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    Boaventura de Sousa Santos

    Sociólogo português

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    A liliputização da humanidade

    Como a desproporção de poder e a banalização da desigualdade estão miniaturizando a humanidade diante das forças globais do capitalismo e da tecnologia

    Representação de Lilipute, ilha imaginária do romance 'Viagens de Gulliver', de Jonathan Swift (Foto: DALL-E/IA)

    As escalas são convenções sobre proporcionalidades e sobre as relações entre elas. A ideia da escala humana é antiga e está presente em todas as culturas. Refere-se às proporcionalidades do corpo humano e às deste com tudo o que o rodeia. Marcos Vitruvius, arquiteto romano do século 1 a.C., foi quem fez a primeira teorização da proporcionalidade humana, que haveria de desembocar no Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. Mas houve sempre quem mostrasse a relatividade das escalas e a racionalidade que cada uma gera, uma vez que não há fenômenos, há escalas de fenômenos. Muitos se recordarão de As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e dos seus encontros com muitos povos, entre os quais os liliputianos, seres humanos de quinze centímetros de altura (1726).

    Com a emergência da época moderna, com a expansão colonial europeia e com o capitalismo, sobretudo a partir do século XIX, a escala humana passou por uma mutação importante: a mudança de relação entre a escala humana e a escala das transformações que os humanos eram capazes de realizar no mundo. A partir daí, as escalas do universal (ligada ao racionalismo renascentista e ao Iluminismo) e a do global (ligada à expansão colonial e ao capitalismo) passaram a ser as escalas dominantes, embora os seres humanos concretos continuassem a viver a sua vida sempre numa escala particular e local.

    Podemos dizer que a primeira liliputização dos humanos ocorreu então. Foi uma liliputização diferente da de Swift. Enquanto este trata como iguais e de igual racionalidade os seres de 15 centímetros e os de um metro e sessenta ou setenta, a época moderna passou a desvalorizar não só povos inteiros com que os povos europeus se encontraram, como sub-repticiamente desvalorizou os seres humanos comuns na Europa e fora da Europa em relação aos seres humanos especializados nas escalas universais e globais (cientistas, políticos, técnicos, navegadores, comerciantes).

    Nos últimos cem anos, assistimos a dois movimentos aparentemente contraditórios que mais desestabilizaram a escala humana. Por um lado, a física, a química e depois a biologia levaram o pequeno aos confins do ínfimo. Ao atômico, ao subatômico e, por último, ao quântico. Na ciência da computação, o movimento foi do bit ao qubit. A viagem ao inimaginavelmente ínfimo foi empreendida para atingir o inimaginavelmente grande em termos da energia e do poder transformador da realidade que pode gerar. Dada a competição instalada entre quem produz o mais poderoso computador quântico, o Cântico dos Cânticos de Salomão do Antigo Testamento em breve será superado em grandeza (ainda que não em beleza) pelo Quântico dos Quânticos! As viagens espaciais e as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki representam os dois polos do imenso poder criativo e destrutivo resultante da superação da escala humana. Esta explosão do poder tem tido múltiplas consequências. Vou salientar algumas que apontam para a fatal miniaturização da escala humana.

    A dronificação do poder e a resistência - Os drones militares são aqui usados como metonímia de uma forma de poder tão poderosa que não tem de se preocupar com retaliações por parte dos seus inimigos, não imagina ter de se preparar para uma derrota, nem celebra a vitória, porque a vitória é um rotineiro dia de trabalho em frente a um computador. Não tem heróis porque os seus heróis são programas de computador que não conhecem os seus superiores. Representa o paroxismo da guerra irregular, que viola todas as principais convenções da guerra.

    As principais características desta forma de poder são: relações de poder extremamente desiguais; nenhuma obrigação de seguir as mesmas regras do jogo que o adversário; segredo, velocidade, superioridade tecnológica, tempo eletrônico, informalidade e surpresa como modos de operação para assegurar a maior destruição ou acumulação possível, dependendo das circunstâncias; danos colaterais como uma ideia obsoleta. O poder dronificado é uma forma de poder que não teme minimamente os seus inimigos ou rivais, ostentando sem pudor a sua suposta invulnerabilidade. A sua forma de estar na história é conceber-se a si próprio como fora da história. Funciona através do tempo eletrônico, com uma lógica de durabilidade eterna e ultimamente atingiu, com a inteligência artificial, uma potência quase sem limites.

    A dronificação do poder ocorre não só nos meios militares e nos campos de batalha dos países ou populações-alvo, mas também em muitos outros domínios da vida social. Com adaptações, encontramos o mesmo padrão para o exercício do poder em áreas tão distintas como a impunidade generalizada da brutalidade policial e a corrupção política; mercenários e grupos paramilitares contratados para expulsar camponeses desarmados ou povos indígenas dos seus territórios, por assassinato, se necessário, para disponibilizar terras para a agricultura industrial ou megaprojetos de "desenvolvimento"; estados de exceção não declarados para proporcionar privilégios excepcionais a grupos poderosos ou infligir um sofrimento horrendo a grupos vistos como inimigos.

    Os domínios sociais em que a dronificação do poder é provavelmente mais visível são o capital financeiro e as grandes empresas de comunicação social. No mundo financeiro global, o capital financeiro autorregulado confere aos seus principais atores a capacidade de lançar sobre um país-alvo os drones da avaliação do rating de crédito ou taxas de juros especulativas para sufocar a sua economia e provocar ou aprofundar a sua insolvência. Como resultado, mesmo não sendo detectável uma deterioração súbita dos indicadores da economia real, grandes setores da população podem ver a sua subsistência dramaticamente afetada de um dia para o outro por decisões opacas tomadas por mega-atores em grande parte desconhecidos, invisíveis e irresponsáveis que pilham os seus salários, pensões e poupanças ou lhes tiram as suas casas.

    No domínio dos meios empresariais, a crescente concentração do poder dos meios de comunicação oferece aos seus proprietários a prerrogativa da impunidade, impondo agendas políticas e cancelamentos que os favorecem, apesar de não terem qualquer mandato democrático ou provas, com consequências devastadoras para a grande maioria da população.

    Perante este tipo de poder, a escala humana da resistência sente-se profundamente miniaturizada, e, com ela, a própria humanidade. A desproporção é de tal ordem que nem a parábola de David e Golias parece adequada. Não se trata de a humanidade ser infantilizada. Ela está íntegra, pensa, sente, vive normalmente, mas em miniatura, quando comparada com tudo o que sucede à sua volta. O que se passa à sua volta também é humanidade, mas, vista a partir da sua existência liliputiana, é tão racional quanto monstruosamente desumana – ou super-humana. Em qualquer caso, não corresponde à escala humana.

    A desproporção - A imensa riqueza dos bilionários do mundo, o 1%, a rapidez com que a adquirem, a ostentação com que a exibem e o poder não apenas econômico que a riqueza lhes proporciona, é algo monstruoso para a quase totalidade da humanidade, os 99%, que trabalham de modo cada vez mais precário e sem direitos para, no melhor dos casos, poderem alimentar a família durante todos os dias do mês. Além disso, enfrentam riscos como a brutalidade policial, os roubos praticados por gangues que proliferam nas periferias das cidades e a impossibilidade de custear tratamento médico por falta de dinheiro para seguros de saúde.

    Esta desproporção e a inexistência de qualquer mecanismo realista que a diminua – seja tributação progressiva, nacionalização ou direitos sociais – podem levar ao desespero e à violência. Terá sido esse o caso do recente assassinato em Nova York de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, uma grande empresa de seguros de saúde? A senadora Elizabeth Warren, crítica eloquente do sistema de saúde dos Estados Unidos, pôs o dedo na ferida quando afirmou:

    “A resposta visceral de todos quantos neste país se sentem ludibriados, espoliados e ameaçados pelas práticas mesquinhas das suas companhias de seguro devia servir de aviso para quem se ocupa dos serviços de saúde. A violência não é nunca a resposta, mas as pessoas não podem ser forçadas a tudo. Isto foi um aviso; se se força demasiado as pessoas, elas deixam de acreditar na capacidade do governo para fazer mudanças, deixam de acreditar na capacidade de quem está à frente dos cuidados de saúde para fazer mudanças e começam a tomar conta da situação de formas que, em última análise, serão uma ameaça para toda a gente.”

    Apesar de mais tarde a senadora ter sido “obrigada” a retirar esta declaração, ela está validada pela história. Muitos dos assassinatos levados a cabo pelos anarquistas europeus de finais do século XIX e do início do século XX partiam da raiva contra os titulares de riqueza ou de poder considerados discricionários e escandalosos.

    Lembrar esta história é importante porque a violência anarquista abrandou a partir do momento em que os sindicatos foram autorizados, os trabalhadores começaram a ter melhores salários e mais direitos e quando o Estado social começou a emergir. Aparentemente, esta história não é conhecida ou não é relevante para quem está agora particularmente preocupado com a segurança dos CEOs de grandes e poderosas empresas, cujos lucros escandalosos crescem na medida do sofrimento e abandono de milhões de pessoas sujeitas a essas empresas.

    Segundo a reportagem no Politico de 13 de dezembro, as iniciativas preventivas focam-se sobretudo em novas tecnologias e mais recursos humanos de segurança contra o que estranhamente designam como terrorismo doméstico.

    No Brasil, esta desproporção atinge outra dimensão não menos dramática. Apesar do bom desempenho do governo Lula dentro de todos os condicionalismos, uma pesquisa Quaest de 4 de dezembro revela que os agentes do mercado financeiro preferem de longe (em mais de 80%) um candidato de extrema direita ao candidato Lula da Silva. A atual especulação contra o real mostra que não estamos perante meras intenções de voto. Estamos perante políticas já em curso para destruir a democracia brasileira.

    Nada disto exige má-fé ou “ideologia reacionária” dos inquiridos. Trata-se apenas de seguir a racionalidade dos “mercados”, como agora se chama o capitalismo. Mais do que nunca, o capitalismo de hoje prefere o caminho para a ditadura como sendo o mais curto com vista a garantir a rentabilidade dos rentistas.

    Banalização - Banalizar é aceitar algo como pouco significativo, nem positivo nem negativo. Corresponde a um estado psíquico de indiferença e, em última instância, de cinismo. Dois exemplos entre muitos ilustram o que penso.

    A destruição do Oriente Médio por parte de Israel, e muito especialmente o genocídio de Gaza e a indiferença de quem lhe poderia pôr fim, é um ataque particularmente violento à nossa humanidade, que se repete diariamente. Onde estão a ONU, a Organização Mundial da Saúde, o Tribunal Penal Internacional, a Liga Árabe, a União Africana, a União Europeia, o Papa? As imagens passam rápidas para as vermos sem nos vermos refletidos nelas. Para que não possamos sequer imaginar que é a nossa humanidade que está ali a ser reduzida a escombros e que as sacas de plástico brancas (cada vez mais pequenas) lançadas em valas comuns levam nelas fragmentos da nossa humanidade.

    Aquelas valas são comuns a todos nós. Somos os liliputianos ante um Gulliver degenerado. Imagens grotescas do mais vil brutalismo animalesco.

    A segunda ilustração é o recente relatório do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (Department of Housing and Urban Development) do governo norte-americano, segundo o qual a população sem-teto cresceu 18% em relação ao ano anterior. Esta subida é de 39% para famílias com crianças. Estamos a falar de mais 770.000 pessoas.

    Este escândalo, a ocorrer no país mais rico do mundo, não é notícia em nenhum meio de comunicação de grande audiência. A raiva dos sem-teto fica confinada nos patamares dos prédios em que se abrigam. E, pelo contrário, os melhores propagandistas dos EUA, como por exemplo Fareed Zakaria, ao mesmo tempo que reconhecem alguns problemas internos, banalizando-os como notas de rodapé, proclamam a vitalidade do império e a sua capacidade para derrotar todos os possíveis rivais.

    A resistência dos liliputianos - Lemuel Gulliver visitou muitos povos em suas múltiplas viagens, até que um barco português o resgatou e trouxe até à Europa. Não foi um regresso feliz, pois, uma vez de volta à sua terra natal, Gulliver preferiu passar os dias a conversar com cavalos a conversar com humanos.

    Mas a humanidade, que tem vindo a ser liliputizada por múltiplos mecanismos de escala desumana, não se pode dar ao luxo de passar a conversar só com animais, plantas ou paredes, embora, por vezes, não pareça haver outra opção.

    Mas, afinal, os liliputianos de Swift conseguiram imobilizar Gulliver quando um dia decidiram fazê-lo. Para isso, uniram-se, juntaram muita gente, muitas escadas, muitas cordas e dedicaram muito tempo e esforço a essa tarefa. Realizaram-na com êxito.

    Na época moderna, e sobretudo depois do século XIX, as tarefas de resistência foram entregues a especialistas, fossem eles sujeitos históricos, intelectuais de vanguarda ou partidos revolucionários, e os instrumentos que utilizaram foram pouco diversificados e, exceto em alguns momentos históricos, não conseguiram reunir maiorias.

    O pensamento crítico eurocêntrico tem de viajar pelo mundo, conhecer outros povos, outras lutas, outras narrativas, outras estratégias e escalas antes de poder aspirar a ter consigo gente e forças necessárias para imobilizar o Gulliver do nosso tempo, o 1% e tudo o que o torna possível. Parece ridículo, mas na lógica invertida das escalas dominantes (riqueza primeiro, humanidade depois), 99% é menos que 1%.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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