Tereza Campello: maior desafio do BNDES é lutar contra uma parte da elite que quer o Brasil pequeno
Segundo ela, atores "ligados a uma ideia de que o Brasil tem que voltar a cumprir um papel de ser agrícola e exportador, tentaram acabar com o BNDES"
Lucas Weber, Brasil de fato - Há 10 anos, quando o Brasil recebia o reconhecimento por parte das Nações Unidas (ONU) de ter saído do Mapa da Fome, foi a então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, quem recebeu o título em nome do país. Hoje, diretora Socioambiental do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Campello está confiante que o Brasil irá reconquistar a marca em breve. Na verdade, para ela, nesta retomada da gestão petistas à frente do governo federal, o maior desafio que vem enfrentando “é lutar contra uma parte da elite brasileira que quer que a gente seja pequeno”.
Em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (21), a diretora celebrou os avanços que o BNDES vem conquistando nestes quase dois anos que ela está à frente da diretoria, sob presidência de Aloizio Mercadante.
“Esse um ano e dez meses foi um período excepcional para a nossa atuação no Banco. Nós resgatamos um papel histórico do BNDES”, diz.
“Durante um período, esses atores ligados ao bolsonarismo, ligados à extrema-direita, mas principalmente ligados a uma ideia de que o Brasil tem que voltar a cumprir um papel de ser agrícola e exportador, tentou acabar com o BNDES".
Campello cita entre as conquistas do Banco a parceria com o governo federal em política de combate à fome voltadas ao fomento à agroecologia e a agricultura familiar de modo geral.
“Os programas voltaram, o Programa de Aquisição de Alimentos [PAA] voltou, o Pnae voltou, que é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, outra agenda estratégica que a FAO destacava de por que que saímos do Mapa da Fome. E nessa agenda de fortalecimento da agricultura familiar tinha um conjunto de elementos, dentre eles o próprio Ecoforte do BNDES e da Fundação Banco do Brasil".
“Todas essas agendas foram retomadas. Nesse um ano e 11 meses a gente pode dizer que nós conseguimos reconstruir tudo aquilo que eles destruíram", reforça Campello.
Embora veja com perspectiva, a diretora pondera que há um novo desafio neste momento: os ultraprocessados.
“A situação de fome é muito identificada quando a pessoa não tem acesso a comida nenhuma, mas hoje o brasileiro tem acesso a um tipo de alimentação que é o não-alimento, um alimento que pode matar a dor da fome, mas que não nutre”.
“Uma criança que vive de biscoito recheado, que vive tomando suco de caixinha, essa criança está mal alimentada".
Confira a entrevista na íntegra
Qual tem sido o maior desafio desta retomada do BNDES sob gestão petista?
Esse um ano e dez meses foi um período excepcional para a nossa atuação no Banco. Nós resgatamos um papel histórico do BNDES.
Se a gente for pensar no que existe de positivo, as grandes conquistas modernas do Brasil, vamos lembrar do pioneirismo na área de biocombustíveis, da Embraer, da indústria de papéis de celulose... quando a gente olha esses últimos 70 anos de Brasil, é difícil imaginar uma área estratégica que o BNDES não tenha atuado.
O BNDES está colado com a ideia deste Brasil moderno, deste Brasil que se desenvolveu, do esforço de deixar de ser um país agrícola, um país agrícola exportador, e ser um país desenvolvido, um país que garante geração de emprego e renda de qualidade para o seu povo.
Durante um período, esses atores ligados ao bolsonarismo, ligados à extrema-direita, mas principalmente ligados a uma ideia de que o Brasil tem que voltar a cumprir um papel de ser agrícola e exportador, tentou acabar com o BNDES. Não só enforcou, praticamente, o Banco, deixando ele restrito a um conjunto de atribuições, como lançou essa nuvem de dúvidas e questionamentos, chamando o BNDES de caixa preta.
Bom, foi feita uma devassa nas contas do Banco e encontraram o quê? Nada. E agora nós temos a alegria de comemorar, não só que eles não encontraram nada, mas que o BNDES, em todas as auditorias que tem passado, tem se saído super bem e foi considerado a instituição mais transparente entre todas as instituições públicas no Brasil.
Mas você perguntou qual o maior desafio, né? Olha, o maior desafio é lutar contra uma parte da elite brasileira que quer que a gente seja pequeno. A gente tem que lutar todo dia, como diz o presidente Lula, mas eu acho que nós estamos vencendo.
Você tem levado seu legado de combate à fome para a gestão no BNDES?
[Na semana passada], eu tive a oportunidade de estar com o presidente Lula e ministros resgatando um conjunto de ações das gestões anteriores, e lançando dois planos superimportantes: o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar “Alimento no Prato” [Planaab] e Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Planapo].
E dentro dessa agenda, tanto de abastecimento quanto de agroecologia, estão algumas ações do BNDES, mas não só.
Eu queria resgatar um pouco do contexto que foi a saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014, e que voltou durante o governo do presidente Bolsonaro muito rapidamente.
Quando a gente saiu do Mapa da Fome em 2014, o que se dizia? Por que o Brasil saiu do mapa da fome? Primeiro, porque enfrentou a agenda de renda.
O povo passava fome, não porque não queria trabalhar, mas porque não tinha renda suficiente para se alimentar com a qualidade e com a quantidade necessária.
Como que a gente aumentou a renda do povo? Todo mundo acha que é o Bolsa Família, mas não é. Primeiro, aumento do salário mínimo, que teve impactos variados no Brasil, nas aposentadorias, mesmo quem não tem salário mínimo, carteira assinada, ele é uma referência.
Os programas voltaram, o Programa de Aquisição de Alimentos [PAA] voltou, o Pnae voltou, que é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que era outra agenda estratégica que a FAO destacava de por que que saímos do Mapa da Fome com uma alimentação de qualidade nas escolas brasileiras.
E nessa agenda de fortalecimento da agricultura familiar tinha um conjunto de elementos, dentre eles o próprio Ecoforte do BNDES e da Fundação Banco do Brasil.
Todas essas agendas foram retomadas. Nesse um ano e 11 meses a gente pode dizer que nós conseguimos reconstruir tudo aquilo que eles destruíram.
Tem muita coisa que tem que avançar ainda, claro.
O Ecoforte é um programa de fortalecimento das redes de agroecologia. Não basta somente a gente pensar em arroz e feijão. Nós temos que pensar numa diversidade enorme e em produzir sem produtos agrotóxicos.
E essa agenda da agroecologia é uma agenda que tem que ser fortalecida, ela é típica da agricultura familiar brasileira.
A gente estava pronto para encerrar as inscrições, mas teve uma grande movimentação da sociedade civil com carta assinada por todas as redes de agroecologia pedindo que a gente estendesse o prazo. Então nós estendemos mais uma vez.
Ao mesmo tempo que há esses investimentos na agroecologia, o Banco também segue liberando crédito para o agronegócio e setores da mineração. A senhora vê isso como uma contradição?
Essa agenda não deveria ser tratada dentro do BNDES, ela é uma contradição do país. O fornecimento e a oferta de crédito para o agronegócio não é um dinheiro do banco, é um dinheiro do Plano Agrícola e Pecuário do Brasil.
Esse montante de recursos é ofertado pelo conjunto dos bancos, pelos vários bancos públicos, o BNDES, o Banco do Brasil, Caixa e bancos privados. Mas é uma política nacional de financiamento da agricultura brasileira, que é necessária porque a agricultura é parte da importância do PIB.
Nós não vamos fazer a transição para uma agricultura de baixo carbono, para uma agricultura sustentável de uma vez.
Quer dizer, você cortar o crédito... isso teria impacto dramático, não só na renda nacional, nas exportações, no nosso crédito, como na própria oferta de alimentos.
O esforço do governo federal ao lançar o Planapo é dizer que nós queremos transitar, gradualmente, para a redução do uso de produtos químicos e de agrotóxicos.
Já o dinheiro do Ecofort é o dinheiro do banco, esse dinheiro que em outras instituições o povo chama de recursos concessionais, né? Então um pedaço do nosso lucro, que é um pedaço do recurso que o banco dispõe, a gente decidiu investir em agroecologia.
E no caso do nosso recorte de recursos do Plano Agrícola e Pecuário, nós temos um diferencial: nós não vamos ofertar esses recursos para quem desmatou. Então o BNDES foi pioneiro ao usar o MapBiomas, que faz a identificação de áreas que foram desmatadas legal ou ilegalmente, e ao identificar que houve desmatamento ou por fogo ou desmatamento físico sem fogo, a gente não oferta recursos.
Isso gerou todo um frisson, muita gente nos questionou. Mas hoje, apesar das críticas que nós recebemos lá no começo, isso está pacificado.
Voltando a falar sobre o combate à fome, a senhora diria que os ultraprocessados são o maior inimigo do Brasil hoje?
São, eu tenho convicção pela pesquisa que eu fiz ao longo do meu período acadêmico.
A situação de fome é muito identificada quando a pessoa não tem acesso a comida nenhuma, mas hoje o brasileiro tem acesso a um tipo de alimentação que é o não-alimento, um alimento que pode matar a dor da fome, mas que não o nutre.
Uma criança que vive de biscoito recheado, que vive tomando suco de caixinha, essa criança está mal alimentada.
As pessoas acham que o ultraprocessado é um produto cheio de sal, cheio de gordura saturada, e é verdade, mas não é só isso. Ele também não tem nada que ajude a fazer essa nutrição.
O Brasil tem historicamente um tipo de alimentação que é a melhor alimentação que a gente poderia ter, que é o nosso arroz com feijão, com legumes, com verdura, com uma proteína, então com carne, com frango, com peixe.
Mas a base da alimentação não é a carne, o peixe, o frango. É o arroz, o feijão, que é super nutritivo, misturado com legumes. Essa alimentação é super saudável e nos ajuda a resistir.
Se você perguntar pra uma família, 'ó, se você pudesse, hoje, comer uma comida bem gostosa, um arroz gostoso, um feijãozinho temperado, uma carninha com uma vagem e cenoura... ou você comer 5 dias na semana uma lasanha pronta toda engordurada, o que você escolheria?', eu tenho certeza que a grande maioria da população escolheria a nossa comida tradicional.
Só que isso tá ficando difícil. Por quê? Por toda uma facilidade que a indústria vende essas coisas prontas, mentindo, dizendo que aquela é nutritiva.
Às vezes você vê um pacote e diz lá: 'contém vitaminas, contém tudo que você precisa para o seu dia a dia'. Mentira, não contém. Aquele pacote cheio de gordura, cheio de sal, sem nutriente nenhum ou com nutriente adicionado, não substitui essa comida.
O grande desafio nosso é poder enfrentar essa discussão e aí isso não se faz com uma única política. O Pnae vai nos ajudar a fazer isso, o Ecofort vai nos ajudar a fazer.
E esse impulso dos ultraprocessados não pode “maquiar” essa saída do Brasil do Mapa da Fome? Sermos enganados que de fato combatemos o problema, mas estamos gerando outro?
Não, os dados e as informações levam também isso em consideração.
A gente tem cada vez mais evidências científicas de que parte da origem das doenças crônicas não transmissíveis, que é o câncer, que são as doenças cardiovasculares, diabetes... vem do aumento exponencial pela má alimentação.
Então eu não diria que ele vai maquiar, porque isso está considerado nas perguntas que são feitas nos nossos inquéritos, mas eu acho que para a gente de fato deixar de ter no mesmo corpo a fome e a obesidade, nós vamos ter que transitar para um tipo de alimentação mais saudável.
Na mesma família você pode ter uma pessoa desnutrida e uma pessoa obesa. E às vezes é a mesma pessoa, ou no mesmo bairro, ou no mesmo território.
Esse é um desafio gigantesco do mundo todo e eu acho que o Brasil tem mais condição do que qualquer outro país para enfrentar essa agenda, até porque a gente resiste à alimentação do brasileiro apesar de toda essa guerra de marketing da indústria de ultraprocessado.
Essa resistência que está no imaginário da população, que está na nossa agricultura familiar, que é superpotente, que produz alimentos de qualidade, que faz um esforço enorme para garantir que esse alimento chegue na população, na base da população.
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