Trinta anos de um mundo sem a URSS
'Em qualquer avaliação histórica, o elemento mais importante é o que ela significou para as pessoas que viveram na pele essas experiências', escreve Igor Fuser
Na ocasião do 30º aniversário da dissolução da União Soviética, têm circulado pelas redes sociais mensagens de pessoas de esquerda que lamentam esse fato e manifestam um sentimento de saudade do período histórico que se encerrou em 1991.
Eu já era adulto naquele momento, acompanhei como jornalista, visitei a União Soviética, li e escrevi muito sobre aqueles acontecimentos; e continuo seguindo e estudando a realidade do Leste Europeu e Ásia Central até hoje.
Sobre esse assunto, faço algumas observações:
1. Quando foi tomada a decisão de dissolver a URSS, praticamente ninguém se mobilizou em favor da continuidade daquele Estado, plurinacional de fachada porém totalmente dominado pela Rússia, mais especificamente pela camada dirigente do Estado russo.
Ao contrário, o que se viu na maioria das antigas "repúblicas" soviéticas foram manifestações públicas de alegria pela recém-alcançada soberania.
Em algumas delas, o fim da URSS foi antecedido por grandes mobilizações populares pela independência; em outras, reinava um clima de apatia.
Porém, em todos aqueles novos países, os líderes políticos que mais se destacaram na chamada "luta pela independência" foram os vencedores das eleições realizadas nas décadas que se seguiram.
2. A URSS nunca foi uma união voluntária de povos (nem perto disso!) e sim uma entidade estatal constituída pela força a partir das relações de dominação política e das fronteiras existentes do antigo império czarista russo.
3. O fim da URSS foi consequência inevitável do colapso, ao final da década de 1980, do regime político, econômico e social nela vigente.
Assim como nenhum ator político relevante nem setor social significativo se ergueu em defesa da URSS, também ninguém, ou praticamente ninguém, resistiu ao desmantelamento do regime de socialismo burocrático soviético ocorrido nos anos finais do governo de Mikhail Gorbachev.
Tanto na URSS quanto nos seus países-satélites do Leste Europeu, o regime que a mídia capitalista chamava de "comunista" desmoronou devido à sua falta de legitimidade política, ou seja, o amplo descontentamento de suas populações com o exercício ditatorial do poder e com o tipo de organização política, econômica e social vigente naqueles países.
Nos regimes capitalistas lá instalados no pós-1991, o papel de burguesia -- a nova classe dominante -- foi preenchido, predominantemente, por antigos dirigentes dos Partidos Comunistas, elementos corruptos que enriqueceram da noite para o dia por meio da pilhagem do que era até então o patrimônio estatal.
4. Nada disso significa que a URSS, assim como os regimes instalados sob seu controle ou inspiração no Leste Europeu, não tivessem seus aspectos positivos.
No caso da URSS, seu desaparecimento já foi definido como um desastre geopolítico, pois deixou os Estados Unidos na condição de única superpotência, aparentemente com a possibilidade de transformar o mundo inteiro num "império americano", o que só não ocorreu, felizmente, graças à ascensão da China como novo pólo de poder político e econômico e, em parte, à postura nacionalista que a Rússia pós-soviética assumiu sob o comando de Pútin. Isso, para mencionar somente a dimensão internacional desse fato tão importante.
5. A avaliação sobre os aspectos positivos e negativos do finado Estado soviético é uma tarefa complexa.
Sem dúvida, para os povos da Ásia Central submetidos durante séculos ao domínio czarista e depois incorporados à URSS, o poder soviético abriu o caminho para o acesso às conquistas da civilização moderna (saúde, educação, tecnologia, vida urbana etc.) em uma escala que dificilmente seria possível de outra forma.
São comunidades nacionais que nunca tinham tido qualquer experiência como Estados independentes antes do domínio russo e, depois, soviético. Em outros casos, como o dos países bálticos (Lituânia, Estônia e Letônia), a incorporação à URSS se deu literalmente por meio da força, no contexto das grandes guerras do século XX e em aberto desrespeito à vontade de seus habitantes.
Casos como o da Ucrânia, em que convivem no mesmo território comunidades com características étnicas e culturais diversas, são ainda mais complicados, e seu entendimento demanda o estudo de muitos séculos de história.
6. Mas o que me chama atenção é que, passados trinta anos, não tenha surgido até hoje qualquer iniciativa relevante voltada para a reconstituição, ainda que parcial, do que foi a antiga URSS.
Para mim a lição que fica é a de que, em qualquer avaliação sobre processos históricos neste nosso vasto mundo, o elemento mais importante é o que eles significaram para as próprias pessoas que viveram na pele essas experiências -- os maiores interessados, por definição.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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