Reflexões sobre o primeiro-damismo
"No Brasil, país com uma forte veia machista e misógina, o que se percebe é que o primeiro-damismo se institui como um campo político ambíguo"
Esse texto foi escrito no dia 8 de janeiro de 2023, fruto de algumas “colagens” de uma pesquisa realizada pela internet e, agora, à luz dos últimos acontecimentos envolvendo a atual primeira dama, decidi publicá-lo com o intuito de provocar reflexões sobre o tema.
O “cargo" de primeira dama não é reconhecido na Constituição Brasileira, sendo o seu papel meramente protocolar.
Esse título surgiu nos Estados Unidos e o Brasil seguiu o modelo americano de republicanismo. E como acontece lá, aqui também a mulher ou o marido do chefe de Estado não tem nenhuma função administrativa no governo, ou função oficial definida por lei. Ou seja, a primeira-dama, não é considerada integrante da administração pública federal.
Toda a atividade exercida é voluntária e, portanto, sem remuneração. As verbas para essas atividades, no entanto, precisam sair da cota destinada ao Poder Executivo.
Em outras palavras: ser uma primeira-dama é um status meramente simbólico. Não há nenhuma competência para elas, exceto caso o presidente a designe para ocupar um cargo de natureza assistencialista, conforme nosso histórico desde 1915, quando as primeiras-damas começam a aparecer fazendo filantropia.
Para a doutora em ciência política Graziella Guiotti Testa, na base dessa percepção antiquada da primeira-dama, como aquela que faz caridade ajudando os menos favorecidos, estão dois conceitos claros de política e sociedade, que definem o papel do Estado e o da mulher. "Essa visão da primeira-dama que faz obra social se encaixa nesse contexto do Estado paternalista, que deve ser como um pai que ajuda e reforça a imagem da mulher que deve sempre cuidar. Então, a primeira dama vai ter sempre a função de ajudar aqueles filhos relegados do Estado, em um Estado que é pai e que é bom, bem na noção populista", diz.
Em 2013, o prefeito Fernando Haddad assinou o decreto de n° 53.831, que regulamentava as atividades da primeira-dama na Prefeitura de São Paulo. Os serviços prestados por sua esposa eram então vinculados à Secretaria do Governo Municipal e não eram remunerados.
Segundo o decreto, a primeira dama “não tinha vínculo funcional ou empregatício, nem qualquer obrigação de natureza trabalhista ou previdenciária”. O objetivo do trabalho da primeira-dama era promover, por meio da sua representatividade, visibilidade social e política a projetos e atividades da Prefeitura de São Paulo, que eram relevantes ao interesse público.
Segundo o ex-prefeito Fernando Haddad, o trabalho que a primeira-dama exercia era intersecretarial. “Ela está trabalhando em projetos, neste momento, na área da primeira infância – é isso que ela está estudando”, disse Haddad na época. “Ela pretende, por meio de trabalho voluntário, nos ajudar nesta área que envolve as crianças. Todo trabalho voluntário é bem-vindo, o dela também”, completou.
Ana Estela Haddad, odontologista e professora universitária, sempre se destacou por sua competência, sendo a principal responsável pelo programa Brasil Sorriso, de atenção dental às crianças.
Ruth Cardoso, reconhecida antropóloga, pesquisadora e professora universitária, com uma carreira robusta, extinguiu a LBA (Legião Brasileira de Assistência), comandada pela primeira-dama do país desde Darcy Vargas, mas que se afundou em corrupção com Rosana Collor. Ruth Cardoso criou, então, o Programa Comunidade Solidária e o Comunitas.
Marisa Letícia, inspetora escolar, atuante e respeitada militante do movimento sindical e fundadora do PT, escolheu manter sua influência em Lula a nível pessoal e se recusou a desempenhar um papel público à frente de ações sociais e filatrópicas, cumprindo apenas algumas funções protocolares.
Recentemente, o presidente francês Emmanuel Macron tentou oficializar a função da primeira-dama em seu país, mas sofreu críticas e até um abaixo-assinado por parte da população, que achou tratar-se de nepotismo com a mulher, Brigitte.
Para alguns, tentar dar uma função a uma mulher, apenas pelo fato de ser casada com um mandatário, é uma atitude machista, pois esse é um papel de submissão e não faz sentido o simples fato de você ser mulher do cara te levar a exercer uma posição específica.
*Em países onde o machismo e essas visões tradicionalistas são menos fortes, os cônjuges dos chefes de Estado simplesmente prosseguem suas vidas e não têm nada a ver com o governo.*
No caso brasileiro atual, qual seria a ocupação da primeira-dama?
Sabemos que Rosângela Lula da Silva é socióloga de profissão, aposentada, conforme matéria da revista Fórum do dia 27 de setembro de 2021, e que já declarou querer remodelar o papel de primeira-dama.
No Chile, a companheira do presidente Gabriel Boric, Irina Karamanos, chegou a afirmar durante a campanha, que a figura da primeira-dama “não tinha nenhum sentido".
E em dezembro de 2022, formalizou a sua renúncia à posição de coordenadora sociocultural da Presidência, atrelada ao cargo de primeira-dama. Com isso, Irina também deixou de cumprir funções oficiais como primeira-dama do país. Ou seja, o país deixou de ter uma primeira-dama. Lá, assim como no Brasil, o cargo também não é regulamentado e nem recebe remuneração. “Vou continuar apoiando o governo, vou continuar apoiando o presidente, meu companheiro Gabriel Boric, e vou intensificar a militância no meu partido e também me desenvolver profissionalmente na minha área”, disse Irina Karamanos.
Quando o cargo da presidência é ocupado por uma mulher, não existe um termo oficial para o marido, namorado ou companheiro, mas normalmente é primeiro-marido ou primeiro-cavalheiro.
Gauthier Destenay é o primeiro-marido de Luxemburgo. Ele é casado com o primeiro-ministro do país, Xavier Bettel. O arquiteto tem uma vida independente da do marido, mas costuma acompanhá-lo em alguns eventos e viagens oficiais. Em 2017, uma foto em que Gauthier aparecia como o único homem em meio a nove primeiras-damas fez sucesso nas redes sociais. O encontro de cônjuges dos mandatários aconteceu durante uma reunião de líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
O Reino Unido e a Alemanha, quando governados por primeiras-ministras, também tiveram seus primeiros-maridos. E eles raramente apareciam em público, nem faziam trabalhos sociais ou davam entrevistas.
O marido da ex-Primeira-Ministra britânica Theresa May, Philip May, trabalha no mercado financeiro. E se manteve longe dos holofotes durante o mandatao de May (2016-2019).
O mesmo acontecia na Alemanha. O marido da ex-Primeira-Ministra Angela Merkel, Joachim Sauer, era professor universitário e raramente acompanhava a esposa em eventos oficiais.
No Brasil, país com uma forte veia machista e misógina, o que se percebe é que o primeiro-damismo se institui como um campo político ambíguo para a condição feminina. Afinal, ele possibilita o protagonismo feminino e a participação da mulher na política, mas atrelada à figura masculina e aos códigos de gênero da família patriarcal.
E quando Janja, a atual esposa do presidente, declara que quer fazer mudanças no tradicional papel do cargo de primeira-dama, e ela própria se define como feminista, mas, ao mesmo tempo, aparece mostrando e supervisionando a residência oficial do casal, como se fosse o seu papel cuidar do lar, ou, ainda, quando aparece constantemente em público secando o suor do rosto do marido, lhe dando água ou virando páginas de seu discurso, inconscientemente acaba ressaltando essa ambiguidade, reforçando os tradicionais papéis relegados à mulher brasileira de cuidar da casa e do marido.
Ambiguidade e confusão, que já caminhavam de mãos dadas durante a campanha, quando em um evento oficial do lançamento de Lula como candidato a presidência do PT, a então ainda namorada pegou o microfone e, em transmissão nacional, falou abertamente de seu relacionamento pessoal com o candidato, o chamando de "meu amor", anunciando que eles iriam se casar, e dando um presente a ele na frente de milhares e milhares de militantes e correligionários: um jingle da campanha!
A confusão entre papéis, o público e o privado, se aprofundou quando, poucos dias antes do casamento, o casal não divulgou detalhes do evento, respondendo que esse era um assunto pessoal e privado. Sigilo esse quebrado pela própria noiva poucas horas depois do casório, ainda durante a misteriosa festa, quando posou com vestido de noiv,a em foto tirada pelo fotógrafo oficial do candidato-noivo, divulgando sua imagem fartamente nas redes sociais, galgando o papel de celebridade.
Algumas perguntas que ficam sobre esse caro debate poderiam ser:
1. A tradicional atuação das primeiras-damas trazem para a política brasileira a força do privado sobreposto ao público?
2. A institucionalização desse cargo e a sua manutenção na gestão pública, ainda nos dias de hoje, reflete a dinâmica da política brasileira, que é excludente, preconceituosa e machista?
3. A constante e insistente exposição da figura da primeira-dama, acompanhado com o status de celebridade, o seu poder de decisão e influência sobre atos e membros do governo, ou seja, a sua atuação no âmbito da esfera pública governamental, poderia ou poderá legalmente ser considerado "usurpação de função pública?"
4. A assinatura de um decreto presidencial para oficializar e regulamentar as atividades da primeira-dama como socióloga, por exemplo, para o desenvolvimento de políticas públicas estratégicas na prestação de serviços não remunerados vinculados a alguma Secretaria ou Ministério, seria uma boa alternativa?
5. Como o "cargo" de primeira dama não é reconhecido na Constituição Brasileira, basta somente a iniciativa da própria primeira-dama para renunciar o seu papel meramente protocolar e assim poder seguir a sua carreira, conforme realizado pela chilena Irina Karamanos?
Em um país ocupado pela direita em quase a totalidade de seus municípios, com uma parcela da população que se identifica com valores pregados pelo fascismo e uma classe política violenta, fica a reflexão e o alerta para podermos sedimentar mudanças.
*Luciana Sérvulo da Cunha é documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no primei primeiro governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena, de combate à violência contra a mulher.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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