Justiça esgotada
Como derivação desse esgotamento, permitiu-se que agentes da antijuridicidade e da antipolítica penetrassem e passassem a agir e a militar contra a Constituição
“Quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude tá em casa, guardado por deus, contando vil metal…Por isso cuidado, há perigo na esquina. Eles venceram e o sinal está fechado pra nós… Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam. Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém, mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.” Belchior, Como Nossos Pais, 1976.
Faz quase trinta e cinco anos, a Constituição pós-ditadura era promulgada, após dois anos de propostas e debates no Congresso Constituinte, com relativo, mas relevante, envolvimento social, forte engajamento corporativo, e esperança política de redemocratização. O deputado Ulysses Guimarães, que presidia o Congresso, ergueu o caderno que continha o texto aprovado e autografado, e declarou a vigência da Constituição que chamou de Cidadã, com a vibração de quem fazia inaugurar uma nova era na história do povo brasileiro e de sua relação com o Estado.
Essa energia inaugural não deixava de ser paradoxal. O gesto impulsionava para o futuro, para a concepção do novo, mas o texto não deixava dúvida de que esse projeto estava fadado a encontrar precisamente o obstáculo da permanência dos velhos ídolos do passado, guardados pela imposição não apenas da anistia, mas pelo exercício contínuo de seus direitos exclusivos e privilégios, nos cargos e funções que ocuparam, ocupavam e viriam a ocupar, por decisão e escolha do regime ditatorial pretensamente abandonado. Era algo assim como o prosseguimento da leitura ou escritura de um livro, mas com o dever de retornar sempre às páginas precedentes, o que atravancava a compreensão do sentido do livro que se lia ou escrevia. As folhas que estavam por vir remetiam ao passado, cujo destino não se deixava resolver.
1. No texto dessa Constituição, havia um amplo capítulo sobre o Poder Judiciário e sobre as que passaram a se chamar Funções Essenciais à Administração da Justiça. Dentre elas, destacava-se o Ministério Público, que se tornava protagonista da nova ordem, por meio da assunção da titularidade do novo instrumento da Ação Civil Pública, portanto guardião dos interesses coletivos e difusos. Esses interesses haviam sido concebidos na doutrina internacional, sobretudo italiana – grande modelo do direito processual brasileiro, até então. Figuravam um terceiro gênero, entre os direitos individuais ou privados, e os interesses públicos ou estatais. Os interesses coletivos e difusos eram aqueles que pertenceriam a uma coletividade determinada (os consumidores dos serviços de energia, por exemplo) ou difusa (a humanidade em relação ao meio ambiente, por exemplo). Não seriam propriamente de indivíduos nem do Estado, mas da sociedade.
O que já se mostrava criticável era o fato de essa nova categoria de direitos pertencer à sociedade – coletiva ou difusa, conforme o nível de concreção e, seu reverso, abstração subjetiva – mas não estar elencada entre as garantias constitucionais do artigo 5º do texto constitucional - ao lado da ação popular, do mandado de segurança individual e coletivo, do mandado de injunção (completado pela ação de inconstitucionalidade por omissão, no artigo 103), do habeas corpus, do novo habeas data, dos direitos de representação e de petição. Não, a ação civil pública aparecia no elenco das funções do Ministério Público, no artigo 129.
Sucessivas reformas da Constituição vieram a acrescentar outros instrumentos de garantia constitucional, sobretudo os compilados pela emenda 45 de 2004, chamada de Reforma do Poder Judiciário.
O importante, porém, é observar que o poder judiciário e as funções jurídicas de Estado mereceram um cuidado especial do texto constitucional original, exatamente porque o regime ditatorial havia negado a capacidade de funcionamento desse poder – assim como a do legislativo – ao impor uma ordem de contenção de deveres e de recusa de direitos, na negação absoluta da cidadania. Entendia-se, em 1988, que para que o valor da cidadania – o segundo enumerado na Constituição Cidadã, logo após o da soberania, e seguido por dignidade humana, trabalho, livre iniciativa e pluralismo político – dependia, para se concretizar, da atuação e uma instituição judicial forte e independente, que pudesse, quem sabe, levar adiante uma política pública da justiça. Entretanto, sobre qual fosse essa política pública essencial, o texto constitucional silenciava, confiando, perigosamente, no andamento das coisas da justiça, entendida como verdadeiro sistema autônomo, guardando regras e princípios próprios escritos e, sobretudo, não escritos, reproduzidos no ensino jurídico e garantidos pelos meios tradicionais de amealhar seus funcionários para o exercício daquelas funções essenciais: os concursos públicos, as indicações e as nomeações – seja para os cargos em comissão (não providos por concurso), seja para a composição dos tribunais de segunda instância estaduais e federais, seja para os tribunais superiores, além dos que exerciam funções mistas de justiça e administração, sob o nome de, e com as garantias dadas aos tribunais, assim os Tribunais de Contas – órgãos do poder legislativo, na atividade de fiscalização das finanças públicas, e os tribunais eleitorais, na atividade de administrar as eleições, sanar dúvidas mediante consultas e julgar crimes eleitorais. Mantinham-se estruturas tradicionais, e mesmo aquelas que tiveram grande vulto no curso do regime ditatorial, como foi o caso da justiça militar.
Mantinham-se ou restauravam-se competências tradicionais, modos de proceder, um conjunto enorme de normas, sem qualquer reflexão sobre seu efetivo valor, sem pensar sobre sua compatibilidade com o que se pretendia tornar uma nova ordem constitucional.
Ficava inalterado o modo de ensino ou de mera condução da transmissão de saberes dos cursos de direito. Permaneciam as maneiras de realizar os concursos e nomeações. Os aspectos processuais e administrativos tornavam-se preponderantes nessa educação pretensamente jurídica.
Era, pois, resgatada a forte hierarquia desses cursos e funções, tão hábeis em moldar elites e em disciplinar pessoas postas a seu serviço.
O sistema corporativo ganhava oxigênio novo. O sistema cartorial se empoderava. O sistema de justiça recompunha os antigos vícios e reproduzia novos, adquiridos no curso de uma história de desigualdades que se acentuava nos momentos de introdução de regimes de exceção – ou, se se quiser interpretar de maneira mais fiel, uma história de permanência da dominação, dividida por períodos de sua maior ou menor agudização antirrepublicana obstinada.
Em conclusão, não houve fundação de uma ordem nova para a justiça, mas a recomposição de estruturas antigas, degradadas pela ditadura. A isso se acresce o fato de autoanistia do Estado brasileiro ter impedido a realização seja de apuração de crimes e demais atos ilegais cometidos pelo regime ditatorial, por meio de processos contra ditadores e colaboradores e colaboradoras, seja a realização de uma justiça de transição, comissões da verdade e de reconciliação, seja o afastamento de funções públicas dos que participaram e colaboraram com a ditadura.
2. Essa estrutura tradicional mostrou-se inapta a levar a cabo uma política de justiça. Em primeiro lugar porque estava ausente da previsão dos constituintes a noção do que poderia figurar essa política pública. Em segundo lugar, porque a intenção constituinte era apenas de restaurar a imaginada virtude do sistema precedente. Em terceiro lugar, porque, além dessa restauração, o texto visava a conciliar a intenção de projetar a construção da democracia, sem romper os laços com o regime imediatamente anterior. Neste aspecto, era forte a convicção de que a ditadura brasileira teria virtudes, malgrado a cassação das liberdades. Em quarto lugar, o texto constitucional indicava algumas inovações correspondentes a mudanças legislativas, de caráter quase que exclusivamente processual, havidas nos últimos anos da ditadura, assim, por exemplo a ação civil pública já referida, e os juizados de pequenas causas. Parece não ter querido se dar conta de que a índole autoritária (da tradição do direito brasileiro, acentuada no decorrer da ditadura) estava presente naquelas iniciativas, e resolvido perpetuar tal índole, no conjunto das inovações que sugeria.
Mais do que isso, a concepção de judiciário e - precária, se não institucional e autoritária - de justiça foi responsável pelo agravamento das próprias condições de funcionamento desse Poder, diante dos problemas estruturais da sociedade brasileira.
Em último lugar, entre as razões para a quase falência desse sistema de justiça, pode-se acrescentar uma razão cultural: a convicção de que se vivia a assim denominada Era dos Direitos, em decorrência da qual caberia ao Judiciário assumir o protagonismo da vida política nacional.
Foi essa razão que direcionou o espírito da Reforma do Poder Judiciário, em 2004, realizada por meio da Emenda 45 à Constituição. Adicionou-se ao Judiciário uma estrutura de centralização e controle administrativos de juízes e tribunais e do Ministério Público, os Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público – CNJ e CNMP. Nesse caso, a ideia de um controle externo do Judiciário foi abandonada em prol da criação de um órgão de controle interno, fazendo crescer ainda mais o aparato burocrático desse poder. A par disso, buscou-se a centralização ou concentração maior também do próprio sistema de decisões, por meio de mecanismos de controle pelos tribunais superiores, como as súmulas, incidentes de uniformização de recursos repetitivos etc.
Dessa maneira, a hierarquia interna - da justiça e das funções essenciais a sua administração -tornou-se mais forte e os tribunais superiores passaram a ter importância inusual, seja na história do direito brasileiro, seja naquela da construção democrática internacional. Não se tratava de aprimorar o controle de constitucionalidade, mas de afastar a possibilidade de controle e participação democráticos na Justiça, favorecendo lobbies de corporações empresariais e advocatícias, únicos a poder empreender relacionamento com os atores do topo da pirâmide do sistema judicial. Torna-se comum a convivência desses atores com os representantes daquelas corporações, em eventos cada vez mais inacessíveis à esmagadora maioria dos que exercem a advocacia e cada vez mais distantes do olhar e do controle democráticos, seja pelo próprio povo, seja pela imprensa.
O controle de constitucionalidade já era deficitário, na história de nosso País, tendo em vista a inexistência de uma Corte realmente Constitucional – substituída por tribunais de recursos superiores, que faziam o papel de administradores do direito e da justiça, em nome da elite brasileira. Tornou-se, com essa reforma, ao mesmo tempo, mais amplo e mais flexível, com a possibilidade de emprego de vários instrumentos e de modulação de eficácia ou de efeitos de decisões. A função mediadora e consultiva do judiciário em relação aos demais poderes e ao processo de formação das leis ficou mais evidente, por meio de ações diretas de constitucionalidade e de intervenções no andamento de atividades de controle e de legislação do poder legislativo.
Em suma, 2004 marcou a história da justiça, paradoxalmente, sob a ordem de 1988, como tentativa de atualizar o velho sistema, não, porém, como modo de tornar democrático e acessível o poder judiciário e suas funções essenciais, mas de o tornar cada vez mais distante, centralizado e concentrado. Buscava preservar ou mesmo incrementar uma capacidade que já se havia demonstrado incapaz de estabelecer – sob o poder do povo, como seria dever constitucional – uma autêntica política pública de justiça. O CNJ e o CNMP passaram a exercer uma força antagonista do princípio democrático constitucional e passaram a estender suas tarefas para além mesmo daquilo que previa a Emenda 45, numa fragmentária instituição de políticas particulares, sem visão de conjunto, sem participação e controle populares efetivos, buscando implementar saberes e práticas oriundos de concepções de mundo desenraizadas e, muita vez, desconexas, seja entre si, seja da relação que deveriam ter com a sociedade.
3. Muitas consequências decorrem dos problemas aqui brevemente apontados e analisados. Vou referir apenas duas delas.
A primeira é a profunda inadequação do sistema de justiça vigente e de seus atores de compreenderem os problemas jurídicos da sociedade brasileira e de lhes oferecer uma solução coerente. Isto é, fazerem um diagnóstico sério dessa situação grave de injustiça e formularem uma política pública para superação desse estado.
A segunda, a inadequação de sistema e atores para garantirem com eficiência a própria Constituição que lhes concedeu base de existência.
A primeira consequência deve ser estudada por meio do levantamento do grau de insatisfação da sociedade com os mecanismos de justiça. Essa insatisfação é encontrada e definida desigualmente, no interior da sociedade brasileira. A justiça serve apenas a uma parcela do povo brasileiro. E serve de modo ineficaz, tendo em vista a busca cada vez mais intensa de meios de solução de problemas que se mostrem alternativos aos tradicionais. Voltarei a estudar esse tema em artigo posterior.
Quanto à segunda, fica demonstrada pela demora do Poder Judiciário e do Ministério Público em darem resposta adequada aos atentados e à militância de um regime anticonstitucional, que se instaurou no País, por meio da união de forças antipolíticas e antijurídicas diversas (no limite, forças criminosas), e não teve, sobretudo da parte desses tão importantes Poder e órgão, capacidade efetiva de enfrentamento e afastamento.
4. A conclusão é a de que o sistema de justiça, na forma como se desenvolveu em nosso País, chegou ao limite de sua existência.
Em breve formulação, seu repertório se esgotou.
Uma das provas desse esgotamento está no fato de que o enfrentamento do regime anticonstitucional se ter dado apenas no final do período de quatro anos da gestão Bolsonaro, e por meios diversos dos propriamente jurisdicionais: funcionaram mecanismos de atuação administrativa -típica ou não –, veiculados por inquéritos instaurados no Supremo Tribunal Federal e pela atividade do Tribunal Superior Eleitoral. Ou seja, a justiça, propriamente, mostrou-se incapaz de responder ao gravíssimo atentado contra a Constituição, seus valores e regras, seus direitos, deveres e políticas públicas. Atentado tramado e dirigido no interior da organização estatal. Em decorrência disso, a ameaça contra o Estado Democrático de Direito continua presente, ainda no interior do Estado, em seus diversos Poderes e entes da Federação.
Como derivação desse esgotamento de repertório, permitiu-se que agentes da antijuridicidade e da antipolítica penetrassem e passassem a agir e a militar contra a Constituição, desempenhando funções públicas de altíssima relevância.
Existe, portanto, um desafio para as pessoas que realmente se interessem pela constituição da justiça em nosso País. O desafio de repensar o Judiciário a partir da perspectiva da Constituição. Isso não vai poder ser feito se preservarmos os mesmos atores no palco das instituições jurídicas. O próprio redesenho desse palco deve ser empreendido.
No próximo texto, pretendo oferecer um projeto mais detalhado dessas mudanças materiais e pessoais, em mais uma continuação à proposta que fiz no artigo “A Justiça no Brasil Democrático e a necessária participação popular nas indicações para cortes superiores” (disponível em https://www.brasil247.com/blog/a-justica-no-brasil-democratico-e-a-necessaria-participacao-popular-nas-indicacoes-para-cortes-superiores).
Por ora, é preciso lembrar que, na expressão do poeta, “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.” Vamos abrir o sinal para o novo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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