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    Luciana Sérvulo da Cunha

    Documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena de combate à violência contra a mulher.

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    Brasileirão boa pinta: cara, nome e endereço fixo da violência contra a mulher

    Esses homens “boas pintas”, pais de família, o típico “brasileirão cidadão de bem” sem antecedentes criminais e a maioria sem doenças mentais decidiram golpear suas namoradas e esposas

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    No século 21, no ano de 2021, bem aqui no Brasil, Paulo José do Amaral Arronzi, Antônio Sebastião da Silva, Gerson Aparecido Machado, Rodrigo Alves Pereira, Elisângelo Marconis Francisco dos Santos, Zenilton Pereira, Cristiano Gomes, Francisco Pereira da Silva, Agnaldo dos Santos Oliveira e mais de 1.300 homens brancos e pretos, jovens, adultos, idosos, pobres e ricos, de diversas profissões e de todas as religiões, mataram.

    Esses homens “boas pintas”, pais de família, o típico “brasileirão cidadão de bem” sem antecedentes criminais e a maioria sem doenças mentais, por não aceitarem o término do relacionamento com suas esposas e namoradas, decidiram golpear com força bruta, ferir e destruir seus corpos, esfaqueando-os ou queimando-os até a morte, exigindo que seus desejos fossem realizados, numa investida extrema, cruel e desesperada de comprovação de poder e controle sobre os corpos femininos.

    Com a marca do sangue de suas ex-esposas e ex-namoradas nas mãos atrelada a um macabro gozo auto-afirmativo de sua obscura existência, esse agora “homem fantasma”, se cumprida a lei, terá seu corpo físico encarcerado. Mas inconformado por não se identificar como agressor, seu gozo mental continuará intocável e será ininterruptadamente, diretamente e indiretamente, visivelmente e invisivelmente, alimentado e mantido pelo “homem instituição” do qual é signatário desde os séculos passados pela herança do patriarcado, carregando a titularidade de uma masculinidade tóxica que “permite organizar os corpos a partir do significante “homem”, agrupando homens de “verdade”, homens negros, homens gays e homens trans (Neuzi Barbarini), autorizando assim a perpetuação de todos os tipos de violências.

    O patriarcado é aquele “pentavô” branco, estrangeiro e milionário com filiais no mundo inteiro, que começou a construir grandes fortunas aqui no Brasil investindo no sequestro, roubo, estupro, matança, exploração e escravização de mulheres indígenas e negras, inaugurando uma nada formosa e gentil “mistura de raças”, romanticamente ensinada nas nossas escolas como “miscigenação”. Acumulando capital desde então, a descarga de sua herança é até os dias de hoje bestialmente apreciada e degustada em cadeia nacional por homens covardes que brutalmente querem se apossar das mulheres, transfigurando seus corpos femininos, muitas vezes mutilados e ensanguentados, em troféus.

    Mesmo sendo esse “homem fantasma” um “homem instituição”, contando com o suporte de todo o nosso sistema social programado com o mecanismo perverso de poder patrocinador de uma violência que ironiza, desdenha,manipula, humilha, exclui, oprime, massacra, trucida e extermina mulheres, nunca conseguirá de fato dominá-las retirando seu poder natural. A socióloga alemã Maria Mies diz: “Esse é realmente o problema de homens, desde os tempos imemoriais até hoje. Eles não conseguem aceitar que a vida, a vida humana advém de uma mãe, de uma mulher. Esse é o problema deles até hoje. Eles não são o início da vida. Eles não podem dar vida a uma criança”.

    Nessa rota secular aniquilante e auto-destrutiva, a partir da não aceitação traduzida em ódio, inveja e frustração e em coadjuvação com instituições religiosas, homens brancos vem moldando leis e contando a história do mundo, criando mitos baseados em uma suposta superioridade do homem a quem a mulher deve se sujeitar, servir e obedecer. Principal fiador do pensamento machista de que a mulher é “causa de pecado para o homem”, o Cristianismo, através da Igreja Romana, estigmatizou e satanizou a mulher por séculos-como na figura das bruxas que foram perseguidas e jogadas na fogueira-fomentando a base do misoginismo no Ocidente. Nos dias de hoje, em sinergia com essa versão torpe da história, muitas Igrejas seguem a mesma cartilha, dando seu crivo veladamente (em alguns casos não tão veladamente assim) para que o homem siga tendo o “direito de mando”, se pensando e se sentindo o centro do mundo senhor de todas as terras, determinando como mulheres devem se comportar, que lugar elas podem frequentar, que roupa é mais apropriada usar, quando ter filhos, se podem, devem ou em que circunstâncias abortar.

    Detentoras do “poder do corpo da mãe" que fomenta, protege e dá início à vida, como reflete Mara Mies, ao longo da história as mulheres vem resistindo contra toda essa sorte de opressões e violências, lutando por respeito, equidade e pelo direito básico de decidir sobre seu corpo, sua vida e suas regras. O direito ao acesso às faculdades, ao voto, ao divórcio, a prática do futebol e a de terem e portarem um cartão de crédito (pasmem!) foram conquistados a duras penas, graças às mulheres feministas e seus aliados. Entretanto, somente ontem na Constituição de 1988, nós mulheres passamos a ser reconhecidas como iguais aos homens e mesmo assim, somente em 2002 a falta da virgindade deixou de ser crime quando um homem poderia pedir a anulação do casamento, caso descobrisse que a esposa não era virgem antes do matrimônio.
    De modo que, em pleno século 21, nós continuamos sendo perseguidas e mortas por sermos mulheres, penalizadas e obrigadas a parir mesmo quando confrontadas com uma gravidez dolorosamente indesejada por falta de estrutura material, emocional e psicológica. Pelo número alarmante e crescente de crimes de ódio contra as mulheres ou feminicídios (a cada 2 horas uma mulher é assassinada), a mulher parece ter deixado de ser para o homem apenas uma brincadeirinha, uma piada e um joguete para se tornar um perigo iminente, uma ameaça real ao “homem institucional” que não consegue ressignificar e se desvincular de sua identidade nociva, sem perceber que ele também acaba sendo vítima de seu próprio veneno. Nesse cenário, a despenalização do aborto parece encarnar o maior pesadelo da masculinidade tóxica, uma vez que essa iniciativa poderá, finalmente, devolver à mulher o seu direito básico de decidir sobre seu corpo e o seu próprio destino.

    Enquanto no Brasil temos um Governo Federal que estimula a violência contra as mulheres e todas as minorias, onde uma criança de 10 anos que vem sendo estuprada por um tio desde os 6 anos de idade é ameaçada de morte por desejar e necessitar interromper a precoce gravidez por motivos evidentes, a terra do Papa Francisco reconheceu que esse tema não é uma questão criminal e sim de saúde pública, pois só no ano passado mais de 500 mil abortos ocorreram em clínicas clandestinas com ambientes insalubres, acarretando doenças e mortes de milhares e milhares de mulheres. Assim, no apagar das luzes de 2020, a Argentina aprovou o direito das mulheres de optarem pela interrupção voluntária da gravidez até a 14 semana dentro das normas de segurança médica com a garantia do Estado de um atendimento digno e de qualidade. Ao enviar o projeto de Lei para o Senado, o presidente da Argentina Alberto Fernandéz, fez um discurso respaldado pela realidade:

    “A legalização do aborto salva vidas de mulheres, preserva sua capacidade reprodutiva, muitas vezes afetadas por esses abortos inseguros. Legalizar não aumenta o número de abortos ou os promove”, ressaltando que a criminalização do aborto não é eficaz para conter a sua prática, uma vez que milhões de mulheres o fazem e o continuarão a fazê-lo de forma clandestina e em números preocupantes. ‘O debate não é dizer sim ou não ao aborto. Não é ser a favor ou contra o aborto. A realidade é que os abortos ocorrem e colocam em risco a vida das mulheres. A decisão a ser tomada é se o aborto continuará a ser clandestino ou acontecerá através do Estado argentino, fornecendo segurança, proteção e cuidado a essas mulheres”, concluiu.

    A realidade da prática do aborto no Brasil não é diferente. Calcula-se que aproximadamente 1 milhão de abortos clandestinos são realizados anualmente, sendo que 1 entre 5 mulheres de até 40 anos de idade já realizaram um aborto. Os números de mortes e sequelas são incertos, mas estima-se que a cada 2 dias uma mulher morre e cerca de 250 mil internações no SUS (Sistema único de Saúde) são feitas por causa de complicações pós-aborto. Brasileiras com maiores recursos financeiros viajam para outros países onde o aborto é legal ou pagam clínicas que oferecem ambiente adequado e profissionais preparados. Mulheres mais vulneráveis e com maiores dificuldades de acesso a métodos seguros, meninas de 14 anos, negras e periféricas são as maiores vítimas e adoecem, morrem ou são presas, escancarando a desigualdade e revelando a face mais sombria do Brasil composta por racismo, misoginia e toda sorte de preconceitos.

    Por essa e as outras razões aqui expostas, respiramos uma brisa de esperança com a conquista das nossas hermanas argentinas, nos renovamos e nos re-juntamos para seguirmos nutrindo a consciência, os bons afetos, a arte, a alegria, a pluralidade, o respeito, a criatividade, o diálogo, a ética e a solidariedade. Assim incansavelmente lutamos para desmantelar o patriarcado até o dia em que viveremos em equivalência de direitos, autonomia e liberdade plena.

    E como somos mulheres, sabemos, esse dia, há de chegar!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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