O “sistema” e a “democracia”
'Fatos nos conduzem a questionar o referido apreço pelo 'sistema' e, também, a qualificar o que foi chamado de 'democracia', escreve o colunista Valter Pomar
“Eu gosto do sistema, o sistema é a democracia”: a afirmação foi feita pela deputada Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista português, ao falar do “legado de abril”, na parte final do seminário sobre os “50 anos da Revolução dos Cravos”, organizado pela Fundação Perseu Abramo.
A íntegra dos três painéis realizados no referido seminário pode ser assistida através dos links abaixo:
“Foi bonita a festa, pá?”
https://www.youtube.com/watch?v=3W7PmejIYlA
“O salazarismo, os militares e a Revolução
https://www.youtube.com/watch?v=5RzN9RKFN98
“O legado de abril”
https://www.youtube.com/watch?v=WFNfyvMaKwU
O elogio simultâneo ao “sistema” e à “democracia” foi proferido pela deputada portuguesa no contexto de uma polêmica sobre o papel do Partido Socialista, seja na atualidade, seja nos acontecimentos de novembro de 1975, quando foi interrompido o processo revolucionário iniciado em abril de 1974.
A referida deputada, no mesmo debate, criticou a atitude “paternalista” que, segundo ela, setores da esquerda adotam frente a eleitores da extrema-direita. Sempre segundo a deputada, a esquerda não pode ser culpada, nem deveria se considerar culpada, pelo fato de existirem na população pessoas que são racistas, homofóbicas etc e tal.
Antes, disse a deputada, essas pessoas existiam, mas tinham vergonha; agora, perderam a vergonha. Antes, não votavam. Agora, passaram a votar.
Estes fatos nos conduzem a questionar o referido apreço pelo “sistema” e, também, a qualificar o que foi chamado de “democracia”.
Para resumir a ópera: a democracia vigente na maioria dos países capitalistas é meramente eleitoral, baseada na máxima “um cidadão, um voto”. E geralmente se desconsidera em que condições é formada a consciência política da chamada cidadania. Condições que fazem com que, como dizia o célebre alemão, a consciência dominante seja a da classe dominante. Isso dá aos capitalistas uma imensa vantagem “estrutural” na tal “democracia” meramente eleitoral.
Por isso, aliás, é tão difícil construir - nos países citados - uma maioria eleitoral de esquerda, especialmente se for do tipo anticapitalista.
E, também por isso, quando acontece de uma parte do povo entrar em ebulição revolucionária - como em abril de 1974, em Portugal - uma das alternativas à disposição da classe dominante é apelar à “democracia” meramente eleitoral. E, embora nem sempre termine assim, via de regra o que ocorre, nos marcos desse tipo de democracia, é a afirmação de uma maioria eleitoral mais moderada do que a postura predominante naqueles setores que estão em ebulição revolucionária.
Isto não parece ser um grande problema, exceto é claro para os revolucionários, obrigados a ter que “escolher” entre a legitimidade das ruas versus a legitimidade das urnas.
Além disso, existem situações históricas, como as que estamos vivendo hoje em vários países, inclusive no Brasil e Portugal, em que a “democracia eleitoral” se converte em meio para empoderar e legitimar a extrema-direita.
Nesse contexto, em que o inimigo a ser contido ou derrotado não é a esquerda revolucionária, mas sim a extrema-direita, frases como “eu gosto do sistema, o sistema é a democracia” revelam toda sua insuficiência.
Afinal, pelo motivo supracitado, o “sistema” cuja legitimidade se baseia, ao menos em parte, na “democracia eleitoral dentro dos limites do capitalismo”, pode dar como resultado a vitória de quem defende a restrição das liberdades democráticas, restrição legitimada através das ferramentas do próprio “sistema” e da própria “democracia”.
Ou seja: nos momentos “normais” da luta de classe, a “democracia” eleitoral contribui geralmente para moderar os impulsos de esquerda; mas, nos momentos de crise sistêmica, a “democracia” eleitoral pode contribuir para o crescimento da extrema-direita.
As conclusões teóricas a tirar disto dependem do lado que se ocupa na luta de classes. Se o lado for o dos que querem superar o capitalismo, então o melhor é não “gostar do sistema”, nem tratar a “democracia” eleitoral burguesa como se fosse nosso máximo ideal de democracia.
Devemos lutar pelas mais amplas liberdades democráticas, sabendo que estas não cabem dentro do “sistema”, nem dentro da “democracia” eleitoral.
Já as conclusões políticas são várias, entre as quais cito uma: não deixar a crítica ao “sistema” nas mãos da extrema-direita.
Quem faz isto, quem se coloca na posição da esquerda que “gosta do sistema”, na prática abre mão de tentar superar as vantagens estruturais que os capitalistas possuem na chamada democracia eleitoral burguesa.
Ademais, quem se coloca na posição da esquerda que “gosta do sistema”, terá imensa dificuldade ao tentar disputar corações e mentes do setor desorganizado e menos consciente da classe trabalhadora, disputa especialmente necessária nos momentos de crise sistêmica e de ascensão da extrema-direita.
Portanto, quem “gosta do sistema” terminará derrotado ou cooptado por ele. Desconheço exceções.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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