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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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O teatro da política

"Considerações sobre 'O 18 Brumário de Luis Bonaparte', de Karl Marx", escreve Lincoln Secco

Karl Marx (Foto: Reprodução/Wikipédia)

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Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

“Palco” é a palavra certa para a política, esta representação alienada da vida real. Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx inicia o drama por um desfile macabro de personagens mortos e mortos-vivos (fantasmas e espectros) comparados em sua grandeza e em sua pequenez para logo dar lugar ao roteiro que será seguido: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo se repetem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário!”.[i]

Em seguida serão chamados ao palco Lutero com a máscara do apóstolo Paulo e os heróis da Revolução Burguesa (embora nada de heróico haja na burguesia): Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, disfarçados como os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César, além de Cromwell.

Os porta vozes burgueses que se interpõem na cena seguinte são economistas e pensadores: Say, Cousin, Royer-Collard, Benjamin Constant e Guizot. À testa de todos Luís XVIII, o “cabeça de toucinho” (Speckkopf). Este não é mais uma continuação da tradição legitimista e sim o rei de uma Restauração em que o retrocesso político é só a máscara da propriedade burguesa quando os personagens jacobinos se tornam desnecessários. Só mais tarde novos personagens ainda mais medíocres subirão ao palco. No preâmbulo, contudo, um novo ator surgirá indomável e, por isso, terá que ser afastado da peça, rondando o teatro como fantasma até quase o fim da apresentação: o proletariado.

Aos personagens segue-se o cortejo das classes. Lembremos que no prefácio à segunda edição Marx cita dois autores. Victor Hugo, ao apequenar Napoleão III, inadvertidamente lhe empresta poder pessoal. Já Proudhon vê o golpe como resultado de um desenvolvimento histórico anterior. Faz história “objetiva”, ou seja, presa aos acontecimentos como unidades explicativas em si mesmas, ainda que encadeadas por um fio condutor. Marx pretende fazer uma história das lutas de classes e suas representações. Ele quis desvendar as condições em que o drama é representado por personagens medíocres. Por isso, dedica-se a definir as classes que compõem o jogo da política: burguesia financeira, burguesia industrial, campesinato, pequena burguesia, proletariado e lumpemproletariado. É só concebendo as classes que Marx pode desnudar os personagens de suas fantasias teatrais.

Aliás, desde o início o leitor / expectador se depara com um movimento de apreensão da política que não pode dispensar os índices da atividade teatral: espírito (Geist), parodiar (Parodieren), espectro (Gespenst), Fantasmagoria (Phantasmagorie), trapaceiro, mágico, imaginação ou fantasia (Phantasie)… E também termos típicos do teatro: os Atores (die Schauspieler), a caricatura (Karikatur), figurino (Kostüme), Tragédia (Tragödie), abertura (Ouvertüre), Farsa (Farce) e seus efeitos dramáticos (die dramatischen Effekte).

Roteiro

Apresentados os personagens em suas fantasias, segue-se o roteiro: (i) Período de fevereiro (prólogo da revolução); (ii) Assembléia Nacional Constituinte (14 de maio de 1848 a 28 de maio de 1849); (iii) Assembléia Legislativa (28 de maio de 1849 ao golpe de dezembro de 1851).

Notamos que nesta periodização os marcos cronológicos não são importantes. Por exemplo: no primeiro período há o dia 15 de maio quando Auguste Blanqui (1805-1881) e seus camaradas invadem o parlamento. São presos. Isso faz com que em junho a insurreição operária fosse feita sem seus líderes, como lembrava também outro observador da época: Tocqueville.

No segundo período há o junho de 1849 do partido “montanhês”, quando esta falsa esquerda rediviva se comporta como partido armado no parlamento e resolve ser parlamentar nas ruas (uma caricatura do junho de 1848). Se em junho de 1848 o proletariado entra em cena sem líderes, em junho seguinte, a pequena burguesia socialista causa a sensação contrária: agora, os líderes aparecem sem o povo.

O segundo período é o da dominação (até dezembro de 1848) e desagregação (até junho de 1849) dos republicanos burgueses. Marx sugere que tem diante de si uma “história sem acontecimentos”.

Em contrapartida, Junho é o “acontecimento mais colossal na história das guerras civis européias”,[ii] diz Marx. Depreende-se que é depois deste acontecimento dotado de heroísmo que se inicia a fase de “heróis sem feitos heroicos, história sem acontecimentos”.

Notemos que os verdadeiros acontecimentos não constituem balizas cronológicas da narrativa de Karl Marx. Ele “prefere” os “falsos” acontecimentos. Por que Marx se dedicaria a narrar uma “história sem acontecimentos” conforme sua própria expressão?

É que a República Social de Fevereiro apareceu como uma frase (Die soziale Republik erschien als Phrase). Nos primeiros atos do drama o proletariado foi deslocado do palco. Primeiro os seus “chefes” no 15 de maio. Depois ele próprio no mês de junho de 1848.

A história parlamentar que se sucede gira em falso, no vazio, aparentemente suspensa no ar. A vida celestial (como diz Marx em A questão judaica) não contém sua razão de ser nela mesma, mas é preciso buscá-la na vida terrena. A política se desenrola no mundo celestial das idéias, da cidadania, da igualdade jurídica e não das desigualdades econômicas e de classes.

A política é a representação alienada da vida terrena, daí a necessidade da linguagem teatral. Esta linguagem já aparecera no Manifesto Comunista e no Discurso sobre o Livre Câmbio. O pano de fundo da cena, a representação, a arte de dar voz aos personagens das classes sociais, a caricatura (Luis Bonaparte, junho de 1849), a tragédia (a Grande Revolução Francesa, o junho de 1848), a farsa, a comédia parlamentar (o cretinismo parlamentar) e até o bufão (Napoleão III) não são formas casuais. A forma teatral tem um significado em si e por si mesma. Ela não é mero invólucro. Ela significa a política celestial burguesa em contraposição à política real dos bastidores. Ela é a “frase”.

O problema é que se o primeiro Bonaparte já se iludia quanto ao seu papel, vestindo-se como Cesar, ao menos ele sancionava com seu código a propriedade e a vitória social do capitalismo. Napoleão III é um farsante de uma comédia sem grandeza. O personagem não precisa ser pintado com os traços baixos e cômicos de acordo com os ensinamentos da Poética de Aristóteles. Marx mostra como ele é apenas o mais expressivo de um processo histórico ele mesmo farsante.

A primeira Revolução tinha história, ainda que nela a frase altissonante disfarçasse o conteúdo estreito, mesquinho e burguês. Ela seguia uma linha ascendente, como toda verdadeira revolução. O grupo mais radical suplantava o mais moderado e levava a revolução adiante. A de 1848 segue uma linha descendente e o grupo mais radical é o primeiro a passar aos bastidores (o proletariado). Daí porque a verdadeira história revolucionária está na economia, no comércio, nas condições de vida das classes sociais etc. Ela aparecerá como história política no momento da dissolução da própria política e do desfecho da peça. Neste momento o conteúdo irá além da frase e a Revolução não precisará invocar disfarces para realizar sua obra. “Lá a frase foi além do conteúdo, aqui o conteúdo vai além da frase” (“Dort ging die Phrase über den Inhalt, hier geht der Inhalt über die Phrase hinaus).”

Ainda assim, Marx narra a comédia parlamentar. É que a forma nunca é uma fôrma. Ela significa, já o dissemos. Só desnudando a comédia parlamentar é possível ver o descolamento entre classe e representação de classe. Entre os representantes literários da pequena burguesia e os shopkeepers; entre o “mundo imaginário” dos parlamentares e o “rude mundo exterior” e até mesmo entre o campesinato e Napoleão III. Afinal, o camponês tem uma dupla alma, a da Vendée[iii] e a de Cèvennes[iv]. Ou seja, ele é grato à memória de Napoleão I, mas perceberá que as obrigações servis foram substituídas pelo imposto, a hipoteca e os juros.O bonapartismo[v] se baseia eleitoralmente no campesinato, militarmente numa parte do exército e socialmente no lumpemproletariado, uma camada descrita mais moral do que cientificamente por Marx. O lumpemproletariado serve para espancar os representantes literários da burguesia quando esta já não se importa com essa representação e prefere um “fim com terror a um terror sem fim”. Todavia, este bonapartismo está ligado ao decolamento aqui citado, a uma certa autonomia do Estado e a uma base social não vinculada a uma única classe. Nas condições concretas de um país em que a definição das duas classes sociais fundamentais ainda não se fazia nítida, um “prestidigitador”, capaz de surpresas constantes, pôde “atrair os olhares do público sobre si”.

República pura

As revoluções de 1848 apresentavam uma sincronia que despertou a consciência revolucionária. Em janeiro, a revolução iniciou-se na Sicília; fevereiro, em Paris; março em Viena. A onda se espalhou para a Hungria, os Estados alemães e chegou aos estudantes de Praga. Conquanto Marx e Engels tenham escrito sobre os acontecimentos europeus, a França continuou sendo o ensaio de uma atividade revolucionária concentrada, especialmente depois do mês de junho de 1848 quando o seu caráter socialista apareceu e desapareceu da cena principal.

O primeiro período após os acontecimentos revolucionários de junho de 1848 é o domínio dos republicanos puros: um grupo heterogêneo de burgueses de ideias republicanas. Eles não são propriamente uma classe, mas um conjunto de pessoas ligadas por ideias. Eles reduzem pela primeira vez o círculo da representação da revolução. Quando se instala a Assembleia Constituinte os elementos socialistas são excluídos da Comissão Executiva. Depois da insurreição de junho eles se livram dos republicanos pequeno burgueses (democratas de Ledru Rollin), dissolvem a Comissão Executiva e entregam o poder executivo a Cavaignac, o general que massacrou o povo em junho.

Há um subperíodo identificado sutilmente por Marx. Ele está entre 24 de junho de 1848 e 10 de dezembro do mesmo ano. Nele reina Cavaignac, mas só até a ascensão de Luis Bonaparte nas eleições presidenciais. A Constituição elabora-se de maneira nada surpreendente. Em cada parágrafo há a afirmação da liberdade universal, porém nada além (na verdade aquém) daquilo que a Grande Revolução de 1789 já proclamara. Mas na legislação infraconstitucional toda a liberdade geral se materializa como liberdade burguesa.

A Constituição, como a República em que se baseia, é por isso expressão de um regime contraditório. Ela dá todos os poderes ao Presidente (administração direta e forças armadas) e a legitimidade do voto direto “universal” masculino. E põe diante dele a ameaça permanente do fim de seu mandato. O presidente não pode ser, evidentemente, vitalício. Mas a guardiã da Constituição, a futura assembléia Legislativa, é formada por 750 cabeças contra um único representante da nação (Luís Napoleão).

Similitude entre a cronologia e a constituição

Marx finalmente situa os verdadeiros acontecimentos nos subperíodos de uma cronologia refeita e ampliada que aparece no Capítulo VI: (a) Primeiro Período: De 24 de fevereiro a 4 de maio de 1848. Período de Fevereiro. Prólogo. Comédia da confraternização geral.

Segundo Período: Período de constituição da república e da Assembléia Nacional Constituinte. (a) De 4 de maio a 25 de junho de 1848. Luta de todas as classes contra o proletariado. Derrota do proletariado nas jornadas de junho. (b) De 25 de junho a 10 de dezembro de 1848. Ditadura dos republicanos burgueses puros. Elaboração do projeto da Constituição. Proclamação do estado de sítio em Paris. A ditadura burguesa é posta à margem a 10 de dezembro com a eleição de Bonaparte para presidente. (c) De 20 de dezembro de 1848 a 28 de maio de 1849. Luta da Assembléia Constituinte contra Bonaparte e contra o partido da ordem, aliado a Bonaparte. Fim da Assembléia Constituinte. Queda da burguesia republicana.

Terceiro Período: Período da república constitucional da Assembléia Legislativa Nacional. (a) De 28 de maio de 1849 a 13 de junho de 1849. Luta da pequena burguesia contra a burguesia e contra Bonaparte. Derrota da democracia pequeno-burguesa. (b) De 13 de junho de 1849 a 31 de maio de 1850. Ditadura parlamentar do partido da ordem. Completa seu domínio com a abolição do sufrágio universal, mas perde o ministério parlamentar.

De 31 de maio de 1850 a 2 de dezembro de 1851. Luta entre a burguesia parlamentar e Bonaparte.

(a) De 31 de maio de 1850 a 12 de janeiro de 1851. O Parlamento perde o controle supremo do exército.

(b) De 12 de janeiro a 11 de abril de 1851. Leva a pior em suas tentativas de recuperar o poder administrativo. O partido da ordem perde sua maioria parlamentar independente. Sua aliança com os republicanos e a Montanha.

(c) De 11 de abril de 1851 a 9 de outubro de 1851. Tentativas de revisão, fusão, prorrogação. O partido da ordem se decompõe em suas partes integrantes. Torna-se definitiva a ruptura do Parlamento burguês e da imprensa burguesa com a massa da burguesia.

(d) De 9 de outubro a 2 de dezembro de 1851. Franca ruptura do Parlamento com o Poder Executivo. O Parlamento consuma seu derradeiro ato e sucumbe, abandonado por sua própria classe, pelo exército e por todas as demais classes. Fim do regime parlamentar e do domínio burguês. Vitória de Bonaparte. Paródia de restauração do império.

A cronologia vai da Comédia à paródia. O movimento do roteiro mimetiza a forma grandiloquente do próprio texto constitucional tanto quanto os subperíodos correspondem ao texto infraconstitucional onde a “verdade” da dominação de classe aparece. Os subperíodos guardam os “verdadeiros acontecimentos” ao lado dos “falsos” assim como a farsa dos direitos universais só aparece nos artigos da Constituição e a sua estreita verdade terrena se desvela nos parágrafos e na legislação ordinária.

O III período da primeira cronologia (28 de maio de 1849 a 2 de dezembro de 1851) é o maior de todos e é apresentado no Capítulo III. É nele que a Revolução ascensional de 1789 é contraposta à revolução descendente de 1848. Estamos diante de uma revolução invertida? De uma contra-revolução? Afinal, nela a única força real já surge como apêndice da burguesia e é derrotada nos primeiros atos da narrativa.

A dança dos vampiros

Depois de junho de 1848 cada grupo dominante desempenha o papel grotesco de ser o contrário de si mesmo. Na peça os papéis são invertidos e os atores vestem disfarces. A Montanha, que deveria ser radical como a Montanha do período do terror do ano II da Grande Revolução Francesa, mostra-se paciente!

Quando os monarquistas tomam a cena principal eles defendem a República! É que divididos em orleanistas e legitimistas,[vi] eles preferem apoiar um regime que odeiam a permitir que outra dinastia predomine. Sua divisão os impelia a suportar uma República que ninguém desejava. Nem os socialistas, que queriam mais; nem os conservadores, que queriam menos.

O vermelho mostra-se como o seu contrário. Em vez do barrete frígio da Revolução (o seu capuz vermelho), temos os cullotes da classe dominante.

Neste período sem relevância todos são como Peter Schlemihl invertidos, segundo Marx. Ele se refere ao personagem de Chamisso que vendeu a sombra e só anda à noite para que não lhe descubram o que lhe falta. Depois, ele prossegue usando a bota de sete léguas. Já os franceses de 1848 são apenas sombras sem o corpo. Mortos-vivos que sobrevivem do sangue do proletário, assim como o Trabalho morto é o Capital oposto ao trabalho vivo. Trata-se de espectros que aguardam um por vez na coxia a sua vez de encenar a dança vampiresca no palco da revolução sem revolução.

Em 28 de maio de 1849 reúne-se a Assembleia Legislativa. O Partido da Ordem une os monarquistas em defesa da República Conservadora, os republicanos caem e a Montanha torna-se a oposição parlamentar. Enquanto isso, a contrarrevolução triunfa na Europa e a Primavera dos Povos terminará.

Marx narra uma história parlamentar clássica, mas precisa a todo o momento interromper a narrativa para expor os bastidores. A retomada da ação é sempre precedida de frases como: “retomemos o fio dos acontecimentos…”. A superfície é a da reação do Partido da Ordem contra os direitos democráticos; e por parte da Montanha vemos a defesa dos “eternos direitos do homem”. Esta aparência “dissimula a luta de classes”, pois os legitimistas representam a grande propriedade territorial; os orleanistas, a burguesia arrivista, parvenu, financista. As formas de propriedade explicam as concepções de vida.

Todavia, o próprio Marx mostra em seguida que não há correspondência direta entre fantasias dos homens e mulheres e seus interesses reais. Os ideais de uma classe e a sua mentalidade não são apenas um reflexo de sua vida. Mas eles são realmente limitados pela vida real! Assim, o representante literário ou parlamentar da pequena burguesia não é necessariamente um shopkeeper, apenas a sua mentalidade não ultrapassa os limites que este não ultrapassa na sua vida prática.

Tudo o que há de mais altissonante na fraseologia parlamentar está destinado ao lixo da história quando na ação concreta o representante revela que não pode ultrapassar a linha do interesse material do seu representado. Então, o filósofo “burguês” Locke suplanta o profeta do Velho Testamento Habacuc, diria Marx. Ou seja: a linguagem “real” da classe dominante se desapega de seus torneios verbais e adjetivos ornamentais e se reduz a um substantivo: contra-revolução.

O Partido da Ordem deixa suas roupas monarquistas no camarim e defende a república como única forma de manter a natureza social de sua classe. E na “única forma” está toda a perdição do Partido da Ordem! Pois ele não pode ser o que é: monarquista.

A República é a forma em que a contradição de classes amadurecidas pelo processo histórico encontra para se desenvolver. Estariam maduras as classes num país em que a burguesia é um apêndice monárquico e o proletariado ainda está ausente da maior parte de um país industrializado apenas em Paris e Lyon?

A Social Democracia por sua vez resulta da substituição do rótulo social do operariado pelo rótulo político da pequena burguesia e suas ideias gerais. Os operários aparecem agora como meros figurantes. É o que o processo eleitoral sempre reserva a uma classe que perde a iniciativa revolucionária. Ela tem que ser representada por outra.

Nos bastidores, alguns figurantes se preparam para entrar em cena como massa de manobra dos atores montanheses. Estes, quando passam a acreditar que seu papel é sério, ameaçam a Ordem estabelecida dentro do parlamento com grande coragem, como se estivessem numa luta revolucionária de barricadas. Mas quando vão às ruas protestar, fazem-no de maneira parlamentar e covarde. São retirados da cena com um piparote do narrador.

Aqui nos referimos ao dia 13 de junho de 1849 (vide cronologia acima). A derrota da Montanha realiza o vaticínio do narrador: “A sociedade é salva tantas vezes se contrai o círculo de seus dominadores”. Ao expulsar os deputados da Montanha, o Partido da Ordem apresenta a força que é a forma de aparência do enfraquecimento geral do parlamento. Trata-se de um precedente perigoso. Não foi assim que os girondinos prepararam seu caminho para a guilhotina quando rasgaram a imunidade de um parlamentar para julgar Marat? Mais tarde Robespierre lhes lembraria o quanto vale uma imunidade parlamentar violada uma única vez! Mas ali, tratava-se do aprofundamento da Revolução.

Para Marx os deputados encaram suas falsas contendas como batalhas campais e o Partido da Ordem acredita naquele dia ter vencido sua Austerlitz.

Naquele dia houve uma tentativa de impedimento de Luís Napoleão. Derrotada no parlamento, a Montanha apelou às ruas, mas se limitou a uma passeata desarmada: “Se a Montanha queria vencer no parlamento, não devia ter apelado às armas. Se apelou às armas no parlamento não devia ter se comportado de maneira parlamentar nas ruas”.

A comédia séria

No capítulo V se torna mais claro como a forma narrativa da história é que permite revelar o processo histórico. Antes o narrador havia notado que somente quando o domínio burguês se apresenta completo é que o antagonismo das outras classes adquire uma forma pura.

Na nova situação, a burguesia representa com seriedade uma comédia, diz Marx. Trata-se de uma comédia séria (oximoro). Mas Luís Napoleão não leva a sério aquela comédia. Ele abaterá aqueles zumbis que ainda não se sabem mortos, posto que seu alimento último é sempre os trabalhadores vivos dos bastidores da peça.

Para vencer deve-se rasgar o véu daquela representação. Todavia Bonaparte, o sobrinho do tio, é apenas um bufão. Seria sobrinho ou filho de Napoleão I? O que lhe teriam revelado as cartas da Rainha Hortênsia acerca de sua bastardia? Na dúvida, depois de rasgar a comédia ele mesmo acreditará no seu papel imperial, sem desconfiar que é um farsante também. Desposará a futura Imperatriz Eugênia, também de “duvidosa” origem paterna, mas experimentada (e com toda a razão) numa vida de namoros espanhóis.[vii]

Marx, incorporando a voz ausente do proletariado, aquela que só aparece como murmúrio, ranger de dentes e voto, ironiza duplamente. A maneira irônica de sua linguagem anula a comédia, pois o comediante é apanhado no ridículo de sua situação real quando ele descobre quem ele é. O público ri. Mas depois que o sufrágio “universal” foi abolido pelo próprio Partido da Ordem o público se reduziu apenas a Luís Napoleão.

A ironia está nos oximoros, nessas oposições engraçadas: as forças superiores que governam o destino de Bonaparte são os charutos, a champanha, as fatias de Peru e as salsichas com alho (segundo o gosto dos franceses). A linguagem respeitável é hipócrita e o futuro Napoleão III é um “herói de piquenique”.

Quando a comédia se desenrola a luta de classes se paralisa! A outra forma de se voltar ao público é apelar às ruas para a defesa da Assembleia. Mas isto seria demais para o Partido da Ordem. Ele havia aprovado até mesmo a prisão de deputados, como vimos!

Bonaparte está acima das querelas intestinas da Assembleia Legislativa. Em mais um oximoro de Marx ele nos faz notar que Bonaparte, como um “lúmpem principesco” (als prinzlicher Lumpenproletarier) tem a vantagem de não se deter em formalidades legais e usar métodos vis que lhe darão a vitória sobre a Assembleia. Esta já era vil com as ruas, mas na política ela mascara “sua mesquinhez prática com sua extravagância teórica”.

O que a comédia oculta antes de mostrar é que a burguesia não tem mais capacidade de governar. Começa a guerra aberta, a qual guarda a suprema ironia de Marx: a burguesia só luta depois de perder as armas. Ele alude ao episódio da demissão de Changarnier por Bonaparte a 12 de janeiro de 1851.

Assim como a pequena burguesia republicana tinha seu esteio num autêntico assassino, o General Cavaignac, o Partido da Ordem se apóia em Changarnier. Aquele havia massacrado os operários de junho de 1848. Este havia dispersado as pequenas multidões de montanheses. Aquele teve que ser derrotado nas urnas. Este foi simplesmente demitido.

A decomposição

O Capítulo VI é a história final da decomposição do Partido da Ordem. A revisão constitucional era o método de “luta”. Marx supõe que a República é a aparência de um campo neutro provisório no qual a burguesia se unifica politicamente ao submeter suas frações e as demais classes à crença na legitimidade do parlamento. Esta é a chave: a República só é burguesa porque aparece como o seu contrário, acima das classes.

Em todo parlamento as lutas mais ferozes são possíveis porque não levam a nada. E não levam a lugar nenhum porque entre os debatedores está a crença comum na neutralidade do espaço de diálogo. Como o burguês prático não se interessa pela política ele também não se constitui politicamente como classe e deixa aos seus representantes o papel ilusório de líderes do conjunto da sociedade.

Bonaparte percebe que só pode permanecer no poder se abolir a limitação de seu mandato, o qual termina no segundo domingo do mês de maio de 1852. Ele irá explorar a crise de representação de um parlamento que cada vez mais restringe suas bases de sustentação.

Marx indica a existência de três “partidos” da Ordem: o parlamentar, o dos negócios e o da imprensa. O afastamento da burguesia de seus representados não acontece porque estes abandonam seus princípios (a frase), mas porque acreditam demais neles! Assim, Marx separa o prosaico partido burguês (que é a própria classe em si mesma) dos seus comediantes que se tornam crentes na comédia e, por isso mesmo, perdem até a graça.

O comércio é próspero até fevereiro de 1851. O que faz o partido burguês das ruas? Reclama para que os burgueses literários e políticos cessem suas lutas vãs que podem prejudicar os negócios. Depois, o comércio entra em crise até meados de outubro de 1851. A quem os burgueses das ruas culpam? As mesmas lutas parlamentares.

O golpe de Bonaparte faz com que a expressão pura do domínio burguês apareça depois de desbastar o cipoal de suas impurezas parlamentares de transição.

Estamos diante de uma história fantasmagórica e de simulacros. A frase ainda vai além do conteúdo porque este foi esmagado em junho de 1848 e ronda o teatro da política como o fantasma da Revolução. A República assim produzida é a aparência de uma Monarquia vil. É a força da frase.

O partido da ordem se mostra incapaz de defender-se porque quer impedir a participação popular que podia lhe tirar a maioria. Bonaparte, por sua vez, tenta aprovar sua reeleição através da revisão constitucional, mas a minoria republicana o impede. O golpe, por isso, será uma arte: Bonaparte se mostrará como o antagonista da lei de 31 de maio (aquele que restringia o voto) e o defensor do sufrágio universal.

O golpe napoleônico se dá em 2 de dezembro de 1851 (aniversário da sagração de Napoleão I e da vitória de Austerlitz). Depois da fuzilaria dos burgueses em suas sacadas nos bulevares parisienses por uma soldadesca bêbada, Luis Bonaparte se torna o “príncipe presidente”. Em dezembro de 1852 é sagrado Imperador Napoleão III.

Ideias napoleônicas

É notável como até o capítulo VII a Revolução não vale o seu nome. A Burguesia francesa não tem mais um apelo revolucionário. Retornamos uma vez mais à pergunta: por que, então, Marx narra esta história esta história sem acontecimentos?

Em primeiro lugar porque, segundo Marx, ocorreu um desenvolvimento regular de “estudos e conhecimentos” que precede uma autêntica Revolução. A de 1848 foi somente um estremecimento de superfície e a sociedade pareceu ter retrocedido para antes do ponto de partida. Na realidade o ano de 1848 permitiu à sociedade aprender por um método abreviado (o revolucionário) e só agora ela criou o seu verdadeiro ponto de partida revolucionário.

Em segundo lugar, Marx desvenda a Revolução de fato por trás da aparente revolução. Ela está subterrânea e agora surge não como fantasma, mas como toupeira. Cada etapa da dança dos vampiros oculta e realiza a um só tempo o aperfeiçoamento das formas que só serão destruídas ao serem realizadas.

Assim, a centralização, o absolutismo, o declínio dos privilégios locais, maior divisão do trabalho, organização fabril etc., são obras que precedem 1789 e que continuam mesmo na Restauração de 1815. Na sua luta para conter e trair a Revolução, a burguesia se vê obrigada a aperfeiçoar ainda mais a máquina do Estado, realizando assim uma tarefa revolucionária.

Há uma dialética da Revolução e do seu contrário que movimenta a história e permite que a burguesia roube temporariamente a cena.

A figura de Napoleão III finalmente surge com o apoio social do camponês. Seus membros apresentam um modo de vida comum (Gemeinsame) oposto a outras classes. O camponês têm só um vínculo local, não possui organização política ou interesse geral (allgemeins). Se Napoleão III está ancorado na arruaça do lumpemproletariado, eleitoralmente ele se apóia no camponês, devido à herança ideológica do tio, o verdadeiro Napoleão.[viii]

Sobre o camponês assentam-se as ideias napoleônicas: (i) A propriedade é negada na prática pelos juros, renda da terra e hipoteca. A velha forma napoleônica de propriedade não corresponde mais ao seu conteúdo histórico em 1848; (ii) Governo absoluto, forte. O governo é sinônimo de tributos que recaem sobre o camponês. (iii) Domínio dos padres. Mas o céu do primeiro Bonaparte era a propriedade estendida mentalmente pela guerra expansionista. Agora, o céu desaba e o conteúdo da religião é a irreligião; (iv) Polícia terrena, o complemento do domínio dos padres; (v) Exército. A pátria é a pequena propriedade alargada na imaginação. Só que agora a composição social do exército camponês gera o seu contrário: uma máquina de guerra que oprime o campesinato. E no topo do Exército há um falso Napoleão.

Karl Marx invoca as alucinações, os fantasmas e mostra as ideias napoleônicas pelo seu oposto. Ao mostrar-se em demasia, o bufão demonstra-se em sua forma teratológica. Assim como a burguesia só existe como fruto de sua negação, o roubo salva propriedade, o perjúrio salva a religião. Esta, nota bene, não é mais a emancipação do camponês no plano celestial. Marx sugere que ela pode ser cínica e dominar uma sociedade irreligiosa. Napoleão III, o monstro, cassa o poder político da burguesia só para reafirmar o poder material desta mesma classe. Para tanto o bufão se disfarça de imperador.

O contraste é cômico. A comédia é a forma antiga de um conteúdo disforme para a época atual. O prestidigitador Napoleão III só precisa dos olhares do público.

Comentários

Toupeira – A Revolução Proletária não precisa encantar público algum. Ela não faz política senão como meio transitório. Como nas verdadeiras tragédias gregas ela deve conquistar o coro camponês num país em que o campesinato é majoritário.

A Revolução proletária não pode ser disfarçada em fantasias ou antecipada mentalmente porque nela o conteúdo vai além de qualquer frase. O comunismo não é, portanto, uma utopia e sim um movimento real que não realiza “princípios”.

Quem é o Partido? – Da mesma forma, o partido do proletariado é apenas Blanqui e os seus camaradas. E por mais que Blanqui pense numa ditadura de poucos líderes para trazer rapidamente a luz ao proletariado e entregar-lhe a tarefa histórica de construir a nova comunidade, isto pouco importa a Marx. O que ele admira em Blanqui, Barbès (1809 – 1870), Flotte (1817-1860) e outros é a coragem, a capacidade de fazer a revolução e de contrariar na prática os seus princípios prévios. Porque eles são chefes simbólicos, são revolucionários experientes e só a sua experiência os coloca passageiramente à frente. Vão à frente porque têm mais coragem e não porque desejam privilégios de mando. Pois assim é numa guerra de classes. O partido do proletariado nada tem a ver com a forma partidária do fim do século XIX. Não é um partido, mas a auto-atividade (Selbsttätigkeit) dos proletários.

Ora, em junho de 1848 pela primeira vez na história a contradição básica do sistema capitalista vem à tona. Ali, o “conteúdo vai além da frase”, pois o proletariado se põe nu e sem qualquer ornamento utópico. Poder-se-ia dizer que surge sem programa definido e sem seus dirigentes (presos no dia 15 de maio quando ocupam e ameaçam o parlamento), mas jamais sem organização. E isto é importante. O partido proletário não depende de uma organização vertical que somente de maneira anacrônica podemos projetar em 1848.

Havia Plano Militar? – Em A Luta de Classes na França Marx diz que os operários conseguiram a proeza de manter paralisados por cinco dias o Exército, a Guarda Móvel e a Guarda Nacional. Porém, o que espanta o narrador é que eles o fizeram sem chefes e sem um plano comum (ohne Chefs, ohne gemeinsamen Plan, ohne Mittel).

Já Engels, no seu conjunto de artigos publicados no calor dos fatos na Neue Rheinisch Zeitung, diz que havia organização política e militar. O Plano militar foi atribuído por Engels a Kersausie, ex-oficial do Exército e amigo de Raspail (1794-1878), embora não haja nenhuma prova histórica disso.[ix]O plano consistiu em quatro colunas com base nos subúrbios operários do oeste de Paris que se dirigiram em movimento concêntrico para ocupar os edifícios do poder no centro. Organizados nos ateliês nacionais decretados pela Revolução de Fevereiro, transplantaram sua distribuição em companhias de trabalho do plano industrial ao militar,[x] Blanqui, por sua vez, foi taxativo: “faltaram guias”. A Revolução teria sido espontânea[xi] e a maioria das barricadas erguida no lugar errado! Mas nenhum deles considerou uma resposta à questão de Marx: sem chefes e plano comum, como resistiram por cinco dias a um número três ou quatro vezes maior de soldados? E a resposta não pode ser encontrada atribuindo anacronicamente ao passado a inexistência de chefes, partidos, programas etc.

Talvez, a organização local dos operários e o apoio que desfrutavam ali foram essenciais. Por outro lado, a ausência ou presença de um plano militar comum não implica a oposição espontaneidade versus partido representativo dos operários. Afinal, no registro de O 18 Brumário, eles devem sim se organizar para destruir a organização representativa. Mas as forças materiais da produção, por um lado, e o necessário aprendizado revolucionário, por outro lado, só se completariam com a coroação de Napoleão III. Blanqui, na prisão, já escrevia que ou a República será social ou não será uma República. Basta de semi-repúblicas!

O Estado – Nas Glosas de 1844, Marx já compreendia o Estado a partir da Sociedade Civil, o universo terreno das relações de produção. O Estado é uma abstração comunitária dissociada aparentemente da sociedade. Uma Revolução Política só altera o regime político, a forma do poder. A Revolução, portanto, não pode ser política e sim social. Assim como o parlamento, já o vimos, não é o lócus da vida real da burguesia, não é nele que se dá o combate à mesma burguesia. Evidentemente que seu primeiro ato negativo e destrutivo ainda é político (o método abreviado de aprendizado em 1848, já citado aqui), mas no momento imediatamente seguinte o invólucro político é abandonado. O teatro se descortina e os bastidores ficam à mostra. Cessa toda diferença entre o público e os atores.

Relação com a análise da Comuna – A Orgia (ou a Conclusão Fora do Texto). Conta-se que a Condessa Virginia Oldoini, amante do Imperador Napoleão III e prima de Cavour, foi a um baile a fantasia no Ministério das Relações Exteriores como a Rainha de Copas. Seu vestido trazia um coração logo abaixo da cintura. Ao vê-la com aquele longo vestido adornado com um grande coração abaixo da cintura, a Imperatriz Eugênia não se conteve: “O coração está um pouco baixo, Madame”. É quase um baile sem fantasia.

Depois do golpe de Napoleão III, a política passa do teatro à orgia e só o imperador tem os deveres fastidiosos da representação. É claro que apenas na manhã seguinte e não muito cedo. O 18 Brumário introjetou a luta das classes numa narrativa histórica sob a forma do teatro. Mas a política de 1848 era a fraseologia fantasmagórica dos políticos burgueses. A Comuna de Paris em 1871 é finalmente a política sans phrase. Por isso o seu texto não é uma propaganda, um panfleto e nem uma “história”. É uma mensagem ao “partido” internacional. E mais do que uma mensagem, é um elogio. Uma forma em desuso e que era invocada para os reis. Como o segundo império é uma farsa, o único elogio possível é a uma classe.

O segundo império era a forma para uma situação em que a burguesia não podia mais governar e o proletariado ainda não podia. Os personagens do império não usam mais máscaras. Eles se permitem surpreender em orgias de corrupção. Numa orgia, como o é sobejamente sabido, a roupa é a primeira coisa que se abandona.

A conversão hipócrita das duas facções do Partido da Ordem numa corrente política republicana em 1848, como já vimos, só foi possível depois das ameaças da “República Social”, diz Marx em Guerra Civil na França. Assim, Marx diz que “as classes dominantes sentem instintivamente que o reino anônimo da República parlamentar pode se converter numa sociedade por ações de suas facções conflituosas”.

No Manifesto Comunista o Estado aparecia como “comitê para gerir os negócios comuns da burguesia”. Ou seja, como aparato acima das suas dissensões internas. Na Guerra Civil em França, Marx define o regime político republicano como “a sociedade anônima das frações burguesas coligadas”. Os termos da economia política não são casuais. Assim como o capital acionário apaga a relação imediata entre propriedade e controle dos meios de produção, a República dissolve o liame direto entre propriedade e controle do aparato repressivo. E assim como o capital por ações é potencializado diante do trabalho assalariado, a República burguesa e outras formas de aparência acima da burguesia reforçam militar e ideologicamente o poder político sobre os trabalhadores.

Todavia, tais liames são invisíveis. Daí porque a crise daquele poder se desvela não à saída da bolsa de valores, mas na entrada do baile sem fantasia do II Império.

A Comuna não substitui a orgia burguesa pela representação proletária. Ela elimina a própria representação ao acabar com o pagamento privilegiado dos representantes. A comuna é “a forma política” da emancipação do produtor. Quando este governa suprime-se a dissociação entre a exploração econômica “sans phrase” e a dominação política com “phrase”. As medidas da Comuna não são invenções cerebrinas. São concretas: planificação comum, cooperativismo, fim do trabalho noturno dos padeiros e do exército permanente, entrega das fábricas fechadas a associações operárias etc. O que importa não é o que muitos communards dizem, mas o que fazem. A Comuna não tem princípios universais. Sua linguagem não é irônica, mas direta.

Mas para criar o novo a Comuna não dispõe de seres humanos novos. Suas duas forças centrais para Marx ainda são políticas. De um lado os blanquistas, reconhecidos pela honestidade e coragem. De outro os proudhonianos, “meros faladores”. Mas o que importa é que ambos os grupos deixam de lados seus “princípios” e realizam a obra coletiva prática da Comuna.

Para suprimir a política a Revolução usa os seus “políticos”. As representações tradicionais do operariado são os primeiros instrumentos que eles têm à mão no início. A crítica da política sem Proudhon e Blanqui seria apenas as armas da crítica sem a crítica das armas.[xii]*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Notas

[i]Marx, K. Le 18 Brummaire de Louis Bonaparte. Paris: Editions Internationales, 1928, p.23. Esta passagem foi tomada diretamente por Marx de uma carta de Engels. A ideia de que o golpe de Luís Napoleão é uma paródia do golpe de 18 Brumário de Napoleão I também foi de Engels (vide p. 12).[ii]O 18 Brumário de Luis Bonaparte teve cinco edições até 1898. A primeira veio a lume em New York, 1852 (mil exemplares) e a segunda em Hamburgo, 1869. Apenas a terceira de 1885 e prefaciada por Engels foi considerada definitiva. O livro foi publicado inicialmente na forma de artigos feitos muito pouco tempo após os acontecimentos. Suas fontes eram principalmente os jornais e os debates parlamentares. Também houve uma profícua troca de correspondência com Engels. As citações de “O 18 Brumário” seguem a edição portuguesa (Obras Escolhidas, Lisboa, Avante) e da tradução de Leandro Konder para a Coleção “Os Pensadores” (Abril Cultural). Os termos alemães em: Marx, K. Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. Hamburg: O. Meissner, 1885, exemplar do autor.[iii]Quando aderiu à contra-Revolução sob a liderança de LaRochejacquelin.[iv]Alusão à revolta ou jacquerie dos camisards huguenotes (1702-1704).[v]Segundo Florestan Fernandes Marx não pensou em transmutar o conceito histórico de bonapartismo num conceito abstrato de validade geral. Ele mesmo criticou o uso no século XIX do conceito de cesarismo. Na época do capitalismo monopolista ele se tornou quase um conceito vazio (Fernandes, F. Marx, Engels, Lenin. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 105.). Todavia, o Estado que se centraliza e assume autonomia na figura de um comediante não é uma anomalia francesa, mas uma tendência objetiva da política em se desvincular aparentemente das lutas de classes e se apresentar na forma de lutas entre celebridades políticas. Nos países periféricos ou durante crises de legitimidade, porém, não é mais ao Bonaparte que as classes dominantes recorrem, mas à ditadura aberta.[vi]Partidários da linhagem de Luís Filipe e defensores da tradição dos Bourbons, respectivamente.[vii]Friedrich, Otto. Olympia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.62.[viii]Deixemos de lado o fato de que Marx ignora a resistência que o campo francês impôs ao poderio napoleônico em 1851 e também as descrições moralistas que faz do Lumpemproletariado. Vide: Maurice Agulhon. 1848: O Aprendizado da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.[ix]Birchall, I. “The Enigma of Kersausie: Engels in June 1848”, From Revolutionary History, Vol. 8 No. 2, 2002, pp.25–50.[x]Marx, C. e Engels, F. Las Revoluciones de 1848. Mexico: FCE, 2006, p. 157.[xi]Decaux, A. Blanqui L’Insurgé. Paris: France Loisirs, 1976, p.384[xii]Este texto são anotações de aula do curso de História Contemporânea apresentado na USP no primeiro semestre de 2013. Portanto não se trata exatamente de um artigo ou ensaio acabado e coerente. Por outro lado, muitas questões foram pensadas a partir de observações dos meus alunos e alunas, aos quais agradeço. Originalmente publicado na Revista Mouro, n. 9, São Paulo, 2013.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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