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    Joaquim de Carvalho

    Colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa). E-mail: joaquim@brasil247.com.br

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    Felipe Neto e a ousadia da ignorância: influenciador deveria se informar melhor antes de atacar quem desconfia da facada

    Descontando a agressividade, o que sobra da postagem chapa-branca é um livro com erros factuais, da Companhia das Letras, a mesma editora de Felipe Neto

    (Foto: Divulgação)

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    Felipe Neto chama de delírio ou burrice questionar a versão oficial para o evento de Juiz de Fora que definiu a eleição de 2018. Tirando o uso desses substantivos desqualificadores, próprio de quem é arrogante, sobra no post de Felipe Neto um livro de Consuelo Dieguez, “O ovo da serpente - Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e chegada ao poder”.

    “‘O Ovo da Serpente’ traz detalhes da facada, incluindo entrevista com os médicos. O monstro ficou com um talho imenso no bucho. Apenas parem com essa estupidez”, afirmou, na rede X.

    O livro de Consuelo Dieguez foi publicado em 2022 pela mesma editora que agora lança uma obra de Felipe Neto, a Companhia das Letras, mas não creio que essa referência em seu post seja uma ação de marketing para atender aos interesses dos novos editores. Seria muito vulgar.

    E seria também muito arriscado para a Companhia das Letras, porque expõe a autora, por conta da inconsistência factual de seu livro, que já tratei em artigo nesta coluna, em 2022.

    O mais provável é que, querendo causar na rede social, Felipe Neto sacou o livro da colega de editora. Talvez ele pense que a publicação legitima sua posição chapa-branca.

    Só que não. Vejamos:

    Consuelo Dieguez embarcou na narrativa oficial nove dias depois do evento de Juiz de Fora, com uma reportagem na revista Piauí, em 15 de setembro de 2018. Ela cita os policiais federais que faziam a segurança de Bolsonaro como homens desesperados no hospital, minutos depois do evento. “Mataram meu capitão, mataram meu presidente”, gritavam na entrada da Santa Casa, segundo ela.

    A cena simplesmente não existiu. Bolsonaro chegou ao hospital na mesma SUV preta que o tinha levado do Rio para Juiz de Fora, e o acompanhavam o PM Max Guilherme Machado de Moura, que era o motorista, e no banco da frente um oficial do Exército que fazia a segurança do então candidato a presidente. No banco de passageiros, estavam Carlos Bolsonaro e Gustavo Bebianno, além, é claro, de Jair Bolsonaro. Ela cita o cirurgião vascular Paulo Gonçalves como um profissional de destaque na cirurgia realizada para tratar o ferimento.

    “Por volta das 16 horas, o cirurgião vascular Paulo Gonçalves Júnior foi chamado para ajudar na cirurgia. Ele suturou a veia mesentérica e uma tributária, que haviam sido atingidas, o que provocara uma hemorragia abundante”, escreveu.

    Paulo Gonçalves Júnior não foi chamado para participar da cirurgia, ele se apresentou voluntariamente, conforme me informou a Santa Casa, em 2021, quando realizei o documentário “Bolsonaro e Adélio - Uma fakeada no coração do Brasil”.

    A relação de Paulo Gonçalves com Bolsonaro não se limitava ao campo profissional. Duas horas antes, ele estava com a camiseta amarela da campanha, no almoço que empresários como ele ofereceram ao candidato.

    Quando Bolsonaro deu entrada no hospital, Paulo Gonçalves foi para lá, embora não fosse seu plantão. Eleito presidente, Bolsonaro homenageou o médico com uma postagem na rede social, em que escreveu:

    “Com muita emoção, recebi a visita do Chefe da Equipe Médica que salvou minha vida na Santa Casa de Juiz de Fora/MG. Ao Dr. Paulo Gonçalves de Oliveira Júnior e equipe, meu eterno agradecimento.”

    Paulo Gonçalves não era chefe da equipe médica.

    No livro de 449 páginas, Consuelo Dieguez faz outros relatos inconsistentes, com base em versões oficiais.

    A jornalista diz que Adélio foi espancado por policiais.

    “Momentos depois de dar uma facada no então candidato Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira foi conduzido ao primeiro andar de um prédio comercial de Juiz de Fora (MG). Lá, policiais federais tiraram sua camisa e começaram a espancá-lo, numa tentativa de descobrir à força a motivação do crime”, narra.

    “Enquanto apanhava naquele dia 6 de setembro de 2018, Adélio manteve-se calmo, com o olhar perdido; não chorou nem gritou, limitando-se a dizer que não concordava com as ideias de Bolsonaro. A surra só parou quando chegou ao local o tenente-coronel Marco Antônio Rodrigues de Oliveira, então comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais”, acrescenta.

    Segue o relato de Consuelo Dieguez sobre o evento:

    Momentos depois de dar uma facada no então candidato Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira foi conduzido ao primeiro andar de um prédio comercial de Juiz de Fora (MG). Lá, policiais federais tiraram sua camisa e começaram a espancá-lo, numa tentativa de descobrir à força a motivação do crime.Enquanto apanhava naquele dia 6 de setembro de 2018, Adélio manteve-se calmo, com o olhar perdido; não chorou nem gritou, limitando-se a dizer que não concordava com as ideias de Bolsonaro.

    A surra só parou quando chegou ao local o tenente-coronel Marco Antônio Rodrigues de Oliveira, então comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais.

    Em 2022, perguntei a Consuelo se havia alguma evidência do que ela tinha narrado.

    "Tem depoimentos!!! Dá uma olhada no livro!!! Depoimento em on”, respondeu.

    Lembrei que não havia no processo nenhum depoimento nesse sentido. E perguntei se ela havia encontrado exame de corpo de delito que confirmasse a versão do espancamento.

    "Conversa com a PM de JF. Talvez ajude”, ela sugeriu. Consuelo afirmou ainda que interpretou minha pergunta como “uma tentativa de colocar em dúvida o depoimento do livro”.

    Disse que a pergunta tinha sido objetiva - se havia evidência oficial do relato de espancamento. Explicarei adiante a importância de uma prova nesse sentido.

    À pergunta dela se havia uma tentativa de colocar em dúvida o depoimento do livro, a resposta é sim. Não é por birra ou ofensa. Mas porque os fatos vão na direção contrária.

    Adélio foi levado para uma audiência de custódia no dia seguinte ao da sua prisão e a juíza perguntou se ele havia sido agredido.

    Adélio contou que foi levado para um prédio, onde permaneceu protegido da multidão e foi informalmente interrogado.

    A juíza insistiu na pergunta se houve agressão de PMs. Ele respondeu que levou um soco de um policial quando descia a escada e era levado para o camburão, e relatou que um carcereiro, mais tarde, pisou em seu pé descalço na cadeia.

    Nada parecido, portanto, com a cena descrita no livro.

    A audiência de custódia é imposta por lei, entre outras razões para dar ao preso a oportunidade de dizer ao magistrado se sofreu maus tratos ou outros abusos.

    Se Adélio relatou o soco que recebeu quando descia a escada, por que não falaria do espancamento generalizado, que pode ser classificado como tortura?

    O vídeo da audiência de custódia está disponível no YouTube.

    O exame de corpo de delito, a que Adélio se submeteu no dia da prisão, também não dá conta do espancamento generalizado.

    Há pelo menos um vídeo que registra o momento em que Adélio conversa no segundo andar do prédio com um policial federal. Não há nenhum movimento hostil da parte deste. Adélio está sentado no chão e o policial de pé.

    O autor do vídeo é Cleines Pinto de Oliveira, na época cabo da Polícia Militar e candidato a deputado estadual de Minas Gerais pelo PSL.

    A questão do espancamento é importante porque, sendo fato, derrubaria a narrativa de que Adélio foi protegido por policiais e seguranças.

    E efetivamente foi, como mostram fotos e vídeos do dia, o que, é claro, causou estranheza entre os bolsonaristas: como os policiais protegeram aquele que teria tentado matar o ídolo deles?

    Consuelo também diz que os médicos tiveram acesso a um vídeo que mostraria um PM desviando a trajetória da faca e, com isso, ele teria evitado que a lâmina atingisse um ponto fatal no corpo de Bolsonaro.

    A narrativa reproduz reportagens de publicações bolsonaristas, como o Jornal da Cidade. Mas, a rigor, não há nenhum vídeo que mostre essa ação.

    O segurança promovido a herói no livro de Consuelo é o soldado Erlon Rossignoli, que não mora em Juiz de Fora, mas em um município a quarenta quilômetros de distância.

    Nunca ficou claro o que Erlon fazia na cidade naquela sexta-feira. Se era um bolsonarista fanático e se apresentou como voluntário da segurança, por que não havia em sua rede social postagens a favor do “mito"?

    Consuelo escreve no livro que Erlon não dá entrevista. É fato. A mim, ele não quis falar. Mas seria muito importante conversar com ele. Por que a PF não tomou seu depoimento?

    Uma pesquisa que fiz na rede social mostrou que Erlon ascendeu depois do evento em Juiz de Fora. Postagens o apresentam em Cancun, México, fazendo passeios de paraquedas e na neve em Santiago, além de baladas no Rio de Janeiro.

    Não são passeios comuns a quem tem salário como o de PM em Minas Gerais, de R$ 4 mil brutos.

    Erlon tentou me processar por conta da reportagem que fiz com o relato da vida que passou a ostentar na rede social, mas a Justiça em Juiz de Fora considerou sua representação improcedente.

    No dia do evento em Juiz de Fora, um fotógrafo profissional fez mais de mil fotos.

    Vi a sequência desde a concentração no Parque Halfeld até o cruzamento do calçadão com o Batista de Oliveira, onde ocorreu a facada ou suposta facada.

    Erlon só aparece nas imagens no terço final da caminhada. Está de camiseta regata com estampa de bloco de Carnaval, e ao lado de Adélio.

    Os dois não conversam, mas parecem interagir com Felipe Felix, agente da Polícia Federal e principal segurança de Bolsonaro – mais tarde, no governo Bolsonaro, ele foi para a Abin, juntamente com o organizador do esquema de segurança em Juiz de Fora, Marcelo Bormevet.

    Numa sequência de fotos, Felix se aproxima dos dois - e de um rapaz não identificado com cabelos cortados em estilo moderno. A conversa ocorreu depois da primeira tentativa de Adélio de acertar Bolsonaro.

    Nessa tentativa, Adélio fez tanto esforço que, ao se apoiar no ombro de um homem de boné, que era segurança voluntário, o derrubou. Bolsonaro fez, então, sinal de calma com a mão, e desceu do ombro de um apoiador. Permaneceu no chão por alguns minutos. Subiu em outro apoiador, e Felix foi conversar com Erlon, com Adélio e o rapaz de corte moderno ao lado.

    Cerca de 100 metros adiante, ocorreu o golpe, em que Bolsonaro se contorceu e foi levado para o chão de uma lanchonete. Ele ficou ali até a chegada da SUV preta com Carlos Bolsonaro. O carro foi para a Santa Casa, onde médicos o operaram.

    Não afirmo se houve ou não a facada, mas Erlon não é, efetivamente, o herói de Bolsonaro, talvez o seja de Adélio, já que todo o movimento dele não foi para socorrer Bolsonaro, mas para evitar que Adélio fosse agredido.

    Depois de afastar aqueles que queriam agredir Adélio, ele o colocou no chão, e se deitou em cima, e levou chutes, tapas e socos que seriam dirigidos ao autor da facada ou suposta facada.

    No livro, Consuelo Dieguez apresenta o advogado Zanone Manuel de Oliveira Junior como um especialista em direito civil que teria se aproveitado do evento em Juiz de Fora para ganhar dinheiro com curso na área de direito penal.

    "A verdade é que, até assumir o caso de Adélio Bispo de Oliveira, Zanone Júnior advogava majoritariamente na área cível da Justiça de Minas Gerais, em causas como indenizações por acidente de trânsito, danos morais, falências de empresas, direito do consumidor e direito previdenciário. Sua experiência em direito penal anterior à facada era praticamente nula. Mais tarde, em 2020, Zanone Júnior se repaginaria: montaria um escritório especializado em direito penal, além de criar um curso de direito, o Criminal Busine$$”, escreve.

    O relato corrobora a versão de que Zanone buscou o caso para ter exposição midiática e lucrar com isso - o que, sendo verdadeira, enfraqueceria a hipótese de que teria assumido o caso para isolar Adélio.

    Se quisesse exposição, Zanone faria melhor se lutasse pelo julgamento perante tribunal de júri, por tentativa de homicídio.

    Mas Zanone fez o oposto: pediu que o caso ficasse na Justiça Federal em razão da lei de segurança nacional. Pediu também a transferência dele para um presídio de segurança máxima em outro Estado e a abertura de um incidente de insanidade mental contra o cliente.

    Se Adélio tivesse ido a júri, já estaria no regime semiaberto, em razão da progressão da pena. Mas o advogado foi o primeiro a apresentar um laudo para que Adélio fosse considerado inimputável, por Transtorno Delirante Persistente.

    Com isso, Adélio corre o risco de permanecer eternamente na prisão. Zanone adotou esse caminho porque não tinha experiência no direito penal?

    Errado.

    Ao contrário do que diz Consuelo em seu livro, Zanone já era pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal quando assumiu o caso Adélio e tinha atuado em casos de repercussão como o do assassinato de Eliza Samudio (caso Goleiro Bruno) e o da missionária Dorothy Stang.

    O escritório dele já contabilizava centenas de atuações no tribunal do júri.

    O livro não informa que Zanone foi afastado do caso como advogado, depois de uma carta de Adélio à Defensoria Pública da União. Adélio queria ser transferido para uma cadeia próxima da família, mas Zanone não encaminhou o pedido.

    O caso em Juiz de Fora, que mudou os rumos do País, não está encerrado, ao contrário do que Consuelo, Felipe Neto e a velha imprensa insistem em afirmar.

    E questionar a versão oficial não faz de ninguém burro. Já a ousadia da ignorância – própria de quem se posiciona de maneira enfática sem conhecimento de causa – é danosa à história.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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