): o povo consome e o Estado presta serviços terceirizados, por órgãos que os assumem, nas privatizações, ou usufruem de uma relação de parceria público-privada. As agências “reguladoras” passam a ser meros fios de ligação entre os agentes e interesses de mercados e representantes dos terceirizados – empresas ou corporações privadas.
As estruturas dos corpos intermediários, historicamente, correspondem a castas ou estados. Assim como ocorreu com a relação de suseranias, sucedida pela relação de soberania, igualmente o Estado tomou o lugar dos estados, status, que eram características de distinção conectadas às pessoas, originadas de sua inserção em determinados grupos, concebidos e conceituados jurídica e politicamente. Na Antiguidade, havia uma dinâmica de status, que concedia a cada pessoa um lugar na organização da vida privada e pública: libertatis (grau de liberdade), ciuitatis (pertencimento público, cidadania) e familiae (pertencimento doméstico, na estrutura hierárquica familiar, com pleno direito ou com direito dependente de outrem). Eram formas de conceder e compreender as capacidades jurídicas e seus limites. No prosseguimento da cultura romana, misturado a contribuições culturais de outros povos, sob a coordenação do pensamento e da prática religiosa (dos monoteísmos), durante a chamada Idade Média até a derrocada do Antigo regime, estamentos, que cercavam ou sitiavam as relações pessoais e o acesso ao domínio das coisas e das pessoas. Praticamente, castas ou raças, segmentando a sociedade e permitindo ou proibindo, restringindo ou ampliando acessos, mudanças, intercâmbios, mas preservando sempre uma hierarquia, uma aura que impedia (do ponto de vista normativo) as proximidades.
O estado, particípio do verno estar, indica estabilização, uma espécie de fait accompli, mais do que estável, imutável. É o termo que será posto para definir a sociedade (chamada equivocadamente, como vimos, de) política. Ele lhe concede um caráter acabado, completo, corroborando a autoridade que acompanha a alienação da força, que passa a deter com (quasi-) monopólio. O Estado, em sua formação, subtrai e desloca para si as capacidades jurídico-políticas de pessoas e grupos, e as conserva, concebendo-as e concedendo-as como forma de delegação de seu próprio e definitivo status.
Quando a ordem neoliberal se instaura, ela faz o resgate dos estados, retirando o espírito do Estado e recompondo os corpos intermediários e seus privilégios, acentua o sistema de castas ou raças, destituindo a pretensão da universalidade. Esse novo sistema se utiliza do Estado, em um primeiro momento, se não de modo constante, para justificar uma nova hierarquia econômico-social: grupos, castas, raças que se põem como superiores, e que passam a deter o privilégio de viver no Estado, próximas ao Estado, usufruir de privilégios na relação com o Estado.
Paulatinamente, esses novos estados vão descartando o próprio Estado, retirando dele sua capacidade de competir com suas capacidades jurídico-políticas, derivadas de sua força econômico-social. Retomando seu aspecto de interposição entre a capacidade estatal e a societal, e a querem desempenhar com monopólio.
O que os impede de monopolizar a capacidade jurídico-política é, por um lado a permanência, mesmo em déficit, da capacidade do Estado, e, por outro, tanto a concorrência entre as várias oligarquias, permitindo, de tempos em tempos, consensos ou oligopolização da política, quanto a resistência de desejos e movimentos democráticos. Para evitar essa resistência e a aproximação entre povo e Estado, o estado de sítio completa a revivescência desses corpos intermediários.
O estado de sítio contemporâneo vai se caracterizar, então, por
a) intenção de restringir ou impedir pautas dos interesses e direitos legítimos democráticos;
b) cerceamento do fluxo de comunicação e decisão;
c) fixação de cerco permanente em torno do Estado, por meio de vários assentamentos de perturbação;
d) violência dos discursos antidemocráticos - os ataques virtuais e reais e as ameaças, além da efetivação de disparos e ataques físicos ao povo e às instituições que resistem mais ou menos a essa porosidade com os grupos intermediários, aos três poderes e a suas praças de acesso;
e) ruído como forma de manifestação no cotidiano da antipolítica;
f) sítio das mídias sociais: redes (anti-)sociais versus acesso à informação por mídias verdadeiramente vocacionadas ao trabalho de imprensa; influenciadores versus representantes legítimos; seguidores versus cidadania;
g) cerco das fake news;
h) esfacelamento das estruturas de comunicação real e de obtenção de informação garantida, além da captura das mídias tradicionais por grupos e interesses corporativos;
i) usurpação e corrupção do discurso democrático; e assédio e tomada das instituições, que, paradoxalmente, atacam;
j) distúrbios que disseminam o medo e visam a disciplinar e encaminhar as reivindicações para o uso da força, das forças de segurança contra si , isto é, o próprio povo – com o agravamento, no Brasil, em decorrência da militarização e das estruturas tradicionais e permanentes de segurança, destinadas a defender o patrimônio dos que tudo têm contra os que nada possuem: um Estado que sempre se pôs contra o povo, que é constantemente lançado à periferia e discriminado;
k) imposição de temas que praticamente exigem conhecimento esotérico, de iniciados, técnico: a mistificação e mitificação da ciência correspondente à desvalorização da verdade do método da ciência e do processo de educação e de constituição científica;
l) orçamento demarcado e inacessível às políticas públicas sociais e constitucionais;
m) usurpação das agências do povo por mecanismos de delimitação de temas e setorialização de reivindicações, impedindo a visão da complementariedade advinda da transversalidade;
n) império do virtual: sites (sítios) como negação e substituição do espaço publico: redes antissociais, privadas e o comércio dos corpos e dos dados;
o) digital como meio;
p) jurídico como agência;
q) economia como único discurso competente, subvertendo mesmo as próprias tentativas (de correntes) da ciência econômica de imporem limites e caveat a suas afirmações;
r) constantes disparos contra o saber, sua difusão e debate e os modos de informação, formação e comunicação;
s) desafio permanente de meios técnicos à concretização da presença;
t) a prevalência dos modos de (anti-)comunicação virtual, inclusive em atividades, mesmo públicas - como a justiça -, que solapa a capacidade de desenhar e constituir empatia e compaixão com os dramas e o sofrimento, de se indignar contra os atentados à dignidade humana e da natureza: o desdém e a apatia com a dor alheia e a violência;
u) a revivescência das ordens: religião e riqueza;
v) a ameaça, a guerra, o extermínio como maneiras de ser de um uma performance governamental estataliforme, que corresponde à falsificação do Estado, que fala por, e se serve de, e visa a enriquecer as mídias privadas e a indústria bélica. como modo de atuação e discurso pretensamente remetendo a formas tradicionais de atuação do Estado e das sociedades políticas, em geral;
x) a governação como administração desintegradora e interessada;
y) a constituição de vários campos e grupos em estado de ilicitude, em cumplicidade com, ou com porosidade em relação aos aparatos estatais: corporações de força econômica, social, militar.
São algumas das várias facetas desse fenômeno que conjuga estado de sítio e corporativismo. O que se pode observar é que o cerco se faz por meio de estruturas e processos de ordem material e imaterial, que visam não apenas a dificultar as conexões e a comunicação, mas igualmente a visão e a percepção das próprias relações.
Estabelecem o contorno da atuação das oligarquias e de implementação e exercício do autoritarismo contemporâneo, que se difunde no espaço/tempo que configura o Estado e a sociedade. Ameaçam e se põem frontalmente contra o regime democrático e põem em risco o processo que vivemos de sua ampliação e enriquecimento. Um fenômeno que, particularmente no Brasil, está logrando minar a relação de representatividade e legitimidade do exercício do poder democrático por seu governo.
(continua)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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