Não Cometerás Genocídio
Opôr-se ao genocídio é uma escolha moral, não política
Publicado originalmente no Substack do autor em 16 de agosto de 2024
Há apenas uma maneira de acabar com o genocídio em andamento em Gaza. Não é por meio de negociações bilaterais. Israel já demonstrou amplamente, incluindo o assassinato do principal negociador do Hamas, Ismail Haniyeh, que não tem interesse em um cessar-fogo permanente. A única maneira de interromper o genocídio dos palestinos por Israel é os EUA cessarem todos os envios de armas para Israel. E a única forma de isso ocorrer é se os estadunidenses deixarem claro que não têm intenção de apoiar nenhum candidato presidencial ou partido político que alimente esse genocídio.
Os argumentos contra um boicote aos dois partidos dominantes nos EUA são familiares: Isso garantirá a eleição de Donald Trump. Kamala Harris mostrou retoricamente mais compaixão do que Joe Biden. Não somos suficientes para causar impacto. Podemos trabalhar dentro do Partido Democrata. O lobby israelense, especialmente o Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelense (AIPAC), que controla a maioria dos membros do Congresso, é muito poderoso. As negociações eventualmente alcançarão uma cessação do massacre.
Em resumo, somos impotentes e devemos render nossa autonomia para sustentar um projeto de matança em massa. Devemos aceitar como governança normal o envio de centenas de milhões de dólares em ajuda militar para um estado de apartheid, o uso de vetos no Conselho de Segurança da ONU para proteger Israel e a obstrução ativa dos esforços internacionais para acabar com o assassinato em massa. Não temos escolha.
Genocídio, o crime dos crimes internacionalmente reconhecido, não é uma questão política. Não pode ser equiparado a acordos comerciais, projetos de infraestrutura, escolas charter ou imigração. É uma questão moral. Trata-se da erradicação de um povo. Qualquer rendição ao genocídio nos condena como nação e como espécie. Isso move a sociedade global mais para perto da barbárie. Esvazia o Estado de direito e ridiculariza todos os valores fundamentais que afirmamos honrar. Está em uma categoria à parte. E não combater o genocídio com todas as nossas forças é ser cúmplice do que Hannah Arendt define como “o mal radical”, o mal onde os seres humanos, como seres humanos, são tornados supérfluos.
A abundância de estudos sobre o Holocausto deveria ter tornado esse ponto indelével. Mas os estudos sobre o Holocausto foram sequestrados pelos sionistas. Eles insistem que o Holocausto é único, que de alguma forma está separado da natureza e da história humanas. Os judeus são deificados como vítimas eternas do antissemitismo. Os nazistas são dotados de um tipo especial de desumanidade. Israel, como conclui o Museu Memorial do Holocausto dos EUA em Washington, é a solução. O Holocausto foi um dos vários genocídios ocorridos nos séculos XIX e XX. Mas o contexto histórico é ignorado e, com ele, a nossa compreensão da dinâmica da exterminação em massa.
A lição fundamental do Holocausto, que escritores como Primo Levi destacam, é que todos podemos nos tornar algozes voluntários. Não é preciso muito. Todos podemos nos tornar cúmplices no mal, ainda que apenas por indiferença e apatia.
“Monstros existem,” escreve Levi, que sobreviveu a Auschwitz, “mas são poucos em número para serem verdadeiramente perigosos. Mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos para acreditar e agir sem fazer perguntas.”
Confrontar o mal — mesmo que não haja chance alguma de sucesso — mantém viva a nossa humanidade e dignidade. Permite-nos, como escreve Vaclav Havel em “O Poder dos Sem-Poder”, viver na verdade, uma verdade que os poderosos não querem que seja dita e procuram suprimir. Fornece uma luz orientadora para aqueles que vêm depois de nós. Diz às vítimas que não estão sozinhas. É “a revolta da humanidade contra uma posição imposta” e uma “tentativa de recuperar o controle sobre o próprio senso de responsabilidade.”
O que se pode dizer sobre nós se aceitarmos um mundo onde armamos e financiamos uma nação que mata e fere centenas de inocentes por dia?
O que se pode dizer sobre nós se apoiarmos uma fome orquestrada e o envenenamento da água onde o vírus da poliomielite foi detectado, o que significa que dezenas de milhares adoecerão e muitos morrerão?
O que se pode dizer sobre nós se permitirmos por 10 meses o bombardeio de campos de refugiados, hospitais, vilarejos e cidades para exterminar famílias e forçar os sobreviventes a acampar ao ar livre ou procurar abrigo em tendas precárias?
O que se pode dizer sobre nós quando aceitamos o assassinato de 16.456 crianças, embora esse número certamente esteja subestimado?
O que se pode dizer sobre nós quando vemos Israel intensificar ataques a instalações da ONU, escolas — incluindo a escola Al-Tabaeen na Cidade de Gaza, onde mais de 100 palestinos foram mortos enquanto realizavam as orações de Fajr, ou da alvorada — e outros abrigos de emergência?
O que se pode dizer sobre nós quando permitimos que Israel use palestinos como escudos humanos forçando civis algemados, incluindo crianças e idosos, a entrar em túneis e prédios potencialmente armadilhados antes pelas tropas israelenses, às vezes vestidos com uniformes militares israelenses?
O que se pode dizer sobre nós quando apoiamos políticos e soldados que defendem o estupro e a tortura de prisioneiros?
São esses os tipos de aliados que queremos capacitar? É esse é o comportamento que desejamos abraçar? Que mensagem isso envia ao resto do mundo?
Se não mantivermos firmes os imperativos morais, estamos condenados. O mal triunfará. Significa que não há certo e errado. Significa que qualquer coisa, incluindo assassinato em massa, é permissível. Manifestantes fora da Convenção Nacional Democrata no United Center em Chicago exigem o fim do genocídio e da ajuda dos EUA a Israel, mas dentro da convenção somos alimentados com uma conformidade repugnante. A esperança está nas ruas.
Uma postura moral sempre tem um custo. Se não houver custo, não é moral. É apenas uma crença convencional.
“Mas e o preço da paz?” pergunta o padre católico radical Daniel Berrigan, que foi enviado para a prisão federal por queimar registros de conscrição militar obrigatória durante a guerra do Vietnã, em seu livro “Sem Barreiras para a Humanidade:”“Penso nas pessoas boas, decentes e amantes da paz que conheci aos milhares, e me pergunto. Quantos deles estão tão afligidos pela doença desgastante da normalidade que, mesmo enquanto se declaram pela paz, suas mãos se estendem com um espasmo instintivo na direção de seus confortos, sua casa, sua segurança, sua renda, seu futuro, seus planos — aquele plano de cinco anos de estudos, aquele plano de dez anos de status profissional, aquele plano de vinte anos de crescimento e unidade familiar, aquele plano de cinquenta anos de vida decente e morte natural honrosa. ‘Claro, vamos ter a paz,’ clamamos, ‘mas ao mesmo tempo vamos ter normalidade, não vamos perder nada, que nossas vidas permaneçam intactas, que não conheçamos prisão, nem má reputação, nem rompimento de laços.’ E porque devemos abarcar isso e proteger aquilo, e porque a todo custo — a todo custo — as nossas esperanças devem avançar conforme o cronograma, e porque é inconcebível que em nome da paz uma espada deva cair, desfazendo aquela fina e engenhosa teia que nossas vidas teceram, porque é inconcebível que homens bons sofram injustiça ou famílias sejam desfeitas ou a boa reputação seja perdida — por isso clamamos paz e clamamos pela paz, e não há paz. Não há paz porque não há pacificadores. Não há fazedores de paz porque fazer a paz é pelo menos tão custoso quanto fazer a guerra — pelo menos tão exigente, pelo menos tão perturbador, pelo menos tão sujeito a trazer desgraça, prisão e morte em seu rastro.”
A questão não é se a resistência é prática. É se a resistência é correta. Somos ordenados a amar o nosso próximo, não a nossa tribo. Devemos ter fé de que o bem atrai o bem, mesmo que a evidência empírica ao nosso redor seja sombria. O bem sempre é encarnado em ação. Deve ser visto. Não importa se a sociedade em geral é censuradora. Somos chamados a desafiar — por meio de atos de desobediência civil e não de conformidade — as leis do estado, quando essas leis, como frequentemente acontece, conflitam com a lei moral. Devemos estar ao lado, não importa o custo, dos crucificados da terra. Se não tomarmos essa posição, seja contra os abusos da polícia militarizada, a desumanidade do nosso vasto sistema prisional ou o genocídio em Gaza, nos tornamos os crucificadores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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