É a história, estúpido!
"Além de reverberar arrogância e prepotência, a ameaça de recuperar o Canal do Panamá alude a três questões centrais nos estudos internacionais", explica Hirst
Um dos abruptos natalinos de Donald Trump foi colocar em questão a soberania do Panamá sobre o Canal do Panamá. O questionamento se fez acompanhar por críticas sarcásticas e mesmo desqualificadoras do governo de Jimmy Carter (1976-80) por ter este negociado e assinado o Tratado do Panamá, que previu a transferência integral do canal.
O entendimento com o governo panamenho em 1977 não apenas reconhecia o seu direito soberano ao canal, mas punha fim a um enclave de 550 milhas ao seu redor, controlada militar, policial e juridicamente pelos americanos desde 1903. Ainda há de ser lembrado que o acordo previu um generoso período de 23 anos para que se desse a plena retirada da presença da bandeira americana e de seus 37,5 mil militares do Panamá.
Antes de tecer comentários sobre as declarações do próximo presidente dos Estados Unidos, faço um parênteses para mencionar um extraordinário livro intitulado “Arde Panamá”, escrito por Juan David Morgan. Trata-se de um romance histórico em torno da conexão entre a secessão colombiana da qual nasce o Panamá em 1903, após a guerra dos mil dias, e as negociações com os americanos que contemplavam a construção do Canal. O livro relata a triste história de uma elite nacional que se fragmenta deixando-se seduzir por supostos benefícios externos em detrimento da unidade territorial de seu país.
Mas voltemos às palavras de Trump sobre o Canal do Panamá às vésperas de sua assunção, no dia 20 deste mês. Os argumentos utilizados se apoiam em dois pilares que, entre outros, dão sustento ao trumpismo. O primeiro, que remete à política interna, consiste no agressivo antagonismo ao partido democrata e todos os feitos de seus governos anteriores. O segundo, à rivalidade com a China e ao sentido de ameaça de sua atuação econômica e logística em espaços de projeção estratégica vital. Neste caso, levanta-se a lebre de que o volume de transações de origem chinesa que utilizam o canal constituem uma ponta de lança para uma presença que poderá ter fins militares. De fato, a China teve um importante papel financeiro na ampliação do canal em 2017, quando o Panamá assinou 19 acordos com a potência asiática que lhe garantiram uma participação relevante em diferentes campos de atividades relacionados ao canal interoceânico. Já em 2021, 22,1% do tráfico marítimo que transitavam pelo Canal se originavam neste país; se bem 72,5% provinham dos Estados Unidos.
Além de reverberar arrogância e prepotência, a ameaça de recuperar o Canal do Panamá alude a três questões centrais nos estudos internacionais.
A primeira, diz respeito ao tema da satisfação territorial e a formação das nacionalidades. Tomam-se em consideração os processos que levam ao alcance da satisfação e quais são os efeitos da insatisfação, seus alcances - regional e mundial. Este constitui um tema trabalhado na literatura geopolítica, especialmente quando são identificadas as raízes da guerra e de tantos expansionismos imperiais ao longo da história. Além das variações de apetite territorial, os castigos impostos desde fora a tais variações podem terminar trazendo consequências contraproducentes. No século XX, o tratado de Versalhes (1919) foi um exemplo contundente neste sentido. Quais virão a ser os exemplos mais notórios no século XXI? A expressão de desejo de Donald Trump sobre o Canal do Panamá (e também sobre o Canadá) já significariam um novo ciclo de expansionismo territorial dos Estados Unidos?
O segundo tema está relacionado ao princípio da inviolabilidade dos tratados, um dos esteios do direito internacional. Neste caso, sublinha-se o valor da palavra lacrada, a sua formalidade jurídica e a certeza garantida de seu cumprimento. Não é novidade que historicamente a cultura política-jurídica americana tenha se mostrado reticente com graus de desconfiança frente aos compromissos que invoquem o direito internacional. É extensa a lista de acordos e tratados assinados e ratificados desde a sua presença como nação soberana na comunidade internacional, mas também é longa a de abandonos, suspensão e mesmo não reconhecimento de compromissos bi e multilaterais. De fato, esta tem sido uma impressão digital especialmente utilizada pelos governos republicanos neste século. A valorização do direito internacional, no passado e na atualidade, tem sido mais presente na narrativa do internacionalismo liberal defendida pelo partido Democrata. Com tais antecedentes, buscar um voto favorável no Congresso a favor da suspensão ou reformulação do Tratado do Panamá, como também do TMEX com os mexicanos, não constitui um cenário inteiramente descabido.
A terceira linha de argumentação suscitada nesta breve reflexão remete à sobre-extensão imperial. Este é um ponto cogitado na literatura que avalia os alcances e limites das políticas externas imperiais contemporâneas, tomando em consideração suas circunstâncias domésticas. Diz-se que impérios autocráticos atravessam mais facilmente a barreira de suas reais possibilidades do que aqueles construídos como projeção de regimes liberais. Seguindo este raciocínio, as democracias seriam mais capazes de encontrar seus limites e assegurar a regeneração e recuperação de valores fundacionais. Esta é, sem dúvida, uma leitura benigna do internacionalismo liberal. Quando calçamos este tipo de interpretação com as expectativas que vão sendo criadas pelo Trump 2.0 nos perguntamos qual será o caminho a ser percorrido pelos Estados Unidos nos próximos anos: o de um avanço autocrático ou de recuo democrático. Este será um governo que cairá na tentação da sobre-extensão? Mesmo desconhecendo a resposta, já sabemos que a América Latina será um tubo de ensaio funcional neste percurso. Da mesma forma, sabemos que a história nos fornecerá importantes pistas para ir encontrando o caminho das pedras.
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