Comunidade indígena ilhada por enchente no RS resiste em deixar área sob disputa com construtora
A área faz parte de uma fazenda privada onde os indígenas estão instalados desde 2018
PORTO ALEGRE, 21 Mai (Reuters) - Ilhados há quase 20 dias em uma praia de uma península no extremo-sul de Porto Alegre pelo maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, uma pequena comunidade indígena Mbya Guarani resiste a deixar terras que consideram sagradas ocupadas por seus ancestrais, mas que são reivindicadas pelo mercado imobiliário.
A área faz parte de uma fazenda privada onde os indígenas estão instalados desde 2018, e de onde os Mbya Guarani não consideram sair, mesmo que temporariamente, após terem ficado ilhados pelas enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul este mês.
“Depois que secar essa enchente, eu vou sair mais para lá”, afirmou à Reuters o cacique Timóteo de Oliveira Karai Mirim, de 62 anos, apontando para uma área mais elevada dentro do terreno na Ponta do Arado.
“Mas não sair daqui, não. E o empresário vai dizer que não temos direito. Mas eu vou ficar lá sim. Já escolhemos esse lugar e não é para sair”, acrescentou.
De acordo com Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), essa é a única aldeia ainda isolada pelas enchentes no Estado, que deixaram ao menos 161 mortos e 85 desaparecidos.
O Ministério dos Povos Indígenas calcula que as cheias atingiram no total 30 mil indígenas em território gaúcho.
Um dos coordenadores da Apib que está no Estado atendendo a grupos indígenas assolados pelas chuvas, Kretã Kaingang, contou que, apesar das atuais dificuldades, os Mbya Guarani temem deixar o acampamento pelo receio de serem expulsos.
“Aqui no Rio Grande do Sul já tiveram locais onde o pessoal saiu, quis ir para alojamentos, e destruíram as casas deles. Nessa comunidade específica, eles estão muito preocupados que, com a saída deles para um alojamento, não consigam voltar mais. Por isso, a resistência em ficar no território”, disse Kretã à Reuters.
Na área, o Guaíba engoliu a faixa de dez metros de areia e destruiu as cinco casas de bambu da comunidade pelo norte, encharcando colchões, roupas e alimentos. Pelo sul, a água barrenta inundou a estrada em meio à Mata Atlântica que dá acesso terrestre ao acampamento, no bairro Belém Novo.
Dezessete pessoas de quatro famílias moram na comunidade, sendo 12 adultos e cinco crianças, além de patos, galinhas e cachorros. Antes da cheia, os Mbya Guarani compravam parte dos itens de subsistência em mercados do bairro, pelo rio, e recebiam outra, do poder público, por terra.
Com a enchente, o barco da comunidade, que tem motor de baixa potência, estragou, pois não suportou a correnteza do Guaíba em níveis recordes, e a estrada ficou inacessível. Agora, os indígenas dependem exclusivamente de donativos, que começaram a chegar na semana passada, para sobreviver.
“Para nós, falta tudo quase. Para se locomover daqui e ir para a cidade, não tem estrada, pela água não dá. A gente tem barquinho, mas é muito complicado. O motorzinho não aguenta tanta poluição, a água está muito pesada. Não tem como sair daqui”, disse Pablo Natalício de Souza, de 37 anos, sobrinho do cacique.
DISPUTA JUDICIAL
A presença dos indígenas na região, e os planos de se mudarem para uma área mais elevada, enfrenta resistência da empresa proprietária dos 426 hectares do terreno, a Arado Empreendimentos Imobiliários.
A construtora, em uma proposta que se arrasta há mais de uma década, com idas de vindas judiciais e legislativas, pretende construir um bairro planejado no local, que inclui condomínio e comércio. Na península onde vivem os Mbya Guarani, está prevista uma reserva particular de patrimônio natural, que impede a presença humana.
“Não temos informações de que eles se moveriam do local, mas, se for isso, vamos ter que reverter judicialmente. Esse pessoal foi levado para criar problemas. Há cem anos, nunca tinha aparecido um índio lá”, disse à Reuters o proprietário da fazenda, Iboty Brochmann Ioschpe.
Atualmente, a permanência dos indígenas na fazenda está amparada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que suspendeu uma liminar de reintegrar o terreno aos proprietários e interrompeu o processo até uma definição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas, confirmaram advogados da empresa.
No ano passado, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) deu início à fase de estudos na área, a primeira etapa para avaliar a eventual demarcação do território indígena.
Os Mbya Guarani já haviam recuado a aldeia em relação à praia na enchente de novembro do ano passado, na primeira vez que as águas destruíram a comunidade. Nesta cheia, os indígenas tiveram de abandonar novamente suas casas e construir barracas improvisadas, de lona, em uma parte mais interna do terreno.
A aldeia tem recebido uma entrega expressiva de donativos. Equipes do Greenpeace, da Polícia Rodoviária Federal e de voluntários percorreram de barco uma travessia de 2,5 quilômetros para distribuir cestas básicas e água mineral, além de colchões e atendimento médico.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também deixou barracas de campanha no local, que foram montadas por barqueiros da região que também tiveram as casas alagadas até o teto pelas cheias.
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