Todos são iguais perante a lei
“Embora o governo brasileiro, sob pressão da Inglaterra, tenha promulgado em 1831 uma lei que proibia a importação de escravos africanos, essa lei, segundo a expressão desde então consagrada, só foi aprovada para inglês ver”, escreve o professor da USP Fábio Konder Comparato
Publicado originalmente no site A Terra é Redonda
Em todos os tempos e países há sempre alguns mais iguais do que outros
Eis o famoso mantra, excogitado pelos revolucionários franceses de 1789 e repetido liturgicamente em todas as Constituições brasileiras, desde a Independência. Infelizmente, porém, como advertiu o personagem de um romance de George Orwell, em todos os tempos e países há sempre alguns mais iguais do que outros.
A escravidão de africanos e afrodescendentes vigorou legalmente nesta terra durante mais de três séculos; e quando abolida por lei de 1888, continuou a existir aberta ou sorrateiramente no mundo dos costumes sociais.
Algo de semelhante – senão pior – ocorreu com a população originária destas plagas, mencionada pela primeira vez na Constituição de 1934 com a denominação de silvícola, expressão embelezada de selvagem. E com qual objetivo foi ela utilizada naquela Constituição? Para determinar que “compete privativamente à União (…) legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (art. 5º, XIX, alínea m). Ou seja, reconheceu-se indiretamente que os indígenas, até então, não faziam parte do povo brasileiro.
Em carta ao Rei Portugal Afonso VI, datada de 20 de abril de 1657, o Padre António Vieira resumiu em que consistira, até aquela data, a colonização dos indígenas: “As injustiças e tiranias que se têm executado nos naturais destas terras excedem muito às que se fizeram na África. Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo”.
Tornado independente em 1822, o Brasil permaneceu, como sempre fora, um país de economia essencialmente agrícola e de trabalho servil. Mas desde o início do século a Inglaterra, que passara a exercer internacionalmente poderes imperiais e tinha sua economia voltada quase que exclusivamente para a exportação, não suportava mais a concorrência dos países do continente americano no comércio de produtos agrícolas. Sobretudo, porque seus dois maiores concorrentes nesse campo, Estados Unidos e Brasil, tinham uma economia fundada essencialmente na escravidão.
Embora o governo brasileiro, sob pressão da Inglaterra, tenha promulgado em 1831 uma lei que proibia a importação de escravos africanos, essa lei, segundo a expressão desde então consagrada, só foi aprovada para inglês ver. Diante disso, a Inglaterra resolveu passar dos acordos para a política da força nessa matéria. Em 1845, o parlamento britânico votou o Bill Aberdeen, que atribuiu à Marinha Real Britânica o poder de apreender em alto mar qualquer navio utilizado no tráfico negreiro. Não tivemos então outro remédio senão promulgar em 1850 a Lei Eusébio de Queiroz, que pôs fim ao comércio transatlântico de escravos, e duas semanas depois, a Lei de Terras, que consagrou entre nós a agricultura latifundiária.
Na discussão parlamentar desta última lei, o senador Costa Ferreira não hesitou em ressaltar o objetivo do diploma legal: “Existem nas províncias muitas terras, mas algumas não se acham demarcadas nem são beneficiadas, porque estão infestadas de gentios”
Hoje, nada menos do que a metade da zona rural brasileira é ocupada por propriedades com área superior a 2.000 hectares (20 quilômetros quadrados).
Pois bem, essa oligarquia latifundiária redobrou seu poderio ao se instalar na Chefia do Poder Executivo, apadrinhada pelo atual Presidente da República e seu Ministro do Meio Ambiente. Resta saber se o Poder Judiciário terá a dignidade de cumprir o seu dever, impedindo esse esbulho governamental.
Uma oportunidade para tanto é a decisão a ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar dentro em pouco o recurso extraordinário nº 1017365, no qual serão discutidos o sentido e o alcance do art. 231 da Constituição Federal:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
(…)
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis”.
Há alguma dúvida de que se trata de direitos fundamentais dos indígenas e, nessa condição, irredutíveis?
A mesma Corte Suprema, no entanto, ao julgar a questão da demarcação da terra indígena Raposa do Sol, decidiu que tal demarcação tem um “marco temporal”, que é a data em que a Constituição Federal em vigor foi promulgada; ou seja, 5 de outubro de 1988.
Tal decisão é claramente insustentável. Em primeiro lugar, porque mais de meio século antes, a Constituição Federal de 1934 já dispunha em seu art. 129: “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Em segundo lugar, porque, em se tratando de direito fundamental, não é o direito positivo que o cria; ele simplesmente o reconhece.
Como advertiu Montesquieu no Do Espírito das Leis, “não existe cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei, quando estão em causa seus bens, sua honra ou sua vida”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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