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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    Rússia e China reescrevem a mitologia grega

    Enquanto a Rússia encena uma nova versão do papel de Zeus, a China recria o papel de Hermes

    Xi Jinping (à esq.) e Vladimir Putin (Foto: Alexander Zemlianichenko/Pool via Reuters)

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    Ah, as maravilhas que chips para máquinas de lavar louça são capazes de desencadear.

    Como é possível que Zeus, o rei dos deuses, não tenha previsto isso? Em especial quando sua intuição divina  sabia que, no futuro, seus relâmpagos seriam replicados na Rússia com o Oreshnik – um aparentemente inofensivo pé de avelã.

    A mitologia prefigura a realidade pós-tudo. 

    Retornemos brevemente a Newton. Com base em suas fórmulas, um projétil de urânio de um metro de comprimento voando a uma velocidade muito alta é capaz de perfurar seis metros de pedra dura (ao som do Highway Star do Deep Purple?) 

    Uma ogiva viajando a 1.200 metros por segundo é capaz de perfurar 46 metros de concreto.

    Imaginem agora uma velocidade de impacto maior que a velocidade do som. A profundidade do impacto, é claro, seria exponencialmente mais poderosa.

    O choque do impacto, a uma velocidade muito alta, transforma em gás o que quer que esteja pela frente. Uma onda – cinética – de choque penetra até 50 metros, infiltrando todo o subsolo profundo e esmagando, destruindo – na verdade, implodindo – tudo o que encontra em seu caminho. 

    Foi isso que aconteceu no subsolo profundo da usina de Yuzhmash, em Dnepropetrovsk – uma vez que o Oreshnik foi concebido por meio do aperfeiçoamento desses princípios físicos. E a Rússia apenas usou cápsulas vazias para esse primeiro teste do Oreshnik – em vez de ogivas.

    Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta 

    Muda a cena para os Presidentes da Rússia e do Cazaquistão, Vladimir Putin e Kassym-Jomart Tokayev, aprofundando sua parceria estratégica cara a cara em  Astana – incluindo a intenção renovada de fortalecer a cooperação interna à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC).

    Além disso, o Cazaquistão foi oficialmente convidado a se tornar parceiro dos BRICS.

    Putin respondeu diversas perguntas da imprensa sobre o Oreshnik e a guerra por procuração da OTAN de modo geral. Mas pode-se dizer que o mais intrigante tenha sido seu discurso em uma reunião de acesso restrito do Conselho de Segurança Coletiva da OTSC. Partes dessa fala merecem uma transcrição completa – inclusive devido aos gracejos do presidente sobre “satisfação do cliente”:

    “O sistema russo de mísseis Iskander e suas modificações representam o análogo russo de todas as três modificações dos mísseis  ATACMS. O peso da ogiva equivalente em TNT é mais ou menos o mesmo, mas o Iskander tem um alcance maior. O novo míssil PrSM de fabricação estadunidense não é superior a seus correspondentes russos em qualquer uma das especificações. O míssil Storm Shadow lançado do ar, o SCALP francês e o Taurus alemão têm uma ogiva pesando entre 450 e 480 quilogramas em equivalente a TNT, e um alcance de 500 a 650 quilômetros. O míssil alemão Taurus tem um alcance de 650 quilômetros. O míssil lançado do ar Kh-101 é o análogo russo desses sistemas, que é comparável em termos de potência de ogiva, mas que supera significativamente todos os modelos de fabricação europeia em termos de alcance. Os novos mísseis PrSM de fabricação estadunidense, como já mencionei anteriormente, bem como o JASSM, são inferiores a seus correspondentes russos em termos de especificações técnicas. Sem dúvida alguma, temos conhecimento do número de sistemas de armamentos relevantes a serviço de nossos potenciais adversários. Sabemos quantos deles estão guardados em depósitos. Conhecemos sua localização exata, quantas armas foram fornecidas à Ucrânia e quantas mais se planeja fornecer. No que se refere à produção dos sistemas de mísseis e equipamentos em questão, a Rússia possui dez vezes mais que a produção total de todos os países da OTAN. No próximo ano, iremos aumentar a produção em mais 25 ou 35 por cento. Percebemos que os cabeças do regime de Kiev vêm pedindo a seus senhores equipamentos militares de outros tipos. Que ninguém se esqueça dos sistemas de mísseis hipersônicos Kalibr, Kinzhal e Zirkon, que não têm igual em todo o mundo em termos de especificações técnicas. Sua produção também vem sendo intensificada e está hoje a todo o vapor. Outros produtos desse tipo podem aparecer em breve em nosso cardápio de produtos dessa classe, se posso usar esses termos. Como dizem, a satisfação do cliente é garantida”.  

    Uma colisão de meteoritos pela frente

    Putin comparou o impacto do Oreshnik com o de uma colisão de meteoritos: “A história nos conta quais meteoritos caíram onde, e quais foram as consequências. Por vezes, a colisão foi suficiente para formar lagos inteiros”. Mesmo ressaltando que “a publicidade é inadequada quando se trata de novas armas”, Putin afirmou que foi exatamente isso que aconteceu com o Oreshnik: “Esperamos até o momento de os testes serem realizados e, de fato, termos um resultado concreto. E então fizemos o anúncio”. 

    O que fornece o contexto para o que Mikhail Kovalchuk, o atual criador dessas avelãs aparentemente inofensivas, a réplica pós-tudo dos relâmpagos de Zeus, disse ao Izvestia nos bastidores do  IV Congresso de Jovens Cientistas no território federal de Sirius.

    Kovalchuk é presidente do Centro Nacional de Pesquisas do Instituto Kurchatov. Ele, essencialmente, observou que “os materiais que a Rússia possui que conseguem suportar altíssimas temperaturas possibilitaram a criação do sistema Oreshnik, e irão possibilitar a criação de outros tipos de armas hipersônicas”.  

    O planeta inteiro deve estar se perguntando como a Rússia conseguiu superar a todos os demais: “Porque somos um dos cinco líderes mundiais (…) Criamos armas hipersônicas em um curto período de tempo. E esses são materiais que trabalhavam a 1.500 graus, em seguida a 1.800, e este a 2.000, e nós conseguimos e os outros não conseguiram”. 

    E ainda mais: Kovalchuk disse: “Outros materiais que conseguem suportar altas temperaturas irão possibilitar a criação de armas ainda mais avançadas. O próximo passo deverá ser materiais capazes de suportar entre 2.500 e 3.00 graus”.

    Isso possibilitaria, por exemplo, mísseis voando a altitudes muito baixas, em Mach 15 ou mesmo Mach 20, criando um impacto tremendamente mais devastador – incluindo choque de plasma – do que o já testado Oreshnik.

    Putin, de sua parte, disse também –em tom quase que despreocupado – que o Ministério da Defesa está “escolhendo alvos” para novos ataques com o Oreshnik, entre eles, “centros de decisão ucranianos”, instalações de produção industrial e instalações militares.  Será que a OTAN está ouvindo? É óbvio que não. 

    O que vem a ser Soft Power Máximo 

    Enquanto a Rússia encarna uma nova versão do papel de Zeus, a China recria o papel de Hermes. 

     

    Pequim, agora, vem vendendo títulos em dólares dos Estados Unidos na Arábia Saudita. O que significa que quanto mais desses títulos a China venda, mais desses dólares “árabes” poderão ser desviados para países parceiros da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) na forma de empréstimos, de modo a que eles consigam pagar as dívidas extorsivas que têm junto ao FMI e ao Banco Mundial controlados pelo Hegêmona. 

    A melhor parte é que esses parceiros da ICR poderão pagar esses empréstimos em dólar à China usando – o que mais seria? - o yuan, bem como com mercadorias produzidas por eles, ou com recursos naturais seus. 

    Podem chamar a isso de a Rodovia da Desdolarização Rápida. E ninguém deve se esquecer que os títulos em dólares dos Estados Unidos em mãos chinesas são lastreados em ouro, enquanto os títulos em dólares dos Estados Unidos são lastreados por uma impressora. 

    O grande sortimento de blábláblá ocidental sobre uma China fortemente endividada é bobagem.  A dívida chinesa – reconhecidamente enorme – é esmagadoramente dívida interna em yuan. A China usa seu mercado interno de títulos para ajudar empresas a investir seu dinheiro e conseguir um retorno decente – com praticamente nenhum risco. 

    Agora, Pequim veio com a brilhante ideia de emitir títulos em dólares dos Estados Unidos para extrair aqueles petrodólares dos sauditas, para que eles não retornem diretamente para os Estados Unidos. Todos sabem que dezenas de países resolveram parar de comprar papeis do Tesouro dos Estados Unidos e títulos dos Estados Unidos, o que antes faziam. De modo que os rendimentos dos títulos têm que aumentar. Pequim encontrou uma maneira de assegurar que os rendimentos dos empréstimos continuem altos – tornando o custo dos empréstimos caro para os Estados Unidos. 

    O vetor mais importante é que esses dólares estadunidenses provenientes dos títulos irão funcionar como empréstimos para grande parte do Sul Global, a fim de amortizar seus empréstimos a juros exorbitantes tomados do FMI e do Banco Mundial. Em vez de pagar juros entre 20 e 30 por cento, Pequim cobrará desses países apenas a taxa dos títulos (mais ou menos 5%). 

    Basicamente, portanto, o que a China vem fazendo é se transformar em um front para tomar empréstimos a baixo custo de dólares dos Estados Unidos para o Sul Global. É disso que trata o Soft Power Máximo. 

    O que irá acontecer àqueles dólares dos Estados Unidos pagos pelo Sul Global? Um excesso de liquidez mergulhará os Estados Unidos em uma outra crise inflacionária. As bolsas de valores subirão vertiginosamente, mas os juros irão aumentar, encarecendo ainda mais os empréstimos. Acrescente-se a isso as altas tarifas e, como disse um esperto negociante na Bolsa de Hong Kong – “É a Tempestade Perfeita, baby”. 

    Então, bem-vindos à China desempenhando o papel de Hermes, filho de Zeus e da belíssima plêiade Maia. Hermes, entre seus incontáveis outros atributos, é o deus dos viajantes, das estradas e do comércio (ICR! Corredores de conectividade!), da diplomacia hábil, da linguagem e escrita e da astrologia. O arauto e mensageiro pessoal de Zeus é também o divino trickster (venham comprar aqueles dólares dos Estados Unidos na Arábia Saudita de mim!) 

    Mais uma vez, vemos a Rússia jogando xadrez – pensando diversas jogadas adiante – enquanto a China joga Go (Weiqi 围棋), também pensado diversas jogadas à frente. E a parceria, o tempo todo, em perfeita sincronia, vem gerando um belíssimo renascimento da mitologia grega. 

    Os relâmpagos de avelã inutilizaram todas as jogadas do Hegêmona contra a Rússia. Adeus, “vantagem estratégica”, adquirida ao provocar Moscou a atacar com armas nucleares táticas. Agora a Rússia pode atingir qualquer ponto, a qualquer momento, a 12.000 quilômetros por hora. Sem radiação e sem montanhas de baixas civis.  

    E por falar em uma onda de choque cinética! – militar e geopolítica. Não é de admirar que a OTAN não esteja entendendo nada. Zeus supervisiona o tabuleiro de xadrez lá de cima, com um sorrisinho maroto, bebendo uma garrafa de Brunello em temperatura perfeita.

    Tradução de Patricia Zimbres

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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