O perigo das telas e a necessidade de ampliação do debate para além dos muros da escola
O problema relativo ao uso de telas não pode restringir-se aos assuntos da escola. Não é apenas a aprendizagem a principal afetada pelo vício
O problema relativo ao uso ininterrupto de telas por crianças e adolescentes, de modo especial, e adultos, de modo geral, não pode restringir-se aos assuntos da escola. Não é apenas a aprendizagem a principal afetada pelo vício que as telas produzem. Devemos incluir outros aspectos a elas vinculados, como demonstram diversos estudos que apontam para problemas de: a) ordem física: distúrbios do sono (Silva et al., 2022); fadiga ocular digital (Costa et al., 2023); sedentarismo e obesidade (Vasconcellos et al., 2023); dores musculoesqueléticas (Queiroz et al., 2022); cognitiva: déficit de atenção (Türcke, 2016); problemas de aprendizado (Türcke, 2016; Desmurget, 2023); ansiedade e depressão (Lanier, 2018); problemas de memória (Desmurget, 2023; Barbosa et al., 2023); social: isolamento social (Lanier, 2018); impactos na autoestima (Lanier, 2018; Desmurget, 2023); dependência digital (Quiroga e Bessa, 2024).
Em “A fábrica de cretinos digitais”, título provocativo do neurocientista francês Michel Desmurget, no qual aborda a importância da restrição do uso de telas e demonstra os inúmeros perigos relativos ao seu uso excessivo, uma recomendação é clara: ausência de telas antes dos seis anos! Exagero? Parece que sim, sobretudo se considerarmos o fardo diário que pais e mães carregam em uma sociedade onde a exploração do trabalho ininterrupto, como já observara Jonathan Crary em 24/7, acerca dos esforços do sistema por extrair do sujeito um nível de exploração que se estende até o sono, isto é, 24 horas por dia, sete dias por semana. Como escreve Crary (2016):
“Na realidade, há uma uniformidade imposta e inescapável no nosso trabalho compulsório de autoadministração. A ilusão de escolha e autonomia é um dos pilares do sistema global de autorregulação.”
Ora, a existência de um imperativo que aponte para a restrição ou retirada de telas em crianças até os seis anos soa demasiadamente liberal, desarticulado do temperamento neoliberal, considerando as composições familiares diversas, matri ou patrifocais, e as dificuldades de conciliar trabalho e vida doméstica. Orientar para a restrição do uso de telas em contextos que oferecem outras possibilidades de estímulos cognitivos e motores pode ser algo interessante, sobretudo ao expor os argumentos científicos que apontam para os perigos vinculados ao seu uso. No entanto, para a mãe ou o pai cujo nível de exploração ultrapassa os muros domésticos e os limites biológicos, tomando-lhes inclusive o sono, tal orientação pode não passar de uma diretriz retórica, desconectada da realidade.
O problema, portanto, não pode ficar restrito à esfera da moral doméstica burguesa. Com a plataformização do trabalho intensificando a exploração laboral (uberização), o uso de telas tem sido cada vez mais recorrente entre as camadas menos favorecidas. A opção por sua substituição por outros estímulos — de entretenimento, crescimento pessoal e trabalho — tem se consolidado como um privilégio de classe.
Essa é a razão pela qual a escola de massas, voltada para um modelo que visa à formação dualista de consumidores/trabalhadores precários, tem sido submetida à ideologia da inovação tecnológica, muitas vezes, como observa Selwyn, sem efeitos positivos sobre o ensino e a aprendizagem. Ao contrário, o que temos presenciado, em número cada vez mais expressivo, é o excesso de demandas que os profissionais da educação têm recebido em razão de plataformas educacionais que transbordam os limites físicos da escola.
Vejamos: no perverso cálculo capitalista, o que uma criança de dois anos está fazendo com um celular em mãos, rolando a tela freneticamente, reagindo à avalanche de estímulos visuais e informações incompatíveis com sua capacidade cognitiva e biológica? Está sendo preparada para o mundo do trabalho precário: capacidade cognitiva comprometida e pleno domínio em plataformas. Às classes mais favorecidas, aquelas que possuem hábitos de leitura e condições propícias para um debate esclarecedor acerca da problemática — incluindo a possibilidade de associações de mães e pais que visam à proteção das crianças —, restam as condições para a proibição e o uso controlado de telas.
A questão, que a princípio parece atitudinal, é, no fundo, política. Desse contexto, é louvável o primeiro passo dado pelo MEC por meio da Lei nº 15.100/2025, que restringe o uso de celulares nas escolas. Trata-se de um avanço importante, embora ainda distante de um olhar atento sobre a saúde mental na perspectiva da saúde pública. Sob a ótica escolar, os problemas estão mais relacionados às interferências e aos mal-estares que o celular produz nas relações em sala de aula: o cyberbullying, a disputa pela atenção dos alunos, a substituição esmagadora dos conteúdos escolares por conteúdos de entretenimento — como dancinhas do TikTok, jogos e redes sociais —, cujos resultados, em termos de sentido escolar, degeneram em cinismo e fortalecem discursos de ódio.
No entanto, a questão maior, aquela que deve nortear um debate mais sério sobre o tema, diz respeito à cultura digital, inevitavelmente forjada pelos condicionantes do novo modelo de exploração do trabalho, cujos limites não se restringem apenas ao corpo, mas atravessam, sobretudo, a dimensão psicológica. O problema deve ser encarado em sua totalidade, o que significa considerar as quase 20 horas diárias que restam após a frequência à escola — isto é, a ubiquidade do celular e da televisão nos lares como principais substitutos de relações afetivas, criativas e ricas em estímulos culturais e cognitivos.
É na vida cotidiana, na rotina dos lares, que se instala o desenvolvimento do vício que leva à compulsão pela repetição, à nomofobia e, em casos extremos, a tragédias como as de jovens que matam seus parentes próximos, como pais, mães e avós por tentarem controlar o uso de telas.
Mas o problema não se resume aos casos extremos. Há um fenômeno silencioso, asséptico, dissimulado e camaleônico que tem acometido centenas de lares há algum tempo: a substituição do sono pelo uso do celular. Ele é silencioso porque, em vez de incentivar o debate e suscitar discussões familiares relevantes — como comentários sobre filmes, livros, política ou cultura —, desloca-se para o fone de ouvido e para o solipsismo dos conteúdos hiperindividualizados de um modelo cultural à la carte; asséptico, porque inutiliza o corpo, anulando a mobilidade dos objetos físicos, em consonância com a organização fria e morta dos ambientes; dissimulado, porque se finge de positivo para a aprendizagem, parecendo oferecer ao usuário um vasto repositório de conhecimento, quando, na verdade, o percurso é invariavelmente conduzido por algoritmos mal-intencionados que empurram o usuário ao consumo, ao ódio e ao entretenimento superficial que termina por produzir tristeza e sofrimento; e camaleônico, porque imita nossos gestos e pensamentos com o objetivo de moldar comportamentos e orientar o jogo político a favor do poder econômico.
Esse é o fenômeno da “expiação do sono” provocada pelo uso abusivo (e aqui abusivo é a regra, não a exceção) de telas, como smartphones, videogames e desenhos animados em fluxo contínuo. O problema é ainda mais profundo do que a mera restrição do uso de celulares nas escolas, sobretudo porque as famílias são parte constitutiva da educação.
Esses são apenas alguns dos desdobramentos do uso excessivo de telas na sociedade contemporânea brasileira, os quais apontam para a necessidade de expandir o debate sobre suas consequências catastróficas. Sem dúvida, reduzir o problema à dimensão educacional é, no mínimo, fechar os olhos diante da abrangência que seus efeitos produzem em escala social e cultural.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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