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    Ramon Brandão

    Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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    O grito, o silêncio, o corpo

    Não é desejável que o sujeito falante seja sempre o mesmo. É preciso fazer falar todas as espécies de experiências, dar ouvidos aos excluídos, aos moribundos, pois são eles que efetivamente enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas

    Não é desejável que o sujeito falante seja sempre o mesmo. É preciso fazer falar todas as espécies de experiências, dar ouvidos aos excluídos, aos moribundos, pois são eles que efetivamente enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas (Foto: Ramon Brandão)

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    Atualmente são desenhadas relações de poder que nos apontam para determinada verdade e que se constituem não pela força, mas pela inscrição de uma espécie de “caligrafia de morte” nos nossos corpos. Sob uma ordem do discurso, o silêncio rasga nossas vozes num gesto abrupto onde a palavra é desarticulada até se transformar em grito silencioso. Complexa, a realidade é um infinito jogo de relações de poder.

    É no interior desse jogo que os indivíduos se reconhecem. Indivíduos que são colocados numa rede de práticas que evidenciam a relação e o envolvimento entre os corpos que agem, a produção de identidades e a linguagem. Isso, em outras palavras, significa dizer que os seres humanos ao falarem, o fazem sempre apoiados em algo que já está presente em seus corpos antes da fala.

    Cada discurso ambiciona um corpo. Corpo que acolhe os usos, os costumes, a memória, a cultura e todos os outros códigos que permitem ao indivíduo reconhecer-se num outro. Discursos que pretendem fazer dos corpos um alfabeto dócil, que buscam marcar uma circunscrição territorial da palavra, onde as regras narrativas vinculam-se a si próprias como matrizes de legitimação, constituindo, assim, algo como uma forma narcísica. Essa composição discursiva entalha-se nos corpos sem qualquer possibilidade de interpretação.

    Fechado em si mesmo, esse discurso nada oferece e tais questões confrontam-se diretamente com o problema pensado pelo filósofo francês Michel Foucault acerca da relação entre o saber e o poder. “Não é verdade que o conhecimento possa funcionar ou que se possa descobrir a verdade, a realidade, a objetividade das coisas, sem colocar em jogo um certo poder, certa forma de dominação, certa forma de submissão. Conhecer e dominar, saber e comandar, são coisas que estão intimamente ligadas”, dizia.

    A partir de uma ligação íntima, esses regimes de poder desenvolvem formas de organização do espaço que se definem sob uma vontade de disciplinar e normalizar as relações entre os indivíduos. Ligado a uma noção de governamentalidade onde se desenham certas figuras de espacialização do poder, o processo de disciplinarização e normalização dos indivíduos realiza-se através de meticulosos processos de vigilância e controle sobre o corpo individual. Procura-se criar com isso, sob um mecanismo infinitesimal e microfísico, corpos dóceis.

    Ora, nesse tecido de relações, o próprio corpo é um elemento fundamental, uma vez que a articulação entre o saber e o poder se define pela tecnologia política que, voltada aos corpos, torna-se “efeito-objeto” de um processo de racionalização instrumental. O corpo humano, nesses termos, existe no interior, através e para um sistema político.

    Intrinsecamente articulada com certa ordem do discurso, a organização dos espaços se configuram apenas como possibilidade de dominar os corpos através de uma esquadria dos gestos e dos movimentos dos indivíduos. Se no século XVII o corpo do rei constituía o núcleo de um sistema político onde a presença física do soberano, necessária ao funcionamento da monarquia, possuía em si mesma uma realidade política, no século XVIII o poder foi além; foi exposto ao corpo, penetrando nele. Isso supõe a coexistência quase paradoxal entre, por um lado, o processo que neste século se inicia de libertação política dos indivíduos e das sociedades e, por outro, um processo de esquadrinhamento disciplinar dos corpos.

    A ideia de um corpo social, constituído pela universalidade das vontades, surge como um fantasma que atravessa o sistema político do século XIX. Segundo Foucault, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade de certo poder exercendo-se sobre os corpos individuais. Ora, criando uma forma biopolítica de poder, a modernidade implementa um complexo processo de localização espacial da ordem do discurso; ordem que, mais uma vez, se concretiza nos corpos: “nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal do que o exercício do poder. Do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso”, dizia Foucault.

    A íntima articulação entre os mecanismos do saber e do poder dá origem a uma soma de sofrimentos e revoltas inaudíveis. A forma “grito” é tornada inacessível precisamente pelo filtro do saber instituído. No interior das instituições que definem a loucura, por exemplo, a ordem do discurso cria formas de sofrimento que rasgam, nos corpos insubmissos, a legitimidade da palavra ou do grito. No asilo, por sua vez, desenvolvem-se dispositivos através dos quais a palavra é desarticulada até não poder transformar-se em grito. O indizível, por fim, se enraíza no corpo, e um silêncio sem sombra se faz matéria. 

    É preciso que as vozes de um número incalculável de sujeitos falantes ecoem e se faça falar uma inumerável experiência. Não é desejável que o sujeito falante seja sempre o mesmo. É preciso fazer falar todas as espécies de experiências, dar ouvidos aos excluídos, aos moribundos, pois são eles que efetivamente enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas. A tarefa da contemporaneidade é dar ouvidos a todas as vozes.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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