Voto elege, crime deselege: Tarcísio elogia a Justiça Eleitoral
"Um ato grave como o cometido pelo Governador de São Paulo, em atentado contra a paridade de armas e a lisura do processo eleitoral não pode passar em vão"
“quando notum est, et quid ille tibi et quid illi tute dederis” (quando se sabe bem o que te deu e o que lhe deste) Suetônio
Mal terminada a eleição, o atual Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, em entrevista ao Estadão, disse que faria todos os esforços para que seu partido, o MDB, deixasse de apoiar o Presidente Lula e passasse a apoiar a candidatura de Tarcísio, do Republicanos, ou Bolsonaro, do PL, para a Presidência da República, dali a dois anos. Nunes se dizia magoado com um vídeo, em que mulheres, entre as quais a mulher do Presidente, Janja, pediam voto para Guilherme Boulos e Marta Suplicy, do PSOL/PT, em favor da vida e contra a violência, ao citarem o fato público da confecção de boletim de ocorrência relativo a violência doméstica, que teria sido perpetrada contra a esposa do Prefeito eleito, ocorrência cuja existência foi negada pelo mesmo Nunes: “Eu vou defender, obviamente, como conversei com o Melo, prefeito de Porto Alegre reeleito, de que a gente caminhe com quem nos apoiou. Não tem o menor sentido, aqui em São Paulo, eu defender o apoio à reeleição do presidente Lula ou do PT, porque eles agiram de uma forma muito contundente contra a minha candidatura. É natural e óbvio que eu vou defender quem me apoiou. Quem me apoiou foi o Tarcísio, o presidente Bolsonaro. Em retribuição, é óbvio que eu vou fazer isso, porque eu sempre fui uma pessoa de ter, no meu histórico de vida, a coerência.”
Nunes já havia, por diversas vezes, no curso de sua campanha, dito que devia a Tarcísio de Freitas, atual Governador de São Paulo, gratidão perene, em reconhecimento pelo apoio, segundo acreditava, definitivo para sua vitória eleitoral. No discurso de comemoração do resultado da eleição, afirmou: “agradeço ao líder maior, sem o qual essa vitória não seria possível, o meu amigo, que me deu a mão, o governador Tarcísio de Freitas.”
De fato, afora tantas declarações e manifestações de apoio irrestrito ao candidato do MDB, o Governador foi um cabo eleitoral para além de fiel. No dia da eleição, estando ainda em curso o processo de votação, em coletiva à imprensa, tendo a seu lado o apadrinhado político, cuidou de levantar suspeita sobre o candidato do PSOL/PT, afirmando que teria havido interceptação pela polícia de “salve” (sic) de facção criminosa, em São Paulo, pelo qual era dada ordem a determinadas pessoas, em determinadas regiões, para que votassem em determinado candidato. Uma jornalista perguntou, então ao Governador - que tinha grudado a sua camisa e bem visível, o adesivo de campanha de Nunes, com seu número de votação estampado - quem seria esse candidato. Tarcísio respondeu, prontamente: “Boulos.”
A entrevista estava sendo concedida na condição de Governador do Estado, pois repórteres desejavam saber como estava a situação de segurança pública (tema central da preocupação política e popular, atual) no dia da eleição - estando as urnas abertas, a votação estava em andamento. Ninguém lhe perguntava qual era a situação de seu candidato. Segundo o Governador, então, teria sido realizado “um trabalho grande de inteligência, temos trocado informações com o Tribunal Regional Eleitoral para que providências sejam tomadas. No que diz respeito à tranquilidade das eleições que está acontecendo agora, uma mobilização policial muito grande .”
Jornalista desejava saber sobre a situação na Baixada Santista, em que havia uma denúncia de uma candidata de que seu oponente recebia apoio do PCC (Primeiro Comando da Capital, órgão do crime organizado) Mais eis que, espantosa e espontaneamente, ou seja, sem que lhe tivesse sido indagado, fez questão de afirmar, sem expor provas, mas garantindo que havia recebido a informação da inteligência (sic), na qualidade de Chefe do Executivo, e que, dessa forma, estava em contato permanente com o Tribunal Regional Eleitoral: “Isso aconteceu aqui, também, com o Ricardo. Disseram que era para votar no outro.” O asunto era o que ocorria em Santos e Guarujá e, por isso, a imprensa prosseguiu explorando os fatos ocorridos naqueles Municípios, dando-se conta, logo a seguir, todavia, que o Governador do Estado havia feito uma afirmação sobre a Capital: “O que aconteceu aqui na Capital que o senhor citou? Em relação ao PCC? ” Note-se que a pergunta faz referencia à afirmação espontânea do Governador. Tarcísio de Freitas, que, então, conclui o que insinuara: “Teve um salve. Houve interceptação de conversas e de orientações que eram emanadas de presídios por parte de uma facção criminosa, orientando determinadas pessoas em determinadas áreas a votar em determinadas comunidades. Houve essa ação de inteligência, houve essa interceptação mas não teve influência nenhuma nessa…” A imprensa interrompe e pede para que o Governador confirme o que dissera: “Mas qual era o candidato que eles estavam orientando a votar? Qual era o candidato que eles orientavam a votar? Em São Paulo? ” O Governador do Estado confirma o que indicara como tema para a conversa e a acusação que fizera, sem titubear: “Boulos.”
Essa fidelidade bem calculada, muito embora irresponsável, deveria custar caro ao Governador e aos Prefeito e Vice-Prefeito eleitos: a perda de seus mandatos e a inelegibilidade.
No site do Tribunal Superior Eleitoral há um glossário, cujo objetivo é divulgar “informações sobre a Justiça Eleitoral que possam conscientizar eleitores e futuros eleitores da importância do voto e contribuir para torná-los cidadãos com efetiva participação na vida política do país.”
Ali está dito, com base numa referência da doutrina jurídica que o abuso de poder político “ocorre nas situações em que o detentor do poder, [...] vale-se de sua posição para agir de modo a influenciar o eleitor, em detrimento da liberdade de voto. Caracteriza-se dessa forma, como ato de autoridade exercido em detrimento do voto.”
O dia da votação ou eleição é o ponto culminante do processo eleitoral. Nele se concentram todos os esforços das autoridades administrativas eleitorais para que o processo se perfaça de modo lídimo, uma vez que nesse dia os pontos de tensão e conflito entre candidatos alcança seu auge. É um momento delicado, sujeito ao cometimento de abusos e desvios do que a lei determina para a licitude de todo o processo. As cartas mais decisivas da eleição podem ter sido guardadas para que se busque, nesse dia, uma reviravolta, por meio da ousadia de saber o instante certo para que algo seja revelado ou dito.
É por isso que, há bom tempo, a norma eleitoral resolveu cercar a data da votação de uma série de cuidados, para impedir que candidatos e apoiadores venham a perturbar tudo o que ocorreu de modo correto durante o processo por uma ação indevida no dia em que a eleição está ocorrendo. Veja-se, por exemplo, a possibilidade de emprego de agentes públicos para impedir a movimentação de eleitores para determinados locais, a possibilidade de distribuição de propaganda eleitoral, para capturar eleitores indecisos, o impedimento de oferta de transporte, refeição e outros meios de persuasão, afastando a liberdade de escolha do eleitor.
Nesse dia, o Governador do Estado, portando um adesivo do candidato a reeleição em sua camisa, usando de informação somente acessível a uma autoridade pública, afirma perante a imprensa, com claro interesse de divulgação ampla, que o candidato opositor ao de sua preferência seria apoiado pelo crime organizado. Usa uma informação privilegiada, a que teria tido acesso como Governador para tentar convencer o eleitor a votar em seu candidato e não no candidato que acabara de acusar, sem prova alguma.
Voltemos à definição do Glossário Eleitoral do TSE; o detentor de poder vale-se de sua posição para agir de modo a influenciar o eleitor, em detrimento da liberdade de voto.
Não é preciso muita reflexão para concluir que, em abstrato, o ato do Governador se enquadra nessa hipótese de abuso de poder político.
Na verdade, é um caso típico: quem tem poder acha que tudo pode, sobretudo para manter esse poder. Esse tudo poder é abuso: “No dia 27 de outubro de 2024, durante o segundo turno das eleições municipais, o governador Tarcísio de Freitas, em entrevista à imprensa, afirmou que membros da facção criminosa PCC estariam orientando eleitores de comunidades a votar em Guilherme Boulos, candidato à prefeitura de São Paulo pelo Psol. A declaração de Tarcísio de que "teve o salve" do PCC pedindo voto em Boulos foi dada em entrevista coletiva no colégio Miguel Cervantes, na zona sul de São Paulo, onde o governador votava, acompanhado de Ricardo Nunes. Na ocasião, o governador não apresentou provas que sustentassem sua declaração.”
Muito bem, o que diz, agora, a Lei e não mais e apenas o importante Glossário da Justiça Eleitoral:
A Lei Complementar 64/1990, em seu artigo 22 fala do abuso de poder político, afirmando que cabe à Justiça Eleitoral ser informada e tomar providências quanto a abuso de poder político, ou, como o texto da lei expressa “abuso do poder de autoridade”: “partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político.”
A própria Lei diz qual é a pena a ser aplicada a essa autoridade que abusou de seu poder para beneficiar o candidato de sua preferência, para o qual trabalhou no curso do processo eleitoral: “julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação.” (Inciso XIV do mesmo artigo 22 da Lei Complementar 64/1990)
A LC 64/1990 é a Lei de Inelegibilidade (veja o significado e a importância da inelegibilidade nesses dois artigos: "Inelegibilidade e responsabilidade" e "Inelegibilidade é Sagrada") que diz que os condenados pela prática de abuso de poder político são inelegíveis, a partir de sua condenação: “São inelegíveis para qualquer cargo os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública.” (artigo 1º, inciso I, alínea e, n. 5)
Corre na Justiça Eleitoral ação voltada a apurar esses fatos e aplicar a sanção correspondente, em caso de sua procedência. A primeira instância dessa Justiça absolveu Governador, Prefeito e Vice-Prefeito, agora, no mês de março.
Poucos dias após ser noticiada a absolvição, Tarcísio de Freitas elogiou a Justiça Eleitoral. Isso talvez não decorra apenas de um modo ambíguo de proceder de um político que, havia alguns dias, tinha, mais uma vez, comparecido a ato do ex-Presidente da República, seu padrinho político, em que se criticava a Justiça brasileira e se buscava persuadir da necessidade de anistiar acusados do crime de tentativa de golpe de Estado.
É bom lembrar que é extremamente duvidoso, sob pena de responsabilidade, que uma autoridade pública, com a responsabilidade de titular do cargo de Governador de Estado, possa participar de uma manifestação, ao lado de alguém que já foi julgado, por duas vezes, pela Justiça Eleitoral, inelegível, a par de já estar, no momento do evento, indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público Federal.
Hoje, o ex-Presidente é réu e, no que diz respeito ao Governador, um recurso contra a decisão de primeiro grau da Justiça Eleitoral está em andamento, devendo ainda manifestarem-se o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e, eventualmente, o Tribunal Superior Eleitoral.
O desafio para a cidadania está em cobrar, de modo firme e intransigente, que a coerência aponte para o caminho de a Justiça cumprir seu papel de guardiã da Constituição, dos Direitos Humanos, da Democracia e do Império da Lei, afastando definitivamente o nefasto bolsonarismo da política, dando-lhe o destino da condenação eleitoral e penal.
O bolsonarismo é uma cultura extremamente perigosa, tornou-se, devido à leniência, uma doutrina, vingou como prática e, por onde passou, deixou apenas ervas daninhas, destruição. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu mesmo com o Judiciário (consulte-se a sucessão de fatos narrados relativamente à Justiça brasileira, sob influência do bolsonarismo, pelo jornalista Frederico Vasconcelos, em sua coluna na Folhajus, de primeiro de abril de 2025).
Um ato grave como o cometido pelo atual Governador de São Paulo, em atentado contra a paridade de armas e a lisura do processo eleitoral não pode passar em vão.
“Cría cuervos y te sacarán los ojos”
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