Como a esquerda pode reagir?
“É urgente investir em formação cidadã e política que não seja doutrinária, mas libertadora, usando as ferramentas do nosso tempo", diz Emerson Barros de Aguiar
Uma leitora recentemente me acusou de recitar o óbvio em meu artigo sobre o uso da inflação pela Direita e Extrema-direita como ferramenta de expropriação econômica e de sabotagem política, e disse que o que realmente interessa é a proposição de saídas e de alternativas de combate. Eu acho que ela está certa.
De fato, num momento em que a direita e a extrema-direita dominam tanto as mídias tradicionais quanto as novas mídias digitais, a esquerda precisa repensar sua atuação em várias frentes, sendo a primeira e, também, a mais urgente, a digital.
A primeira providência, nesse sentido, é incrementar a criação de ecossistemas de comunicação alternativa, a exemplo do 247 e do ICL, que são plataformas bem-sucedidas, independentes e com credibilidade, linguagem acessível e presença digital forte e marcante.
Entretanto, para que essas plataformas alternativas sejam mantidas, é preciso fortalecer modelos de financiamento recorrente, como clubes de apoio e assinaturas simbólicas, que garantam autonomia financeira e sustentabilidade de longo prazo. É necessário também estimular parcerias entre veículos alternativos, coletivos de mídia, produtores de conteúdo e influenciadores, formando uma rede orgânica de troca de conteúdos e audiência.
Os ecossistemas de comunicação de esquerda têm de ter uma presença multiplataforma, que permita uma atuação para além dos sites. YouTube, Instagram, TikTok, Telegram e podcasts são canais estratégicos para atingir diferentes perfis e faixas etárias.
Com o investimento contínuo em tecnologia e inovação, e na melhoraria de aplicativos e sites, adotando inteligência de dados e impulsionando conteúdos por meio de algoritmos de redes sociais, essas plataformas progressistas serão condições de competir com as mídias de direita.
É preciso usar ferramentas de big data e de inteligência artificial para mapear bolhas, identificar tendências e antecipar narrativas, e falar com diferentes públicos de maneira personalizada, como já faz a extrema-direita.
Não basta estar nas redes, é preciso coordenar campanhas, saber reagir a fake news e organizar respostas rápidas.
Para que novas iniciativas surjam, é necessário, contudo, que sejam oferecidos cursos e mentorias em jornalismo digital, marketing de conteúdo, audiovisual e análise de dados para as equipes envolvidas nesses projetos. Fundações partidárias, sindicatos, ONGs e grupos privados progressistas poderiam prover esta formação. Isso pode ser feito por meio de parcerias estratégicas, apoio institucional e técnico, além de incentivo à produção de conteúdos que conectem temas relevantes com a linguagem e estética das redes.
Uma forma eficaz é oferecer suporte em formações sobre comunicação digital, storytelling e uso de ferramentas de edição, garantindo que os novos influenciadores possam profissionalizar seus canais. Também é importante reconhecer a diversidade de pautas e estilos. Ao apoiar e fortalecer influenciadores digitais, que conseguem dialogar com diferentes públicos, inclusive fora da bolha tradicional, talvez a esquerda pare de apanhar tanto na arena digital.
Campanhas colaborativas, impulsionamento de conteúdos, acesso a dados de engajamento e redes de apoio entre criadores também são formas práticas de fortalecer essa atuação. A chave é compreender que o algoritmo premia constância, criatividade e engajamento. Os influenciadores melhor preparados e apoiados têm maior chance de furar bolhas e formar novas consciências.
É interessante igualmente apostar em vídeos "virais", curtos, memes e linguagem atual para disputar o espaço das redes. Como o cérebro dos adolescentes e jovens ainda está em desenvolvimento, especialmente o córtex pré-frontal, a área responsável pela atenção, planejamento e controle dos impulsos, esse público não tem muita paciência com discursos e procura, no mundo digital, uma gratificação emocional imediata, através de vídeos rápidos e objetivos. O uso constante das redes digitais e a exposição contínua a conteúdos curtos, rápidos e altamente estimulantes reforçam esse padrão, dentro de um ambiente que molda e coloniza o cérebro, condicionando-o a recompensas rápidas, e reduzindo a sua capacidade de manter o foco em atividades prolongadas e menos dinâmicas. Vídeos curtos, memes e conteúdos visuais impactantes conseguem capturar e manter a atenção desse público com muito mais eficácia do que formatos tradicionais e longos.
Na militância digital, podem ser utilizadas plataformas como Mastodon, Telegram e até mesmo o WhatsApp, desde que com estratégia, inteligência e mobilização coordenada.
Em termos de conteúdo, o foco tem de ser em narrativas conectadas com o cotidiano e na produção de conteúdos que abordem temas concretos da vida das pessoas,como emprego, educação, saúde, cultura e segurança, sempre com uma linguagem acessível, emocionalmente envolvente e engajante.
A extrema-direita tem vencido pela "emoção". A esquerda precisa reaprender a tocar corações com narrativas que falem de esperança, pertencimento e justiça, resgatando símbolos fortes e causas que unem, como o combate à fome, a defesa da educação pública e da saúde para todos.
Pode-se contar histórias reais de heroísmo popular, de gente comum que resiste, luta e transforma.
Ao investir nesses pilares, os novos ecossistemas de mídia alternativa poderão disputar corações e mentes, com credibilidade e potência narrativa, frente à hegemonia da mídia tradicional e à desinformação sistemática e intencional das redes.
Um exemplo de sucesso recente na comunicação com o público digital é Heidi Reichinnek, uma jovem líder da esquerda alemã, deputada pelo partido Die Linke e vice-líder da sua bancada no parlamento federal. Com forte presença nas redes sociais, especialmente entre os jovens, ela tem se destacado por discursos incisivos e viralizados, ajudando a revitalizar a imagem da esquerda no país.
Outro desafio fundamental, possivelmente ainda mais difícil, é o da reconexão com as bases populares.
As novas pautas da esquerda precisam surgir do cotidiano das pessoas reais. A escuta é fundamental para resgatar o público perdido para a extrema-direita.
É fundamental estar presente fisicamente em comunidades, sindicatos, igrejas progressistas, coletivos culturais e movimentos populares, investindo na formação cidadã e crítica, com cursos, rodas de conversa, podcasts e vídeos didáticos. Nesses ambientes é necessário identificar e formar novas lideranças jovens e periféricas, com linguagem contemporânea e que representem a diversidade real.
O povo tem de estar no centro da transformação.
Um dos maiores desafios para a esquerda hoje é resgatar sua alma popular. Trata-se de mais do que um reposicionamento político, é uma reconversão ética e existencial: reconectar-se com os pobres, com os oprimidos, com os invisibilizados.
Não há transformação social verdadeira sem escuta atenta ao clamor popular. As novas bandeiras não devem ser elaboradas em gabinetes ou entre algoritmos, e sim brotar do chão da vida, das cozinhas, das fábricas, das "quebradas", dos campos e das periferias. É ali que pulsa a verdade concreta da desigualdade, mas também a força, a beleza e a potência da resistência.
A esquerda precisa descer do palanque e se sentar em roda. Estar fisicamente onde o povo vive e luta: nas lutas das comunidades, nos assentamentos e ocupações. É nesses espaços que se semeia a consciência crítica, com a pedagogia do diálogo e da partilha.
É urgente investir em formação cidadã e política que não seja doutrinária, mas libertadora, usando as ferramentas do nosso tempo, mas sem "jamais perder a ternura" e o espírito comunitário.
Formar jovens lideranças enraizadas na realidade, com linguagem que dialogue com as novas gerações, sem abrir mão do compromisso com os pobres e com a justiça.
Só assim poderemos alcançar corações e mentes hoje seduzidos pela lógica do ódio, da violência e do individualismo.
Ninguém liberta ninguém, mas todos nos libertamos em comunhão. Talvez o caminho seja esse, querida leitora.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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