Por uma política-criminal responsável
A melhor política-criminal é justamente aquela da substituição do Estado penal pelo Estado do Bem-estar social, pois somente através de uma política social adequada torna-se verdadeiramente possível alcançar-se o patamar do tão proclamado Estado democrático de direito
O deputado Federal Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da OAB-RJ, apresentou Projeto de Lei (PL 4.373/2016) que cria a "Lei de Responsabilidade Político-Criminal". De acordo com o texto, todas as propostas que visem criar novos tipos penais (criminalização primária), que busquem a exacerbação das penas dos tipos penais já existentes ou que torne mais rigorosa a execução da pena, deverão ser submetidas a uma análise prévia de um conselho, para verificação do real impacto social e orçamentário dos projetos apresentados pelos parlamentares neste sentido.
Atualmente no Brasil há 1.688 tipos penais (modelos de comportamento proibido) previstos no Código Penal e em diversas leis especiais ou extravagantes como, por exemplo, o Código de Trânsito Brasileiro, a Lei de Drogas, a Lei dos crimes contra ordem tributária e tantas outras.
"Francesco Carrara em monografia datada de julho de 1893 - Un nuovo delito - discorria sobre a "nomomania ou nomorréia" penal. A praga de seu tempo, que está em ter esquecido o sábio aforismo da jurisprudência romana, 'minima non curat praetor'".
No Brasil, nas últimas décadas, verificamos uma verdadeira "inflação legislativa". Esta inflação se deve a uma série de fatores que vão desde o forte apelo popular, passando pela influência maligna da mídia, até a demagogia dos legisladores. Desgraçadamente, o chamado "populismo penal" vem dominando a política-criminal atual. As leis penais no Brasil são elaboradas sem qualquer verificação prévia e empírica de seus verdadeiros impactos sociais e econômicos.
Como bem observa o deputado Federal Wadih Damous, autor do referido Projeto, o movimento de criminalização se torna evidente quando ocorre um crime de repercussão nacional. Nesses casos, em geral, o Congresso propõe novas leis que endurecem as pena, criam novos tipos penais ou reduzem direitos e garantias.
Vale recorrer à memória para lembrar que a Lei nº 8.072 de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos) foi promulgada, no dizer de Alberto Toron, "em clima de grande emocionalismo, onde os meios de comunicação de massa atuaram decisivamente de forma a exagerar uma situação real da criminalidade (...)" .
Hodiernamente, com cerca de 700 mil presos, o Brasil está entre as quatro maiores populações carcerárias do planeta e vem em uma crescente constante, inclusive, com sensível aumento da população carcerária feminina. Como é cediço, os jovens, os negros e os pobres formam a maioria desta população prisional. Já foi dito alhures que o sistema penal, além de repressor, é seletivo e estigmatizante.
Como destaca o criminólogo Alessandro Baratta, "não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituição penitenciárias que as aplicam), e que, por isso o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como delinquente".
A cultura punitiva, que se traduz no uso abusivo e sistemático da pena privativa de liberdade, além de ofender, despreza os princípios garantistas e fundamentais do direito penal. Entre os quais se destaca aqui, os princípios da estrita legalidade e da intervenção mínima.
Luigi Ferrajoli distingue o princípio da "mera legalidade" ou da "reserva legal" do princípio da "estrita legalidade". O primeiro, princípio geral de direito público, base estrutural do próprio estado de direito, segundo o autor italiano, dirige-se aos juízes que devem aplicar a lei de acordo com o formulado. Já o princípio da estrita legalidade designa a reserva absoluta de lei, dirigida ao legislador, "a quem prescreve a taxatividade e a precisão empírica das formulações legais".
Segundo Ferrajoli,
"o princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter 'constitutivo' e não 'regulamentar' daquilo que é punível: como as normas que , em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os 'desocupados' e os 'vagabundos', os 'propensos a delinqüir', os 'dedicados a tráficos ilícitos', os 'socialmente perigosos' e outros semelhantes".
Pelo princípio da intervenção mínima o Estado só estará legitimado a intervir em matéria penal quando for estritamente e evidentemente necessário para a tutela de bens fundamentais do homem e para vida em sociedade e, mesmo assim, quando não existirem outros mecanismos ou meios de proteção que não o direito penal. Deste princípio decorre que o direito penal é um remédio sancionador extremo e, portanto, só deve ser utilizado como utima ratio e quando esgotados as formas de proteção dos bens jurídicos previstos por outros ramos do direito. Assim, se é encontrado, por exemplo, através do direito administrativo uma proteção satisfatória e suficiente de um determinado bem a intervenção penal estatal torna-se desnecessária.
A sanção penal como remédio sancionador extremo pode ser comparada a morfina , que só deve ser ministrada em casos gravíssimos, nos quais a dor é insuportável e quando outros medicamentos já não produzem o efeito desejado. Se através de outro remédio, menos danoso, a dor pode ser aliviada ou combatida, torna-se dispensável aplicar o remédio mais grave onde os efeitos colaterais são mais maléficos para o paciente. Do mesmo modo que é preferível aplicar uma sanção administrativa ao invés de uma sanção penal se aquela cumpre com a finalidade do direito de proteção de um determinado bem. Neste caso, a aplicação da sanção penal vai de encontro com o caráter subsidiário do direito penal, segundo o qual deve o mesmo ser utilizado apenas e somente quando os outros ramos do direito se mostrarem insuficientes para tutela jurídica necessária de um determinado bem.
Portanto, para que o Estado intervenha penalmente é imperioso que não haja outro meio, no campo jurídico ou fora dele, capaz de proporcionar (ou pelo menos tentar) de forma eficaz a prevenção e repressão às condutas que ofendam os bens essenciais e fundamentais para a vida do homem e para a sociedade.
O princípio da intervenção mínima, como princípio político do Estado Democrático de Direito, atua também como limitador do poder legislativo e dele derivam o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal.
Salo de Carvalho, em defesa da lei de responsabilidade político-criminal, salienta que:
"Na atual situação político-criminal de ampliação superlativa da criminalização, parece não haver possibilidade outra senão radicalizar o discurso na defesa de significativa mudança do cenário de encarceramento. O projeto, no plano criminológico e político-criminal, inexoravelmente deve estar vinculado à hipótese de estabelecer verdadeira moratória no processo de construção de novos presídios ou de novas vagas prisionais e, sobretudo, de efetiva modificação dos critérios legais e judiciais que fomentam o aprisionamento em massa. Lógico que ações neste nível não podem prescindir de verdadeira alteração na cultura punitivista na qual as sociedades de controle contemporâneas estão submersas. No entanto, algumas ranhuras são possíveis e podem atuar como instrumentos efetivos de redução de danos".
No dizer dos penalistas Hassemer e Muñoz Conde , o problema da criminalidade é, pois, antes de tudo um problema social e vem condicionado pelo modelo de sociedade. Seria ilusório, portanto, analisar a criminalidade a partir de um ponto de vista natural, ontológico ou puramente abstrato desconectado da realidade social em que a mesma surge.
Daí, porque acredita-se que a melhor política-criminal é justamente aquela da substituição do Estado penal pelo Estado do Bem-estar social, pois somente através de uma política social adequada, que favoreça a erradicação da pobreza, que torne a educação realmente um direito de todos, que não permita ser a saúde um privilégio de poucos, não propiciando que crianças morram de fome e, por fim, que o homem seja respeitado por aquilo que é, e não por aquilo que tem, somente assim torna-se verdadeiramente possível alcançar-se o patamar do tão proclamado Estado democrático de direito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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