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    Fernando Lionel Quiroga

    É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    38 artigos

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    Sobre a violência contra professores e contra a escola: por ocasião do Observatório Nacional da Violência contra Educadoras/es

    Apresento a seguir uma hipótese acerca da violência contra os professores e contra a própria instituição escolar

    (Foto: Reprodução)

    Hoje (07 de junho) a partir das 15h (horário de Brasília), o Observatório Nacional da Violência contra Educadoras/es (ONVE), divulgará a pesquisa que tem como objetivo a produção de dados nacionais sobre a perseguição a educadoras/es no Brasil. Para assistir, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=ZJjdu2Zd0eA. A pesquisa intitulada “A violência contra educadores como ameaça à educação democrática: um estudo sobre a perseguição de educadores no Brasil” reflete o momento delicado e crucial pelo qual a educação, de modo geral, e o espaço de atuação do profissional de educação tem atravessado nos últimos anos, desidratando cada vez mais a liberdade de cátedra no exercício da docência. A atualidade da pesquisa culmina com o sombrio cenário que a educação vem atravessando nas últimas décadas, à qual se acumula toda a carga de violência simbólica, material e ideológica. O fato é que a educação institucionalizada encontra-se no limbo entre um futuro cada vez mais incerto e seu total esfacelamento. A violência encontra-se instalada em suas vísceras e em suas representações sociais: na semiótica dos filmes, seriados e novelinhas “inocentes”; nas redes sociais, especialmente o TikTok, onde transbordam conteúdos em que a escola é a “Geni” do momento: a “instituição do fracasso”, segundo o olhar lúcido das investigações conduzidas por Jessé Souza.

    Assim, dada a importância da pesquisa em um contexto em que a violência contra a escola tem se tornado cada vez mais frequente - especialmente após o recrudescimento do neoliberalismo da extrema-direita - é também urgente a busca por soluções imediatas no sentido de conter os vetores que corroboram com a erosão da profissão docente. Mas há, sobretudo, duas formas de atacar o problema. Uma delas é o que se denomina políticas afirmativas, dizendo respeito às medidas e programas adotados pelos governos no sentido de corrigir desigualdades históricas e sociais que afetam diretamente grupos específicos da população. A outra forma consiste em atacar a origem do problema em sua essência e, com toda a seriedade, produzir as condições objetivas para seu real enfrentamento.

    Dito isto, é preciso compreender a fundo o que é violência sob o paradigma do neoliberalismo, em que a própria ideia de verdade encontra-se em crise e em que o cinismo é a sua maior expressão. Para tanto, é preciso que percebamos a diluição da fronteira entre poder e violência. E, então, a equação que teríamos seria: se admitirmos que a principal fonte da violência consiste na desinstalação do Estado pelo mercado, a instituição escolar seria apenas um dos diversos fenômenos decorrentes desta violência original. Todos os fatos locais, situações e episódios de violência no âmbito escolar consistiriam, partindo desta premissa, como manifestações advindas de um único e verdadeiro feixe da violência. Isto significa dizer, em resumo: a violência contra educadores é um tentáculo da violência contra o Estado. A violência materializada em sala de aula não é outra coisa senão um derivado da violência do mercado na corrida por outros mercados. A violência contra o professor e contra a escola não constitui um fenômeno pontual em que suas causas devem ser tratadas também pontualmente. É reconfortante saber que um professor que acaba de sofrer uma situação de violência extrema - seja em razão da ação de um aluno, da família ou da gestão - tenha direito a um acompanhamento psiquiátrico e grupos de apoio. Mas esta é apenas uma parte do problema, cuja outra metade não se encerra no aluno, na família ou na gestão. E é aqui onde mora o perigo. A materialização da violência é apenas o desfecho de um corpo invisível que cresce de modo inconsciente, distraído na orgia do entretenimento à qual todos somos fatalmente submetidos. Como observou o filósofo alemão Lessing: “Violência! Violência! Quem não é capaz de opor-se à violência? O que chamamos de violência não é nada; a sedução é a verdadeira violência”. A sedução! Chegamos a ela; e aqui temos uma elemento para enfrentar a raiz do problema. Que o projeto da educação brasileira sempre serviu aos interesses das elites é o primeiro passo para compreender seus desdobramentos contemporâneos e as falácias que assombram a educação e os educadores. “A crise na educação”, como advertiu Arendt no famoso ensaio que leva este nome, é essencialmente um problema de ordem política, por maior que seja a tendência de abordá-la como fenômeno local. Deste modo, para atacar o problema frontalmente, devem-se considerar os condicionantes que transcendem, à primeira vista, a própria noção de educação e de escola.

    Com efeito, apresento a seguir uma hipótese acerca da violência contra os professores e contra a própria instituição escolar.

    No âmago da sociedade contemporânea, gravemente embriagada pelo turbilhão de adjetivações como “sociedade digital”, “sociedade da informação”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade do desempenho”, “sociedade do espetáculo”, “sociedade em rede” etc. tanto a profissão docente quanto a escola têm-se tornado espaços em uma disputa desleal. A escola e os professores deixam de protagonizar a representação dos saberes acumulados historicamente. E não apenas a perdem para um conhecimento democraticamente disponível, como era de se esperar no sonho interrompido logo após o advento da internet. Tal substituição é, de fato - digamo-lo como parresiastas (παρρησιαστής) - injusta e maldosa, sobretudo com as novas gerações. Enquanto a escola e os professores carregam o fardo da ideologia do obsoleto e arcaico, as redes sociais com seus influencers 24h e tiktokers com superrostos “filtrados” e pomposos, prometem um universo de cores vibrantes em que conhecimentos combinam com descontração, leveza e uma carga substantiva de bom humor. Mas é aí que a coisa desanda. Se fosse apenas isso, vá lá! A questão é que, na tensão entre escola e o “enxame digital”, para usar a expressão de Chul Han, reside uma “troca” em cujo preço, caso a sigamos ignorando, devemos pagar por longas gerações. Dissemos que a violência possui um afluente mais ou menos único e coeso e que seu poder emana para os diversos rincões da sociedade. Muito bem. A troca da essência escolar pela essência do digital equivale trocar um oceano vibrante com toda a diversidade de organismos marinhos, por um oceano de esgoto. Volto a citar Han, para quem a conexão digital tem exercido papel fundamental na destruição das democracias. A troca do conhecimento por um “oceano de esgoto” é um eufemismo para a noção de “Shitstorm” elaborada por Han, segundo o qual, reformulando o pensamento de Carl Schmitt, “é soberano quem dispõe do Shistorm da rede”. Mas aqui é preciso destacar um detalhe, bem pontuado por Lucas Machado, tradutor deste pequeno livro do filósofo sul coreano “No Enxame”: “Shistorm, traduzido tipicamente como “tempestade de indignação”, mas que mais literalmente significaria “tempestade de merda”, é o termo usado para descrever campanhas difamatórias de grandes proporções na internet contra pessoas ou empresas, devido à indignação generalizada com alguma atitude, declaração ou outra forma de ação tomada por parte delas”. É o que se vê expresso em exemplos como as fake news ou as bizarrices dos terra planistas, os movimentos anti-vacinas etc: efeitos tardios de um contra ofensiva ao iluminismo.

    É fulcral, com efeito, que a violência não seja tratada apenas no último ato. O gênero da tragédia grega, já desde o século V a. C, ensina-nos que a tragédia possui uma origem (prólogo), seguida dos episódios, marcados por cenas de ação, e encerrando-se no êxodo (ou conclusão). É assim que Chico Buarque empresta-nos mais uma vez sua genialidade por meio da canção “Meu Guri”, de 1978, em que apresenta a violência encarnada na trajetória de um jovem que se inicia no ventre de sua mãe e culmina em sua morte.

    Finalmente, uma última observação. O desprezo à história (que pode tanto ser a história de vida de alguém, como pode ser a história dos grandes eventos de um período), é uma característica constitutiva do modus operandi das elites, pois é mais fácil punir o criminoso do que exterminar o crime, já que, aqui, inevitavelmente, haveria uma flagrante constatação de que quem é o verdadeiro criminoso. A sequência deste argumento leva-nos a pensar que, embora o olhar para as “formas” possua um significado de resistência contra a extrema-direita global, não se pode perder de vista a historicidade que se prende às coisas. E historicidade consiste na superação do próprio fato para enxergá-lo antes que ele ocorra. A sutileza do momento exige perceber que a violência pode se ocultar na suavidade um sorriso; na produção de um conceito feito propositalmente para surtir um efeito oposto ao que se propõe; na falsa ou perversa ideia de uma universalização do acesso a baixo custo - que, servindo-se desse expediente, aproveita-se para precarizar o ensino em sua totalidade; no conjunto de discursos que se opõe à práticas ou métodos de ensino consagrados pelo tempo, sem que se coloque nada em seu lugar, senão metodologias que corroboram para a atomização da sociedade e a perda de seus referenciais; na meritocracia; no fetiche à tecnologia como panaceia; no elogio ao professor como aquele a quem cabe cabe uma “missão”, e não um compromisso ético e profissional etc. Ou entendemos estes e outros detalhes que compõem toda a enciclopédia da ideologia vinculada à violência escolar, ou seguiremos vivendo a ilusão de que ela não passa de episódios que nos sufocam e oprimem no dia a dia por meios dos capítulos sombrios e bizarros que inundam o cotidiano escolar.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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