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      Francisco Calmon

      Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Membro da Frente Brasil Popular do ES

      137 artigos

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      61 anos do golpe e a justiça de transição

      A impunidade é chocadeira de novos golpes e intentonas, a punição aos golpistas de ontem e de hoje pode assegurar ao país uma democracia sólida

      Ditadura Militar (1964-1985) (Foto: Evandro Teixeira / Agência Brasil)

      Na madrugada de 31 para o dia 1° de abril de 1964, as tropas do Gal. Olímpio Mourão Filho marcharam de Minas para o RJ, em plena insurgência à Constituição e ao Comandante em Chefe das Forças Armadas, o presidente da República João Goulart, para operar no campo militar o golpe em curso.

      A ditadura inaugurada com o golpe de 64 colocou meio milhão de brasileiros sob suspeição, 200 mil investigados, mais de 20 mil torturados, entre eles 95 crianças/adolescentes; além dessas, 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por militares, 7,5 mil membros das Forças Armadas e bombeiros foram presos, muitos torturados e expulsos de suas corporações; no total mais de 9.540 mortos incluindo os indígenas e camponeses; ainda desaparecidos 210 brasileiros, (entre os 434 mortos/desaparecidos registrados pela Comissão Nacional da Verdade foi estimado que 42 eram negros e 45 mulheres); 536 intervenções em sindicatos; extinção e colocação na ilegalidade entidades estudantis, UNE, UBES e demais; violação de correspondências de toda ordem, sigilos bancários e grampos telefônicos, fomento ao ódio e à delação até entre familiares. (Números em constante atualização pelos pesquisadores).

      AI-5 foi o responsável para que parte significativa da esquerda revolucionária optasse pela luta armada.

      Com o Ato, o Congresso Nacional foi fechado e o habeas-corpus para os chamados crimes políticos foi abolido.

      Além de prisões e cassações, esse hediondo ato institucional instituiu a licença para cassar, caçar, sequestrar, torturar e matar, sangrou uma geração de brasileiros.

      A ditadura perdeu todo o pudor que porventura restava, raspou o verniz de legalidade e assumiu a feição cruel de uma ditadura escancarada.

      O Estado ditatorial virou um Estado terrorista!

      O AI5 durou 10 anos e 18 meses, durante esse tempo o Brasil esteve sob um imenso pau-de-arara.

      Mesmo sob a guilhotina do AI-5 e da Lei de Segurança, nós combatemos a ditadura. Custou muito, mas a democracia venceu.

      Ao não extirpar por completo as raízes daquela ditadura, através da aplicação da Justiça de Transição, voltamos a um estado de exceção com o golpe de 2016 e a decorrente intentona de 8 de janeiro de 2023.

      A direita golpista conspira permanentemente para desmontar a democracia. É a história que nos ensina.

      Uma nação sem memória, é uma nação à deriva e com o DNA da impunidade.

      Os desparecidos e mortos já se levantaram algumas vezes, através de seus familiares, e não foram atendidos em seus pleitos: saber onde foram enterrados, em que circunstâncias, resgaste dos seus restos mortais; tempo para viver o luto com todas as honras e reverências aos heróis da democracia; assim como, a criminalização dos agentes responsáveis pelos crimes de tortura, homicídio e ocultação de cadáver, e reparação moral e pecuniário aos familiares. 

      A Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, restabelecida sob a presidência de Eugênia Gonzaga, faz um trabalho eficiente, mas faltam recursos; é praticamente uma comissão de voluntários. O governo trata os DHs à míngua, notadamente as comissões de anistia política e de mortos e desaparecidos. 

      Por outro lado, a anistia aos terroristas da intentona bolsonarista será um retrocesso estrutural que interferirá no devir democrático do Brasil. Mas não ocorrerá, se depender da gente.  

      “É o fim da minha vida. Eu já estou com 70 anos “. Exclama o capitão desalmado, genocida por vocação, terrorista por opção, temendo a proximidade da sua prisão.  

      A democracia agradece e torce para que seja o fim, já deu e ainda dá muito trabalho ao Estado democrático de direito, e promete ainda mais quando estiver encarcerado.

      Bolsonaro articulava um golpe que não pudesse ser chamado de golpe. Não teve apoio e partiu para a intentona, que, graças a unidade resistente dos poderes democrático, foi impedida de vitória. 

      Não se resolve somente com programas de formação de direitos humanos para os militares e policiais, como já aventados; a punição é imprescindível para quebrar a cadeia histórica da impunidade, como está ocorrendo, uma espécie de justiça de transição reversa, contudo, o mais necessário e urgente é a reforma nas forças militares e policiais.

      Para o futuro será necessário a constituição de uma Comissão Estatal Permanente de Memória e Reparação, que abranja todos os períodos traumáticos do Brasil – escravidão, ditaduras e o genocídio bolsonarista, a fim de ser planejada e implementada a justiça de transição, necessária à construção de uma democracia sólida. Para isso, precisaremos de um Congresso menos extrema-direita que o atual.

      A JT é um processo no qual as violações de todos os direitos, especialmente os DHs, pelo Estado, sofrem reparações judiciais e pecuniárias, reformas no sistema político, jurídico, policial e militar, para impedir a repetição do arbítrio e da impunidade.

      Como processo, a JT tem basicamente quatro eixos. O 1º é o de trazer à superfície a memória daquilo que foi abafado, deformado e mentido. Contraditar a narrativa degenerada durante o arbítrio com a memória verdadeira, baseada em provas documentais e testemunhais.

      O 2º eixo é o estabelecimento da verdade incontestável, pois fruto de um rigoroso trabalho de pesquisas alicerçadas sobre provas, e ampla divulgação à sociedade.

      O 3º eixo é o da justiça, que se abre em duas linhas: a primeira é a reparação moral, psíquica e material, àqueles que foram atingidos pelos sistemas anticivilizatórios, tal qual o etnocídio dos indígenas, o genocídio dos negros, e dos afetados diretamente pelos regimes excepcionais, ou seja, os atingidos pela ditadura do Estado Novo e pela Ditadura Militar, e, também, pelas práticas protofascistas do governo bolsonarista; a segunda linha da justiça é a responsabilização do Estado e a criminalização dos seus agentes, autores das políticas terroristas e dos crimes de lesa-humanidade e lesa-pátria.

      O 4º eixo, na fase em que vivemos, o mais importante, é o das reformas no sistema, começando a partir das 29 Recomendações da Comissão Nacional da Verdade, para limpar o lixo dos regimes passados e tornar sólida a construção da democracia.

      Cabendo ao Estado a implementação dessas reformas, sob acompanhamento e cobrança da sociedade civil organizada.

      Com base nessa compreensão, a Justiça de Transição é um instrumento estratégico para transformar o sistema e alicerçar a construção da democracia popular.

      É um equívoco compreendê-la somente pelos seus três eixos de per si, excluindo a totalidade do processo e seu corolário (4º eixo), que são as reformas políticas, para que nunca mais ocorra um regime excepcional de autoritarismo, como a ditadura militar que vivemos e combatemos, e seu filhote retardado, o nazifascismo bolsonarista.

      Só teme o passado quem tem contas a ajustar com a justiça e a história!

      A impunidade é chocadeira de novos golpes e intentonas, a punição aos golpistas de ontem e de hoje pode assegurar ao país uma democracia sólida. Porém, enquanto houver temor dos fardados, o exercício da cidadania será claudicante.

      Na atualidade esse temor já não existe, as FFAA estão desmoralizadas como instituição comprometida com a democracia, contudo, as reformas estão atrasadas. O Ministério da Defesa vive um mundo paralelo.

      61 anos do golpe de 1964 e as sequelas ainda persistem, os fantasmas do passado ainda vagam pelas nuvens e subterrâneas da nação.

      Golpes não caem do céu! Tem o antes, o durante e o depois.  

      Matam, dilaceram, queimam, afogam e somem com opositores, é a quinta-essência da crueldade e da destruição da plataforma civilizatória, com efeitos perenes, como no Brasil. 

      31 de março e 1º de abril devem ser dias para lembrar, com indignação, os traumas produzidos em todos os tecidos da nação, até o presente não sanados, pela vacilante implementação da justiça de transição.

      Este sexagésimo primeiro ano do golpe de 64 deve ter como palavra de ordem “reformas no sistema”, para impedir que golpes voltem a acontecer.

      Sugiro retomarmos o debate das 29 Recomendações da Comissão Nacional da Verdade, atualizando-as frente ao cenário atual.

      A teoria da conspiração não é teoria no Brasil, é prática de uma realidade histórica dos golpistas de sempre, os 3 êmes: militares, mídia, mercado e o i de imperialismo.

      A destituição do presidente João Goulart foi um golpe ao país e o fez retroceder, pois ainda hoje as reformas de base, defendidas por Jango, Brizola, Arraes, Julião, estão carentes de realização. 

      Viva a Democracia, conquistada com muita luta, cujo chão foi palmilhado e regado, com sangue, lágrimas, sequestros, prisões, torturas, assassinatos, banimentos, e heroísmo de uma geração que permanece viva e deixa o seu legado para os filhos, netos, enfim, gerações sucessivas que carregam o nosso DNA político.  

      Embora a história não permita, ouso dizer que sem o golpe de 1964 o Brasil seria uma grande potência social-democrática.

      Basta fazer um exercício do que cada reforma de base do governo Goulart teria produzido, chegar-se-á ao país que o Brasil teria sido e seria na atualidade. 

      Golpes são imperdoáveis, imprescritíveis as responsabilidades dos autores, e irrecuperáveis as suas consequências deletérias.  

      Os militares e os civis golpistas de 64 devem à nação brasileira ainda sermos um país dependente, em fase de subdesenvolvimento.

      Golpes nunca mais, anistia a golpista jamais. 

      Obrigado ao filme Ainda estou aqui, o qual, através de uma fresta, está fazendo a sociedade conhecer a escuridão macabra da ditadura. 

      Meus companheiros de movimento estudantil e de organizações revolucionárias, que foram eliminados, desaparecidos, permanecem em minhas lembranças e sentimentos, como fermento à luta por memória, verdade e justiça.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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