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    Alfredo Attié

    Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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    A mulher visível e o espírito da política

    'Mudança dos costumes das mulheres influencia o regime de governo. Tudo está conectado: o despotismo, à servidão das mulheres; ao espírito da política'

    Atos contra o estupro e a parte interna da Câmara dos Deputados (Foto: Marcha Mundial das Mulheres I Rovena Rosa / Agência Brasil / Lourival Augusto / Agência Câmara)

    1. Ecoou fundo, no coração de brasileiros e brasileiras, o nome de Fernanda Torres, pronunciado pela atriz Viola Davis, no anúncio da vencedora da categoria de melhor atriz do prêmio Globo de Ouro, em janeiro deste ano. A atriz brasileira concorreu com artistas veteranas do cenário hollywoodiano, as inglesas Tilda Swinton e Kate Winslet, a australiana Nicole Kidman e a norte-americana Angelina Jolie, além da canadense Pamela Anderson. A vitória tem muitos significados, além, evidentemente, da consagração pessoal da atriz, filha de Fernanda Montenegro, que foi indicada ao mesmo prêmio, em 1999, ano em que venceu a australiana Cate Blanchett. Como lembrou Fernanda Torres, em seu breve e inspirado, muito embora improvisado discurso, a arte pode resistir ao tempo e a situações altamente adversas, da mesma maneira como lutara bravamente a personagem interpretada por ela, em Ainda Estou Aqui, filme dirigido com maestria por Walter Salles, em roteiro baseado no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva. Não demoraria muito para que, neste mês de março, o próprio filme viesse a receber o Oscar de melhor filme em língua não inglesa.

    O livro retrata a trajetória da mãe do autor, a advogada e defensora dos direitos humanos e da causa de vítimas desaparecidas por ação do regime ditatorial, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, viúva de Rubens Paiva, político assassinado, de modo brutal, por mais uma ditadura civil-militar brasileira, tão covarde que sequer assumiu as consequências de seus crimes. É importante lembrar que o prêmio foi concedido pela Golden Globe Foundation, os vencedores sendo escolhidos por representantes do jornalismo cultural e de entretenimento, norte-americanos e estrangeiros.

    2. Esse fato de a premiação ser concedida por jornalistas levou-me a comparar o respeito que a imprensa devotou a Fernanda Torres e ao filme, com o modo como a imprensa brasileira tem tratado Rosângela Lula da Silva, a Janja, mulher do atual Presidente da República e o próprio governo, se não a política brasileira, em geral.

    Janja tem sido alvo de ataques frequentes da imprensa corporativa e deselegante nacional. Esses ataques não se dirigem apenas contra ela, mas visam igualmente a insinuar a fraqueza do governo, que seria refém da influência que ela teria sobre a vontade do próprio Presidente. Ainda mais grave foi a manifestação de uma entidade internacional, poucos dias após a premiação da atriz brasileira, cobrando transparência (sic) na atuação da atual Primeira-Dama. Essa entidade, chamada de Transparência Internacional, publica, todos os anos, um relatório e um ranking relativo ao índice de percepção de corrupção (sic) nos vários Países do mundo.

    3. A junção desses dois termos, transparência e percepção, já é algo muito preocupante. Transparência é algo bem diferente de visibilidade A transparência decorre de uma concepção autoritária e, no limite, totalitária do mundo e das relações que nele se desenvolvem. A transparência faz dos seres humanos meros objetos de uma observação que, em si mesma, não se põe esse requisito de ser transparente, mas se arroga o privilégio de examinar o mundo, as coisas e as pessoas como mero objetos, sem lhes dar direito de se apresentarem como são, nem de dar conta de suas ações e paixões, de se expressarem e concederem compreensão e justificação de seu modo de agir público, de seus interesses e razões. A exigência da transparência é aquela a que se sujeitam as pessoas que têm seus corpos e os objetos que carregam escaneados, por meio de aparelhos postos em aeroportos e outras repartições públicas e privadas do mundo.

    Já percepção é uma palavra que diz respeito a um julgamento subjetivo de uma situação, de algo ou de alguém. Percepção não é conhecimento, não exige demonstração nem justificação. Carente de objetividade, é apenas uma impressão sobre aquilo que se observa. O resultado que se tira dessa observação superficial é sempre baseado em experiências passadas, vividas ou assimiladas por ouvir dizer. A percepção, em geral, é uma impressão vicária. Representa-se a partir daquilo que o contexto sugere e não com fundamento numa avaliação objetiva. A percepção carece de método. Indagar da percepção de um assunto é algo como querer saber o que se acha a respeito dele. E esse achar, na sociedade de massas, não passa de um julgamento manipulado, em que estão presentes vários preconceitos e são escondidos outras tantas dimensões intermediárias igualmente preconceituosas.

    O índice de percepção de corrupção, como qualquer indicador baseado na percepção, é apenas um instrumento de manipulação da opinião pública, sem valor científico algum. Não serve para aferir se existe ou não corrupção. Vale apenas como evidência de um preconceito. Para saber qual é esse preconceito, basta observar o ranking que a entidade que se diz transparência apresenta todos os anos: é o preconceito de que alguns Países são melhores do que os outros, que alguns povos são superiores aos outros.

    Vejam esse mapa, criado pela Transparência. Pelas cores já é possível perceber o efeito do preconceito:

    mapa
    Mapa. Foto: Reprodução

    Esses Países e povos que estariam acima no ranking, são justamente, salvo uma ou outra exceção, que tem, evidentemente, justificativa em interesse dos Países superiores – a facilidade de fazer submeter os seus interesses e o seu modo de fazer negócios -, os Países e povos que se afirmam como mais desenvolvidos e melhores. Que sempre se afirmaram assim diante dos demais povos, que consideram inferiores e piores. Esse índice reforça uma cultura de colonização, discriminação, desigualdade e hierarquização social, mesmo de racismo. O índice é tão pouco objetivo que nós, que sofremos essa discriminação, podemos dizer exatamente o oposto do que ele conclui. Podemos dizer que os povos que mais percebem a pretensa corrupção são melhores do que os outros, que não a o percebem, são mais críticos. E, nesse caso, o ranking está de cabeça para baixo, pois, nos Países em que o povo diz perceber corrupção, a realidade estaria mais à mostra, permitindo uma fiscalização mais efetiva. Os outros, vivem uma ilusão de honestidade, a corrupção passa despercebida, ela é, pode ser, mais sutil e mais velada, envolve critérios mais graves: a corrupção passa por honestidade diante de um povo que pensa usufruir de benesses maiores. Nesses Países estão as sedes das grandes corporações internacionais, estão os governos que decidem sobre oprimir e explorar outros Países e outros povos, está a tecnologia das armas mais letais, está a manipulação de técnicas de dominação mais profundas e mais amplas, de manipulação da opinião pública. Esse índice não apenas reforça uma visão distorcida de mundo, como surge como um dos ingredientes que ajudam a fazer crescer a discórdia no mundo e, pior do que isso, comparecem na receita que gera a crise da democracia e o crescimento do desejo autoritário. Por qual motivo se deve dar aos povos inferiores e piores a democracia, parece indagar esse índice. Ele quer convencer de que a corrupção é estrutural nesses lugares e desses povos. Ele aponta para um profundo desrespeito pela igualdade – princípio básico da democracia.

    Transparência e percepção, portanto, casam-se para oferecer ao mundo presente a velha solução colonial, de que sempre foram sujeitos a Europa e os Países que se apresentam como seus herdeiros. O Mundo que se diz Ocidental – outra ficção.

    4. Muito bem, quis fazer essa breve incursão pelos descaminhos da transparência para mostrar como essa é seletiva. Tão seletiva quanto a grande imprensa corporativa, ao atacar de modo tão vil tanto Janja quanto o Governo liderado, em coalizão democrática, por seu marido, o Presidente Lula. Essas desejam influenciar uma percepção de que esse Governo não é bom, não tem força, que, ainda, omite informações e não é transparente, em conclusão, seria corrupto ou desonesto.

    O que se opõe à transparência e à percepção, que, como vimos, são duas ferramentas de manipulação totalitária, que visam à ilusão e à falsidade? À transparência opõe-se a visibilidade; à percepção, a certeza e a segurança da convicção.

    Ao quererem passar a percepção, contra Janja e contra o Governo, que não têm transparência nem firmeza, querem sitiar Janja e Governo, jogá-los contra a parede e torna-los passivos, inatuantes. Ao dizerem que não são transparentes, querem lança-los à invisibilidade, torna-los irrelevantes.

    5. O termo e o título primeira-dama são infelizes e absolutamente fora de moda. Desatualizados em relação ao que é o Mundo de hoje, em geral, e o Brasil, em particular. Como aceitar que se diminua a existência de alguém, ao lhe dar um título que desmerece sua própria autonomia? Basta olhar para os resultados do censo mais recente para perceber o papel que a mulher tem em nossa sociedade. Boa parte dos lares são encabeçados por mulheres, que trabalham e cuidam de sua família. Na maior parte das famílias, há um compartilhamento de deveres e responsabilidades com o sustento da casa – muito embora sem a devida correlação de direitos. Um País que já teve uma Presidenta, tem Ministras, mulheres Parlamentares, trabalhadoras e empresárias, mulheres juristas, nas profissões e nos campos público e privado, pode-se dar ao luxo de perpetuar, na Presidência da República, uma ilusão de inexistência? É ainda possível entender que o papel da companheira ou do companheiro de quem exerce a liderança de Governo ou de Estado é apenas decorativo? Que essa pessoa, por estar ao lado de alguém que tem uma função tão relevante, limite-se a sorrir e a comparecer em compromissos sociais e oficiais apenas para dar o ar de sua presença. Ou, o que dá no mesmo, ser desprezada pela linguagem social?

    Parece uma ilusão muito cômoda, por outro lado, pensar que quem está ao lado da pessoa que governa não tenha um papel relevante no exercício dessa função de governar, não tenha influência, ou que essa influência tenha de ser abafada, sufocada, em nome de princípios e valores que se manipulam ao bem querer de quem pronuncia seus nomes. Princípios e valores tão duvidosos quanto a transparência, tão relativos quanto aqueles pelos quais clama a grande mídia, nesse ponto aliada das redes privadas, que se dizem sociais – o diz-que-me-diz da opinião manipulada de pessoas influenciadoras digitais e consumidoras da internet.

    Qual casal verdadeiro existe, no mundo cotidiano, em que o caminho de um e outro não se dá por meio de apoio e influência recíproca? Quereria a mídia e a crítica de Janja e do Governo que houvesse uma atuação hipócrita, disfarçada, para o bem de aparências que não mais se justificam nem se compreendem?

    6. Se percorrermos a história das chamadas Primeiras-Damas e de outras mulheres protagonistas nos vários Governos, após a recuperação democrática, vamos notar fatos inquietantes, de que a grande mídia se esquece. Por exemplo, o papel relevante e de protagonismo fundamental de Ruth Cardoso, Marisa Letícia, Marina Silva, Matilde Ribeiro, Dilma Rousseff, Marta Suplicy, Luiza Erundina, Marielle Franco, entre tantas. Essa era democrática deixa o legado da primeira Presidenta brasileira, que, no entanto, foi ofendida de modo vil, por uma multidão enricada, na abertura da Copa do Mundo, sofreu um impeachment, no mínimo injusto, início da construção de um golpe de Estado, cujos principais artífices estão sendo, somente agora, processados.

    O regime anticonstitucional, pós-impeachment, trouxe a primeira-dama evangélica, o fanatismo e a busca frequente de protagonismo no poder. Tudo desculpado por essa mesma grande mídia, que mesmo cogitou da viabilidade de uma candidatura à Presidência, sem maiores críticas.

    Agora, acompanhando Lula, Janja busca um espaço legítimo de atuação, comprometida em colaborar na construção da imagem e na realização do projeto constitucional do novo Governo. A imprensa lhe tem devotado críticas injustas e exageradas, chegando mesmo a dizer que, para o trabalho importante e voluntário que desempenha, não teria sido eleita. Como se eleição fosse o único meio de alguém buscar prestar de forma honesta serviço público no País. Sem dar conta de suas contradições, essa mesma imprensa busca construir pesquisas de opinião, no sentido de desvalorizar o papel desempenhado por ela, na busca de implementar um modo de comunicação mais atualizado ao governo e de ter opinião e, portanto, certo protagonismo, em áreas importantes para essa imagem mais atualizada: ministério das comunicações, das mulheres, da igualdade racial, e direitos humanos. Nessa pesquisa, faz anotar uma pretensa queda de popularidade de Janja, em comparação com a popularidade do Governo. Ocorre que Janja busca, no exercício legítimo de sua presença, colaborar e não popularidade. Se a popularidade do Governo melhora, tem sua missão cumprida, pouco importando a popularidade própria, até porque não foi candidata e não necessita dessa popularidade.

    A visibilidade feminina é um problema em nossa sociedade.

    Fernanda Torres e Fernanda Montenegro se fizeram visíveis em seu trabalho. Janja busca desempenhar seu trabalho e torna-se visível por causa disso.

    7. O mês de março assistiu a algumas cenas importantes para destrinchar a razão oculta dessas críticas.

    O Presidente Lula escolheu, talvez pela primeira vez em nossa história política, uma mulher para realizar uma atividade extremamente delicada e importante de qualquer governo. Nomeou a atual Deputada Federal e Presidenta do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffman, Ministra-Chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, que é a principal função de articulação política do Governo. Nem é preciso dizer que isso se dá em um contexto bastante delicado, uma vez que o Presidente lidera uma complexa coalizão democrática, exercendo seu poder com altivez para a construção constante de apoio parlamentar para a realização dos projetos postos pelo Orçamento Público, isto é, para a implementação de direitos, deveres e realização de políticas públicas constitucionais. Essa grande mídia, porém, pretendendo desvalorizar decisão de tal importância, na história política do País, pôs-se a desmerecer a iniciativa presidencial, à guisa de o criticar por frase absolutamente irrelevante, sobretudo se comparada à relevância de sua decisão e da atribuição dada à Ministra Hoffmann.

    As outras duas cenas foram praticamente simultâneas e celebraram a importância de duas ex-Prefeitas da Cidade de São Paulo, Luiza Erundina e Marta Suplicy.

    Em seu aniversário de oitenta anos, Marta foi homenageada por várias autoridades e personalidades políticas de relevância atual no Brasil. Ali estavam não apenas o Ministro da Fazendo, Fernando Haddad, que também foi Prefeito de São Paulo, mas, sobretudo, o casal Lula e Janja, cuja presença serviu para salientar o papel extremamente importante que a ex-Prefeita, ex-Senadora, ex-Deputada, ex-Ministra, ex-Secretária Municipal que disputou a última eleição municipal, na chapa liderada por Guilherme Boulos, representa na vida política brasileira.

    Em evento realizado em auditória da PUC.SP, Luiza lançou o projeto Sementes da Esperança, que busca a recomposição da política de base, à qual a Deputada Federal, em seu oitavo mandato consecutivo, ex-Prefeita, ex-Ministra, ex-Deputada Estadual, ex-Vereadora e ex-Secretária Municipal, sempre esteve ligada. Ali estavam políticos importantes, como, entre tantos, José Genoíno, Eduardo Suplicy, Nabil Bonduki, Simão Pedro e representantes de movimentos e coletivos, para endossar a tentativa de dar vida ao princípio da democracia participativa posto na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, além do estatuto da Cidade e muitas outras leis.

    Claro que a grande mídia não deu a esses dois eventos a importância que merecem, por seu conteúdo democrático. Num deles, celebrava-se a presença do povo no poder, por seu caráter atual e garantidor da democracia contra a recente tentativa de, mais uma vez, subverter o regime constitucional e implantar nova ditadura, herdeira daquela de 1964/1986, em nosso País. Noutro, a importância do povo, titular do poder, na busca de resgatar o espírito de participação e de exercício direto do poder, pela organização viva das forcas políticas, garantidora do impulso democrático. Que também se fez como modo de garantir a conexão fundamental do regime constitucional - o Estado Democrático de Direito - com a sociedade que representa e que lhe concede fundamento.

    8. Janja, Gleisi, Marta, Erundina, Fernandas são apenas alguns nomes que fazem

    lembrar de tantas mulheres que, a duras penas, conquistaram a visibilidade e o reconhecimento público em nosso País.

    Sua presença e os eventos de que foram protagonistas nos lembram de que essa posição de destaque é fundamental para que continuemos nosso caminho de defesa e constituição democrática.

    Sua visibilidade e a defesa e a afirmação dessa visibilidade devem ser o assunto de todos os dias, na resistência contra as forças antidemocráticas que desejam impedir seja a ação de Governo, seja a ação participativa do povo, mas, fundamentalmente, a realização da conexão essencial entre Governo e povo, entre aquela ação e esta, que são a verdadeira razão de existência de um regime em que o poder pertence ao povo e é exercido por representantes eleitos e diretamente.

    Retornando ao início de meu artigo, para concluir, as críticas a Janja são apenas a reiteração dos obstáculos que as velhas e novas oligarquias desejam impor ao exercício efetivo e democrático do poder.

    A transformação afirmativa da postura e do pape da mulher, assim como sua participação efetiva e como protagonista da vida política são, como antevia Montesquieu, a ocupação da vida pública por um novo espírito, aquele em que a igualdade, a liberdade e a solidariedade têm seu tempo de realização.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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