Privatizar o litoral, uma insanidade
Interesses econômicos poderosos estão por trás dessa proposta de emenda constitucional já aprovada pela Câmara
Chegar a ser imoral a discussão da chamada PEC da privatização das praias em meio à devastação do Rio Grande do Sul por um evento climático extremo, agravado pela negligência dos gestores locais.
Danos ambientais de efeitos incalculáveis adviriam da entrega dos terrenos de marinha, vale dizer, de quase todo o litoral, aos atuais ocupantes privados e a prefeituras, de onde passariam rapidamente às mãos de grupos imobiliários interessados em transformar a costa brasileira num Caribe, ou numa vasta Cancún, como disse o trêfego Neymar.
Interesses econômicos poderosos estão por trás dessa proposta de emenda constitucional já aprovada pela Câmara sem que o país se desse conta, e relatada no Senado pelo senador Flávio Bolsonaro. Grupos nacionais e internacionais de hotelaria, associados a construtoras e incorporadoras, planejam grandes empreendimentos em diferentes pontos da costa, especialmente no Nordeste.
Neymar, que já havia anunciado parceria com uma construtora para a construção de um condomínio, ao sair em defesa da PEC, sofreu um espancamento virtual em regra da atriz Luana Piovani. A treta ajudou a jogar luz sobre o assunto. Ponto para Luana.
A esta turma dos hotéis, resorts e condomínios junta-se o lobby dos cassinos, que nunca deixou de atuar no Congresso. O projeto de lei número 442/1991, também já aprovado pela Câmara e esperando para ser votado no Senado, autoriza a abertura de um cassino em cada estado, fora Rio, São Paulo e Minas, que poderiam ter três cada um. E haveria mais um em cada polo turístico definido como patrimônio natural da Humanidade: Fernando de Noronha, Pantanal, Anavilhanas, Costa do Descobrimento e outros mais.
A farra do capital predatório e da lavagem de dinheiro seria completa com a aprovação do PL 442 e da PEC, que pelo menos por ora, parece ter sido contida pelo alarido. Não é uma urgência, decidiu o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
Os tais terrenos de marinha, que a PEC quer tirar da União e passar para particulares (os já ocupados) e para prefeituras, compõem uma faisa que começa 33 metros depois do ponto máximo alcançado pelas marés. Isso deixa livres a praia e o quebra-mar. Esta parte, que o povo frequenta, continuaria sendo pública. Por isso é incorreto falar em privatização das praias mas, onde brotar um condomínio ou resort, o acesso pode ser barrado. Isso já acontece hoje em alguns lugares para endinheirados.
Mais de 500 mil terrenos são ocupados por pessoas cadastradas junto à Secretaria do Patrimônio da União-SPU(Ministério da Gestão). As taxas que pagam, laudêmios, renderam mais de um bilhão de reais ao governo em 2023.
Espoliar a União nem é o problema. Estes terrenos, como explicam os técnicos do Ministério do Meio Ambiente, estão sob a influência das marés e devem sofrer os efeitos da elevação do nível dos oceanos, em consequência do aquecimento global e do degelo crescente no Ártico. Os mangues e as restingas ficariam desprotegidos e poderiam até ser eliminados, e eles funcionam como barreiras naturais contra eventos extremos ligados ao mar. A biodiversidade litorânea também ficaria ameaçada.
Algo precisa ser feito no litoral para prevenir tragédias climáticas mas é o oposto do que propõe a PEC. O professor Carlos Nobre, único brasileiro reconhecido como “guardião planetário”, o seleto grupo de lideranças empenhadas em resolver a crise climática, recomenda um plano de longo prazo para a retirada das comunidades que ocupam terrenos de marinha, antes que sobrevenham o aumento das marés e as ressacas mais fortes, entre outros eventos inevitáveis.
Isso é prevenção, algo que o Brasil precisa começar a fazer com urgência, como ensina a tragédia do Rio Grande do Sul.
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