TV 247 logo
      Boaventura de Sousa Santos avatar

      Boaventura de Sousa Santos

      Sociólogo português

      120 artigos

      HOME > blog

      História de uma difamação

      Retirada de capítulo difamatório pela Routledge não impediu onda de cancelamentos contra Boaventura, marcada por disputas internas e guerra midiática

      (Foto: ABR)

      O capítulo difamatório - Em março de 2023, a prestigiada editora anglo-saxônica, Routledge, traz à tona Sexual Misconduct in Academia. Informing an Ethics of Care in the University, uma coletânea organizada por Erin Pritchard and Delyth Edwards. O 12º e último capítulo, da autoria de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom, tinha por título “The Walls Spoke When No One Else Would. Sexual-power Gatekeeping within Avant-garde Academia”. O capítulo, que tinha explicitamente como alvo principal o diretor emérito do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), Boaventura de Sousa Santos (BSS), não respeitava a lei do anonimato do Reino Unido: as duas primeiras autoras indicavam no seu CV qual era o centro de investigação onde tinham trabalhado. Por isso, em setembro de 2023, a editora retirou o capítulo de circulação. Mas, muito antes disso, várias cientistas sociais feministas, colaboradoras do CES de longa data – Gay Seidman (Universidade de Wisconsin-Madison), Linda Gordon (Universidade de Nova Iorque), Ángeles Castaño (Universidade de Sevilha), Alice Kessler-Harris (Universidade de Columbia), Elodia Hernandez (Universidade Pablo Olavide, Sevilha), Mary Layoun (Universidade de Wisconsin-Madison) – tinham se dirigido à Routledge protestando contra a publicação de um texto a fazer-se passar por científico, mas sem qualquer qualidade acadêmica ou ética profissional, com evidentes sinais de ressentimento, má-fé e represália, e a desacreditar o feminismo. Mesmo assim, alguns investigadores do CES assinaram um documento em que se afirmava que a retirada era considerada um ato de censura, alinhando com a própria falsidade do que é relatado no capítulo.

      Origem do capítulo difamatório - A uma das autoras, Lieselotte Viaene, que é quem ostensivamente escreve, o CES recusou acolhimento para um projeto do European Research Council. A decisão foi difícil, porque significou perder o CES uma avultada quantia em overheads. Acontece que o comportamento institucional de Viaene, enquanto investigadora do CES e enquanto bolseira do programa Marie Curie (Marie Skłodowska-Curie Actions), desaconselhou fortemente a continuação do vínculo. Chegou a fazer queixa do CES à Agência Marie Curie. Na resolução do conflito, Marie Skłodowska-Curie Actions deu razão ao CES: Viaene não cumprira as cláusulas do seu contrato. A razão pela qual solicitou Viaene tal acolhimento, apesar das suas queixas contra o processo disciplinar que lhe fora movido e contra o CES em geral, não tem nada a ver com empenho científico. Viaene queria ficar junto de um dos investigadores do CES por quem se tinha apaixonado (há provas documentais). Mais tarde haveria de se gabar de estar a escrever um artigo para se vingar do CES e do seu diretor emérito (há testemunhas e documentos). O capítulo haveria de servir de pretexto a um grupo de investigadoras e ex-investigadoras do CES, autodesignado “Coletivo de Vítimas”, para continuar, com requinte, a difamação de BSS.

      Cancelamentos - Quando tomou conhecimento do capítulo, para o qual a direção do CES não entendeu alertá-lo na altura, BSS estava de partida para o Chile. Foi no Chile que foi sabendo da dimensão das repercussões públicas que o capítulo ia tendo. A divulgação internacional do artigo foi profissionalmente organizada, tendo em conta o âmbito e a rapidez que atingiu. No dia 12 de abril, foi cancelada uma visita sua à Universidade Alberto Hurtado (Chile). Logo depois, surgiram em cadeia cancelamentos de atividades em diferentes países. No dia 15 de Abril, a CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) emitiu um comunicado em que declara que: "enquanto as investigações em andamento se desenvolvem, decidimos suspender todas as atividades de Boaventura de Sousa Santos no CLACSO”.

      Golpe de Estado no CES - No dia 12 de abril realiza-se uma turbulenta Assembleia Geral do CES em que não participaram BSS (por estar ausente) nem os dois outros investigadores, Maria Paula Meneses, moçambicana, apelidada de Watchwoman no artigo e Bruno Sena Martins, caboverdiano, apelidado de Aprendiz, (dado o ambiente agressivo e caótico que entretanto se criara). Tornou-se evidente que alguns investigadores e algumas investigadoras procuravam aproveitar a publicação do artigo para fomentar os seus ressentimentos e as rivalidades que hoje em dia são comuns nas instituições universitárias. Dessa assembleia resultou a demissão da direção e a convocação de eleições a curto prazo. Dessa eleição resultou uma nova direção e a reeleição do Conselho Científico que tinha fomentado a turbulência. O alinhamento com a “veracidade” do artigo por parte da nova equipa diretiva foi total e a partir daí comportou-se de modo a impedir que qualquer versão contrária fosse conhecida na instituição.

      Comissão independente e auto-suspensão - Entretanto, o CES decide criar uma Comissão Independente para averiguar as alegações contidas no capítulo. BSS saúda a decisão e, em 14 de abril, decide auto-suspender-se de todas as suas atividades no CES para facilitar as investigações. Lamentavelmente, o comunicado emitido pela Direção do CES afirmava que tinha sido a Direção a suspender BSS, um “erro” fatal que justificou cancelamentos de atividades em cadeia em vários países e de vários tipos, como, por exemplo, a proibição ou suspensão de publicações suas, ou a retirada de artigos seus em cursos universitários. O “erro” foi retificado somente algumas horas depois, mas sem qualquer eficácia, pois a notícia de que BSS tinha sido suspenso pelo CES já havia sido amplamente disseminada pelo mundo através de vários canais. Aliás, em 4 de maio o Diretor da Faculdade de Economia e a Presidente do CC voltam a comunicar aos doutorandos que BSS está suspenso, e não auto-suspenso.

      O comportamento inexplicável e ilegal dos órgãos dirigentes do CES e da FEUC - Nem a Direção nem a Presidência do Conselho Científico do CES alguma vez convocaram BSS para saber a sua opinião ou sequer informá-lo do que se passava. Como fundador do CES e seu diretor emérito, ele esperava legitimamente que isso ocorresse. Entretanto, no dia 20 de abril foi-lhe comunicado pela Presidente do CC e pelo diretor da Faculdade de Economia, através de uma mensagem de e-mail, que lhe tinham sido retirados todos os orientandos de doutoramento e, pouco depois, que tinha sido igualmente cancelado o seu seminário no programa de doutoramento de Pós-Colonialismos e Cidadania Global. No dia 4 de maio de 2023, os estudantes de doutoramento de BSS foram também liminarmente informados, pela Presidente do Conselho Científico do CES e pelo Diretor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, da “suspensão” de BSS. A gravidade e a ilegalidade destas decisões decorrem de terem sido tomadas sem nenhum processo prévio, sem audição prévia do visado, com base numa falsidade (suspensão e não auto-suspensão), e retirando consequências definitivas de uma situação provisória (auto-suspensão ou suspensão).

      O Relatório da Comissão Independente - A Comissão Independente iniciou os seus trabalhos em 1 de Agosto de 2023. BSS compareceu perante a CI em 4 de dezembro de 2023. Testemunhou perante a CI durante três horas, em 4 de dezembro, entregando cerca de 600 páginas de documentos e dezenas de testemunhas (que nunca foram ouvidas). O Relatório da CI deveria ter sido apresentado em 31 de dezembro de 2023, mas foi adiado para 13 de março de 2024. A CI era constituída por quatro mulheres e um homem. No final do processo de investigação das queixas, 14 pessoas, 9 das quais mulheres, tinham sido denunciadas. No entanto, a CI não acusou nenhuma das pessoas denunciadas de infrações penais ou de delitos graves. O nome de BSS (nem o de qualquer outro investigador) não é mencionado no Relatório.

      A Comissão Independente jamais utiliza o termo "vítimas", utilizando sempre os termos "pessoas denunciantes" e "pessoas denunciadas", justamente para garantir que o direito fundamental de presunção de inocência fosse assegurado, já que a utilização do primeiro termo cabe a assunção de que as pessoas que acusam são, de fato, vítimas, e que as pessoas que são acusadas, são, de facto, perpetradoras de crimes.

      As “vítimas” - Contrariamente ao entendimento da Comissão Independente, que jamais utilizou o termo "vítimas", minutos antes da divulgação do Relatório Final da CI, em 13 de março de 2014, a Direção e o Conselho Científico do CES emitiram uma carta a pedir desculpa às “vítimas”. Qualquer que tenha sido a intenção das entidades ao publicarem uma carta que contrariava diretamente as conclusões da CI, o fato é que essa carta foi entendida nacional e internacionalmente como significando que o relatório da CI confirmava a versão dos fatos apresentada pelas alegadas vítimas no que a BSS dizia respeito (a Carta ainda se encontra na página do CES).

      Mais cancelamentos - Por causa dessa carta, alguns dias depois foi BSS demitido do Tribunal Universal dos Direitos da Natureza, que ajudara a fundar, e o suplemento Times Higher Education Supplement, de 15 de março de 2024, através de um post na rede social "X", anunciou que as alegações de assédio contra BSS tinham sido confirmadas. BSS pediu à Direção do CES que se distanciasse imediatamente desta má interpretação dos resultados da CI. A Direção recusou e, ao fazê-lo, denunciou-se a si própria por ter agido de má-fé ao publicar a carta de desculpas. Vários investigadores do CES, por sua vez, escreveram uma carta à Direção, criticando-a veementemente por ter agido de forma tão unilateral, mantendo-se fiel a uma narrativa, sem se preocupar com a existência de outras narrativas, ou com o prejuízo que isso causaria às pessoas investigadas.

      Auto-suspensão? Ou de fato suspensão sine die? - Após a publicação do Relatório da Comissão Independente, em 13 de março de 2024, entendida por BSS como o fim de um longo e doloroso processo, BSS informou a Direção do seu propósito de pôr termo à sua auto-suspensão. Contrariamente ao que seria de esperar nos termos da lei, os alunos de BSS não foram informados de que a sua auto-suspensão tinha terminado e que, por conseguinte, poderiam voltar a ser supervisionados por ele.

      Investigadoras do CES, o Coletivo de Vítimas e a Sexta Carta - Entretanto, foram sendo publicadas várias cartas empenhadas em reduzir o “Caso Boaventura” a um assunto a ser debatido na praça pública, sem provas concretas, com vista à completa destruição da reputação de BSS. Em 20 de março de 2024, foi publicada a Sexta Carta do auto-designado Coletivo de Vítimas, assinada por 13 denunciantes, que abandonaram assim o seu anonimato. A carta apelava à expulsão dos investigadores denunciados e à abertura de um processo judicial contra eles, bem como à adoção de decisões dos órgãos diretivos do CES contra eles (expulsão, demissão ou não renovação dos contratos de trabalho).

      Entre as signatárias encontravam-se várias investigadoras do CES que dispunham de órgãos internos para a apresentação de denúncias. Em vez disso, utilizaram uma carta que foi amplamente difundida em Portugal e no estrangeiro. Esta carta revelava, entre muitas outras coisas, dois fatos que confirmavam todas as suspeitas que se vinham acumulando ao longo do ano sobre a má-fé da Direção e de alguns investigadores. Por um lado, não foi instaurado qualquer processo disciplinar às subscritoras, que eram sócias efetivas da instituição e, portanto, sujeitas aos estatutos do CES. Por outro lado, ficou demonstrado que nem as denunciantes nem os órgãos diretivos do CES estavam interessados em conhecer a verdade, pois eram cúmplices na produção de acusações em contextos que violavam a presunção de inocência e todas as garantias processuais do Estado de Direito.

      Finalmente, a possibilidade de BSS se defender das acusações espúrias? - BSS pediu à Direção que lhe desse acesso às declarações prestadas à CI pelas denunciantes que tinham quebrado o anonimato. A Direção recusou. Em vez disso, abriu um processo de averiguações a cargo de um grupo de advogados por si contratados para o efeito. BSS teve uma reunião com esses advogados em 29 de julho. Era sua expectativa que depois de 16 meses de linchamento público lhe fossem transmitidas por escrito as denúncias a fim de poder defender-se eficazmente. Os advogados, certamente obedecendo aos termos de referência que ninguém no CES ou fora dele conhece, recusaram-se a fornecer as denúncias por escrito. Tal como desejado por esta Direção desde que foi eleita, estava consumado o seu propósito de não dar a BSS as condições para se defender eficazmente. O fato de BSS nunca ter sido formalmente acusado num contexto em que pudesse se defender foi essencial para se chegar ao ponto em que ele se encontrou vinte meses depois do início da difamação: a “morte civil” de uma pessoa que deu a sua vida pelos valores essenciais que constituem os pilares da democracia. Por que razão o fazem contra o diretor emérito do CES e um dos cientistas sociais mais citados do mundo na área das ciências sociais? Enquanto cientista social, BSS estava entre os 2% do “World’s Top scientists 2022” divulgado pelo grupo editorial Elsevier, uma lista que contém 200 mil cientistas, e igualmente na lista da Universidade de Stanford divulgada em outubro de 2023 e ser considerado o “Top scientist” da universidade de Coimbra de 2024. Essa situação mantém-se ainda hoje (2025), apesar da terrível campanha de difamação de que foi vítima BSS.

      Ação judicial contra as supostas vítimas - O caráter excepcional das acusações de assédio (sexual, laboral, moral) contra BSS é o fato de tais denúncias formalizadas e documentadas nunca lhe terem sido facultadas em nenhum contexto em que se pudesse defender. Nunca lhe foram facultadas no CES, na Comissão de Ética da Universidade, ou no Ministério Público. O seu linchamento ocorreu apenas na guerra midiática e redes sociais, ou seja, em contextos onde não se podia se defender. Perante isto, BSS interpôs uma ação judicial civil contra os treze assinantes da carta acima referida com o objetivo de defender a sua honra. Solicitou também ao Ministério Público para ser constituído arguido, ou seja, para ser investigado, algo inédito em Portugal. Até ao momento, o MP não encontrou razões para o constituir como arguido.

      Tentar compreender - 1: todos sabiam o quê? - O grupo de investigadores e investigadoras que conseguiu impor a narrativa de que o capítulo dizia a verdade sobre o CES – e que “todos sabiam” – nunca esclareceu o que é que “todos sabiam”. A julgar pelo que veio a público, referiam-se a comportamentos irregulares que envolviam BSS e alguns dos investigadores que trabalhavam mais de perto com ele. Especificamente a respeito de BSS, “sabiam” que se criara um certo culto de personalidade à sua volta e que a proximidade a ele podia ocorrer por meios que não tinham a ver com critérios científicos. Nada está mais longe da verdade. BSS sempre foi um caput scholae, um líder científico cujo trabalho atraía estudantes e jovens investigadores de diferentes países e que isso era positivo para o CES, uma vez que, chegados ao CES, verificavam que, além de BSS, havia muito mais gente interessante e com ideias inovadoras com quem muitos acabariam por trabalhar nos seus projetos de doutoramento ou estágios pós-doutorais.

      Tentar compreender - 2: Fatores externos - Políticas de direita.

      No domínio de razões de caráter político, é possível imaginar que na pessoa de BSS se pretendeu atingir o CES no seu todo, um centro em geral caracterizado por privilegiar um pensamento crítico da sociedade injusta e discriminatória em que vivemos. BSS é um intelectual público, com muitas intervenções na imprensa, e as suas posições caracterizam-se por um pensamento crítico de esquerda independente e pouco afeito a vergar-se a lealdades partidárias ou ao senso comum produzido pela opinião publicada. Ao longo dos anos, BSS recebeu vários ataques, mas nenhum com a dimensão deste último. Em 2022, foi fortemente criticado por certa imprensa e nas redes sociais pela sua posição crítica sobre a continuidade da guerra da Ucrânia. Desde o início considerou ilegal a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, mas criticou a continuidade da guerra, sobretudo depois da oposição do Reino Unido e dos EUA à negociação de paz promovida pela Turquia pouco tempo depois de a guerra ter começado. A sua voz era quase a única voz crítica e havia interesse em calá-la. Para fundamentar esta ideia atente-se em dois editoriais altamente difamatórios contra a sua pessoa, escritos no mesmo ano pelo mesmo jornalista, Manuel Carvalho, do jornal Público. O primeiro, quando este jornalista era diretor do Público, é de 11 de março de 2022, no dia seguinte à publicação de um artigo de BSS no mesmo jornal sobre a guerra da Ucrânia. O segundo é de 13 de abril de 2023 e refere-se ao caso midiático construído sobre o capítulo difamatório. Como se disse atrás, apesar de esta publicação fazer acusações a vários investigadores do CES, BSS foi o único alvo da guerra midiática.

      A duplicidade de critérios neste domínio é pouco menos que escandalosa. A jornalista que na altura se salientou na guerra mediática contra BSS, Fernanda Câncio (DN), atribuindo-lhe crimes e fazendo graves acusações com base em alegações vagas feitas em pichagens anônimas, é a mesma que, a propósito de alegadas acusações contra um ator português, escreve no Facebook que “a esse ator se deve aplicar o que se aplica a toda a gente acusada publicamente de 1 crime: presunção de inocência”.

      Nos meses seguintes foram anunciados vários casos de assédio sexual em várias instituições sem que nomes nem fotos fossem publicados. Ainda em 7 de Dezembro o Diário de Notícias anunciava “Professor da Universidade de Lisboa condenado por furto de gás natural” sem indicação de nome nem foto. Ainda neste registo político, há a mencionar os ataques à página da Wikipedia de BSS feitos por pessoas ligadas à ultradireita portuguesa.

      Políticas de esquerda

      É mais difícil de entender a atitude de uma certa facção da extrema esquerda, ostensivamente defensora dos direitos humanos, mas que se apressou também a condenar BSS, com base em denúncias caluniosas e sem provas. Sendo um intelectual e um ativista de esquerda, BSS nunca se filiou a nenhum partido, dando prioridade ao seu trabalho junto dos movimentos sociais onde as sensibilidades partidárias são sempre variadas. Ao longo dos anos foi criticamente solidário com o Bloco de Esquerda e com o Partido Socialista. Sentiu-se mais próximo do primeiro do que do segundo, sobretudo durante o tempo em que a corrente de Miguel Portas teve alguma relevância. Miguel Portas, além de ter uma qualidade humana extraordinária, foi o político de esquerda mais inovador da primeira década do milênio, um travão permanente contra a tentação sectária da extrema-esquerda. A sua morte prematura em 2012 abriu as portas ao sectarismo e ao divisionismo que passaram a dominar o Bloco de Esquerda e cujos resultados estão à vista. BSS foi um crítico veemente desta política e os que se sentiram atingidos por ela aproveitaram a difamação que lhe foi feita para descredibilizar ainda mais a sua voz, que tanto incômodo lhes causava.

      O #MeToo

      Outro fator externo ao CES foi a amplificação das alegações do capítulo por parte de certos setores feministas identificados com o movimento #MeToo. Por que razão? BSS sempre apoiou as lutas feministas e trabalhou frequentemente com movimentos de mulheres indígenas e negras. Foi criticado pelos marxistas mais ortodoxos por considerar, no seu trabalho teórico, que a dominação eurocêntrica moderna não assenta apenas na exploração capitalista, mas antes numa articulação entre três formas principais de dominação: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Acresce que esta intensa mobilização feminista contrastou com a que ocorreu com as notícias de abusos sexuais noutras instituições onde os nomes de potenciais abusadores nunca foram mencionados.

      Rivalidades científicas com outros centros de investigação?

      No que se refere a fatores externos, há ainda que referir um setor de cientistas sociais de Lisboa que nos anos de 1990 questionou as credenciais científicas de BSS e, sobretudo, a sua proposta epistemológica em Um Discurso Sobre as Ciências (um pequeno livro, muito usado no ensino secundário, e que teve muitas edições tanto em Portugal como no Brasil e foi publicado na Review do Fernand Braudel Center da Universidade de Nova Iorque-Binghamton). Desse setor faziam parte, entre outros, António Manuel Baptista (já falecido) e Maria Filomena Mônica. Esta última publicou em dezembro de 2023 um livro, em que repete os insultos contra BSS, intitulado Sócrates e Boaventura, de que a Editora faz a seguinte descrição: Ao escolher José Sócrates, um predador, e Boaventura de Sousa Santos, um pregador, a autora procurou falar de um país, como o nosso, seguindo os trajetos de um político que tudo fez para escapar à justiça e de um sociólogo que tem muito pouco de cientista social. Não pode deixar de pensar-se que esta data não foi uma coincidência. Ocorreu antes da avaliação dos centros de investigação pela FCT e antes do relatório da Comissão Independente, então prevista para o final de dezembro de 2023.

      Tentar compreender - 3: Fatores internos - As consequência do golpe de Estado no CES

      Quanto aos fatores internos, é chocante e surpreendente o comportamento das estruturas de Direção do CES neste período.

      Como é possível que uma investigadora com tantas responsabilidades, Marta Araújo,, vice-presidente do Conselho Científico, se tenha vangloriado junto de colegas (há testemunhas) de ser ela a fonte anônima da jornalista do Diário de Notícias onde os seus colegas e o CES eram insistentemente insultados? Note-se que Marta Araújo fora uma das co-orientadoras do doutoramento de uma das autoras do capítulo difamatório (Miye Nadya Tom). Como explicar isto senão como um estado de total desorientação, de intenso ressentimento e descontrolada sede de vingança? A nova Direção, entretanto eleita, não lhe levantou um processo disciplinar. Apesar de ter sido o fundador do CES e seu diretor durante quatro décadas, BSS não se reconhece no procedimento desta instituição neste último período.

      Foram tomadas muitas medidas gravosas para as pessoas envolvidas e para a própria instituição, com total desrespeito por regras elementares de convivência democrática e violação de direitos humanos (e, no caso de dois investigadores, violação de direitos laborais, sendo de assinalar que ambos são negros, um cabo-verdiano e uma moçambicana), fato tanto mais grave quanto ocorreu numa instituição conhecida pelo seu compromisso com a ciência cidadã, os direitos humanos e o primado do direito e pelo pós-colonialismo.

      O perfil geral do que aconteceu no período imediato configura, num primeiro momento, um estado de pânico por parte do então diretor-coordenador e da Presidência do CC, e o consequente aproveitamento de alguns setores do CES para realizarem o que se pode analogicamente caracterizar como um golpe de Estado para mudar a política científica do CES e para ajustar contas de rivalidades pessoais e científicas mal digeridas. A rapidez das ações condenatórias, a colaboração ativa com jornalistas empenhados em denegrir a imagem de BSS e a do CES e os fatos consumados produzidos sem qualquer processo prévio só fazem sentido se se considerar que, no meio do descontrole geral, alguns setores se aproveitaram para afirmar pontos de vista de política científica que aparentemente não tinham podido fazer vingar no CES anteriormente. Se assim foi, por que razão não conseguiram esses setores impor essas posições?

      As Epistemologias do Sul

      Num dos comentários do Público são entrevistadas fontes “anônimas”. Investigadores do CES que se prestam a declarações anônimas são, em si, um ato condenável num contexto em que a instituição está a ser alvo de um ataque midiático. Tais fontes anônimas, consideradas como “velha guarda do CES”, afirmam como um problema que a opção teórica de BSS se tinha tornado hegemônica no CES e que isso tinha condicionado o desenvolvimento do CES. Esta opção deve referir-se às Epistemologias do Sul, que levaram longe o nome do CES e atraíram centenas de estudantes estrangeiros e nacionais para os seus programas doutorais. Na mesma linha, a então e hoje presidente do Conselho Científico (CC), Ana Cordeiro Santos, afirmara mais ou menos textualmente a uma testemunha qualificada que “as Epistemologias do Sul eram para acabar quando o Boaventura morresse”.

      Significa isto que estava instalada no CES uma rivalidade científica de que BSS não se tinha apercebido. Quando o CES foi criado, os seus interesses estavam centrados na sociedade portuguesa, que acabava de sair de 48 anos de ditadura. A sociologia tinha sido virtualmente proibida durante todo esse período. BSS é o sócio número 3 da Associação Portuguesa de Sociologia. Esses estudos centravam-se na caracterização da sociedade portuguesa no moderno sistema mundial, com forte pendor para o estudo da economia política. Devido à formação de base de BSS (licenciatura em Direito pela Universidade de Coimbra, doutoramento em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale), desenvolveu-se no CES um grande interesse pelo sistema judiciário, o que viria a dar lugar, poucos anos mais tarde, à criação do Observatório Permanente da Justiça, de que BSS foi Diretor Científico (1996-2023).

      Para o seu trabalho de doutoramento em Direito na Universidade de Yale, realizou BSS pesquisa na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. A tese foi publicada em 1974, no CIDOC (Centro Intercultural de Desenvolvimento, México), com o título de Law against Law: Legal Reasoning in Pasárgada (vol. nº 87). Apareceria anos mais tarde (2014), revisto e intitulado O direito dos oprimidos, o primeiro volume de “Obras de Boaventura de Sousa Santos” da Editora Almedina.

      Foi no seguimento deste primeiro trabalho que BSS realizou, em 1984-85, um estudo sobre os tribunais de zona em Cabo Verde. Na década de 1990, realizou BSS, com financiamento da fundação norte-americana MacArthur, o seu primeiro grande projeto de investigação, tendo por objeto de estudo vários países não europeus, e com uma perspectiva pós-colonial. Os países incluídos foram: Portugal, África do Sul, Moçambique, Brasil, Colômbia e Índia. Esse interesse teve um aprofundamento significativo com a participação muito ativa de BSS no Fórum Social Mundial, que se realizou pela primeira vez em Porto Alegre (Brasil) em 2001. Por tudo isto, e dado também que Portugal teve mais e mais longos contatos com mais países fora da Europa devido à duração e extensão do seu império colonial, BSS viu no CES uma ponte privilegiada entre a Europa e a América Latina, a África e a Ásia.

      Foi deste interesse de BSS (e do CES enquanto por ele concebido) por temas pós-coloniais que germinaram as Epistemologias do Sul. Entretanto, o CES transformou-se em Laboratório Associado (2002) com a possibilidade de poder contratar investigadores não integrados na Universidade e começar a oferecer programas de doutoramento em parceria com a Faculdade de Economia. Os temas pós-coloniais do CES chamaram a atenção dos colegas estrangeiros, sobretudo do Sul global (brasileiros, moçambicanos, chilenos, mexicanos, cabo-verdianos, etc.) e foi assim que o CES começou a receber dezenas de estudantes de doutoramento estrangeiros (sobretudo brasileiros, os quais durante uns anos eram o maior contingente estudantil). Dez anos mais tarde, esse interesse pelo Sul global teria um impulso extraordinário com a aprovação, pelo European Research Council, do projecto ALICE, que BSS dirigiu entre 2011 e 2016. Financiado com 2.4000.000 euros (os respectivos overheads foram então um autêntico balão de oxigénio para o CES), o ALICE permitiu a BSS constituir uma vasta equipe de investigação que viria a dar maior ampliação às Epistemologias do Sul. Neste projeto os países incluídos foram: Bolívia, Equador, Itália, África do Sul, Reino Unido, Moçambique, Índia, Portugal, França, Colômbia, Brasil e Espanha.

      Hegemonia científica ou falta de iniciativa e rivalidades mal digeridas?

      As Epistemologias do Sul, no entanto, foram sempre uma temática ao lado de outras no CES. É evidente que a dedicação de BSS a este projeto, a exigir cada vez mais estadias prolongadas no estrangeiro, fizeram com que ele não estivesse tão envolvido com outras temáticas e com os colegas que as prosseguiam. Mas porque teria ele de o fazer, mais de vinte anos depois de ter fundado o CES? Os seus colegas tinham à disposição as mesmas fontes de financiamento interno e externo para realizar projetos e construir um curriculum internacional. Perante o que aconteceu nos últimos meses, tudo leva a crer que BSS foi objeto de rivalidades mal assumidas.

      Avaliações do CES, o projecto ALICE, frustrações, ressentimentos

      Tem de ser reconhecido que, segundo os critérios de avaliação assentes em produção acadêmica, o CES tem sido uma instituição de excelência devido ao esforço de um conjunto minoritário de investigadores, responsáveis pela grande maioria da produção científica. Nunca nenhum docente da Faculdade de Economia ou da Faculdade de Letras teve um projeto aprovado pelo European Research Council (ERC), uma instituição altamente competitiva. A única exceção até ao momento é BSS e o projecto ALICE. E a verdade é que o CES tem tido vários projetos aprovados pelo ERC, liderados por investigadores do Laboratório Associado. Por ser um projeto de grande envergadura, o projeto ALICE, suscitou o desejo de muitas investigadoras e investigadores de o integrar, e os investigadores juniores (doutorandos e pós-doutorandos), em face da delicada questão da crescente precariedade do emprego científico em Portugal, viram legitimamente no ALICE um trampolim para um futuro emprego científico no CES. Tais expectativas, não realizadas, levaram a grandes frustrações que alimentaram mais tarde comportamentos típicos do ressentimento.

      Mais estranho ainda é que investigadoras e investigadores com bom nível científico tenham recorrido a meios pouco recomendáveis para lidar com as rivalidades suscitadas pelo êxito das investigadoras e investigadores que trabalhavam mais de perto com BSS. Conforme poderá ser testemunhado por pessoas dos bairros de Lisboa onde o ALICE trabalhou (Cova da Moura), algumas investigadoras fizeram afirmações caluniosas absurdas e sem qualquer fundamento, como, por exemplo, que o projecto ALICE era financiado pela CIA, e que os livros de BSS eram escritos pelos seus assistentes, a única explicação para que ele publicasse tantos livros. Este último insulto consta do capítulo difamatório, o que mostra que as suas autoras não inventaram tudo o que escreveram. Por essa altura começaram também a surgir boatos sobre a forma como foram escolhidos os investigadores para o projeto ALICE: foi criado um rumor pelas investigadoras preteridas e, por isso, ressentidas, de que algumas escolhas, nomeadamente a de Maria Paula Meneses, não se deveram aos respectivos currículos ou mérito.

      Insiders, outsiders e privilégios

      No final da década de 1990 a atividade profissional de Maria Paula Meneses centrava-se no departamento de arqueologia e antropologia da Universidade Eduardo Mondlane do Maputo e também no Ministério da Ciência e Ensino Superior do país. No final da década de 1990, MPM teve um conflito com o então reitor da universidade, o que a levou a procurar seguir a sua carreira fora do país. Dadas as suas qualificações (mestrado na Universidade de São Petersburgo, USSR, e doutoramento em Rutgers, EUA), MPM teve várias ofertas de trabalho na Europa e nos EUA. Tendo sabido do CES e da orientação científica que se estava a seguir no CES, achou por bem concorrer a um posto de trabalho. Entrou para o CES por concurso internacional em 2003, quando este se converteu em Laboratório Associado. MPM correspondia ao perfil que o CES definira para as relações da universidade portuguesa com intelectuais dos novos países libertos do colonialismo português. A sua contratação deu um impulso novo às investigações levadas a cabo no CES, uma vez que Moçambique e, em geral, a África, eram o seu tema de investigação. Rapidamente, porém, se percebeu que a sua contratação criou ressentimentos entre alguns investigadores e algumas investigadoras do CES. Uma das razões terá sido que MPM era uma outsider, não pertencendo à pequena comunidade universitária coimbrã que se tinha juntado à volta de BSS para criar o CES, uma investigadora cujo trabalho era desconhecido e estranho para a grande maioria dos investigadores e que trazia para o CES outros interesses científicos para além dos que tinham dominado o primeiro período do CES (economia política, a sociedade semiperiférica, o direito e o sistema judicial, e as humanidades literárias). Proveniente de uma família que lutara pela independência de Moçambique e tendo estado politicamente muito ativa nos primeiros anos do seu país, MPM vivia muito intensamente o que considerava ser preconceito colonialista e racista no modo como alguns colegas se relacionavam com ela. Um deles, agastado com o espírito crítico de MPM, chegou a insultá-la em público: “por que não voltas para o teu país?”.

      Aliás, os ressentimentos estenderam-se a alguns estudantes. A “ex-international PhD student”, Miye Nadya Tom, co-autora do capítulo calunioso, disse um dia na Cova da Moura que Maria Paula Meneses não poderia fazer trabalho sobre colonialismo porque era mestiça, e não negra.

      A gestão do projecto Alice e do CES em geral

      As contratações dos investigadores pagos pelo projeto ALICE foram realizadas por concurso internacional. O ALICE teve duas coordenações em que, devido às ausências a que obrigava o seu protagonismo científico, BSS delegou: coordenação executiva (Jose Luis Exeni, Élida Lauris e Sara Araújo) e coordenação científica (João Arriscado Nunes, Maria Paula Meneses, José Manuel Mendes e, na parte final, Bruno Senna Martins). A importância do ALICE no CES durante a sua vigência é inegável. É verdade, porém, que a diversidade e o pluralismo epistemológico e teórico continuaram a estar bem presentes no CES. Basta olhar para os temas e cursos dos 12 programas de doutoramento organizados pelo CES em parceria com a Faculdade de Economia, Faculdade de Letras e Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra, assim como com outras instituições. O fato de nos últimos anos o CES ser responsável por 17% dos doutoramentos concedidos pela Universidade de Coimbra devia ser motivo de orgulho coletivo no CES. Este êxito não foi, de resto, mérito exclusivo dos investigadores. Foi igualmente mérito de uma excelente equipe administrativa que durante muitos anos foi liderada por João Paulo Dias, Diretor Executivo durante 10 anos e hoje investigador do Laboratório Associado.

      Silenciamento?

      Tanto no capítulo difamatório como nas discussões havidas no CES depois de instalar a crise, como ainda na comunicação social, surgiu frequentemente a ideia de que havia uma cultura de “silenciamento”. Numa instituição que tinha órgãos colegiais eleitos de cujas reuniões publicava atas, uma instituição que organizava reuniões estratégicas, reuniões plenárias e assembleias gerais, custa a crer que se fale de silenciamento. Mas se se fala tão insistentemente, há que procurar uma explicação. A que parece mais razoável é que muitos colegas converteram o seu desconhecimento em silenciamento. O fato de o CES estar sediado num edifício distante da Faculdade de Economia, a que durante muito tempo pertenceu uma parte significativa do corpo de investigadores, e com dificuldades de estacionamento, fez com que muitos investigadores raramente frequentassem as instalações do CES, sobretudo quando não ocupavam funções directivas. Nos seminários realizados na sede do CES no Polo I da Universidade era muito rara a participação dos colegas da FEUC, e nem sequer se pode dizer que tal se devesse à sua falta de interesse pelas temáticas abordadas. Estas ausências foram-se convertendo em distanciamento e foi-os afastando da vida interna do CES. Por isso, não tinham conhecimento.

      Transparência

      Num momento de pânico institucional, converteram isso numa cultura de silenciamento. Um exemplo eloquente disso mesmo foi a transparência com que o CES lidou com a questão das pichagens anônimas. A transcrição da reunião de BSS com cerca de 50 estudantes e investigadoras em janeiro de 2019, depois das suas reuniões com todas as colegas especializadas em temas feministas, mostra claramente uma preocupação de discutir abertamente um tema que era perturbador. BSS informou também que dessa reunião iria dar conta na próxima reunião do CC, como de fato fez. Dessa reunião saiu uma ata, que provavelmente ninguém se deu ao trabalho de ler. Foi assim que o desconhecimento se converteu em silenciamento. Por quê? Porque, sobretudo no caso de colegas que tinham responsabilidades diretivas, não houve coragem para tratar no lugar próprio os eventuais comportamentos irregulares de que dizem ter tido conhecimento? A verdade é que em nenhuma outra instituição houve tanta transparência e tanta vivência democrática como no CES.

      O crescimento problemático do CES

      É certo que a circulação de conhecimento interno no interior de grandes instituições é um problema sério. Este problema tornou-se particularmente agudo quando o CES no espaço curto de 10 anos (entre 2010 e 2020) passou de algumas dezenas de investigadores para 151 investigadores. Não foi um crescimento orgânico. Foi o resultado de uma política governamental que obrigava os Centros a agregar-se para ganhar “dimensão europeia”. Dada a pujança científica do CES, juntaram-se ao CES dezenas de novos investigadores e investigadoras vindos do Departamento de Arquitectura e da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. A heterogeneidade interna e o desconhecimento interno do CES aumentaram exponencialmente. Logo em seguida, começaram os concursos para contratação temporária (6 anos) pela FCT, que trouxe novos/as investigadores/as ao CES. Para além disso, através da chamada norma transitória, passaram a investigadores alguns pós-doutorandos. Em pouco tempo, o CES transformou-se numa instituição de tamanho médio, composta de muitos investigadores e investigadoras que pouco ou nada sabiam do CES, da sua história e da sua vocação.

      A ideia da escola do CES que tinha sido construída ao longo dos anos foi-se diluindo até virtualmente desaparecer. Note-se que vários dos investigadores e investigadoras que entraram ao abrigo das novas normas de emprego científico não foram pré-selecionados por contatos anteriores com o CES. O CES acedeu a ser a instituição de acolhimento e aconteceu muitas vezes entre aqueles e aquelas que menos interesse tinham para o CES, mas que correspondiam aos interesses subjacentes à Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Em pouco tempo, o CES converteu-se num complexo arquipélago de pequenas ilhas (algumas de uma só pessoa), com muito desconhecimento e muito pouco contato entre si. Cada um/uma passou a lutar pelas suas publicações e pelos seus projetos. É ainda de ter em conta que este enorme aumento de pessoal científico, exteriormente induzido, acabou por não eliminar os desequilíbrios e assimetrias enormes na produção científica. Dos 150 investigadores, até há pouco, não mais de 50 submetiam regularmente projetos a financiamento.

      As ausências de BSS

      Se era fácil compatibilizar as longas estadias de BSS no estrangeiro com a direção de relativa proximidade, mesmo que só científica, do CES quando se tratava de 40 ou 50 investigadores, tal deixou de ser possível quando os investigadores do CES passaram a 150. As ausências oficiais de BSS no estrangeiro não lhe permitiam estar ao corrente de tudo o que se passava. Entre 2014 e 2019 BSS passou em média quatro meses por ano em Portugal, devido às estadias regulares na Universidade de Wisconsin-Madison (35 anos, onde deu aulas durante o #MeToo sem nunca ter sido acusado de qualquer comportamento irregular) e às estadias exigidas pelo projecto ALICE. Mesmo assim, em três importantes momentos de crise, o CES precisou da sua intervenção efetiva: um caso grave de assédio sexual, um conflito no projeto MEMOIRS, e no caso Lieselotte Viaene.

      É também verdade que a crise econômica de 2011 e a avaliação menos positiva do CES por parte da FCT em 2015 (Muito Bom em vez de Excelente) obrigou BSS a permanecer na Direção por insistência de colegas que muito estimava, ainda que não podendo renunciar aos seus compromissos internacionais. Ao contrário do que dizem os seus detratores, não foi a sua demasiadamente forte presença no CES que contribuiu para alguns dos problemas que o CES passou a enfrentar. Foi, bem pelo contrário, a sua demasiadamente fraca presença.

      O linchamento de BSS começa dentro do próprio CES

      A virulência da “sexta carta” exigia a expulsão de BSS. A atual Direção do CES apressou-se a agir nesse sentido com a devida solicitude. Em novembro de 2024, foi enviada uma carta a BSS, assinada pelo Diretor, Tiago Santos Pereira, pelas outras duas investigadoras membros da Direção, Antonieta Reis Leite e Paula Abreu, e a Diretora Executiva, Rita Pais (a quem, em rigor, não competia assinar). Nessa carta era citada parte do relatório da equipe de advogados, contratados para averiguar o que a Comissão Independente já tinha averiguado, e que reza assim:

      “O relatório agora entregue à Direção pelos instrutores conclui que ‘[e]m face de tudo quanto se expôs, e em resultado dos fatos invocados e da prova indiciária quanto aos mesmos produzida, os instrutores consideram que existem indícios relevantes da prática de atos suscetíveis de configurar a prática de assédio sexual e moral às Denunciantes listadas em II.(iv) supra.’”

      Note-se que esta conclusão resulta de depoimentos das supostas vítimas, que supostamente não mentem, e sem que BSS jamais tenha sido ouvido. Assim se criou no CES, deliberadamente, um nefasto ambiente de pós-verdade.

      Mais informava a carta que a Direção tinha solicitado ao Reitor a convocatória de uma Assembleia Geral com vista à “exclusão do associado” BSS.

      Demissão - Perante o fato de nunca ter podido confrontar denúncias formais documentadas, perante a acumulação de tanta intriga, mediocridade, malevolência e ilegalidade no poder, perante tamanha articulação entre este golpe de Estado interno e a guerra midiática interessada em destruir a sua reputação, BSS decidiu não pactuar com tal conduta e, em 26 de novembro de 2024, com grande mágoa, mas sem hesitar, demitiu-se do CES, a instituição que fundara em 1978 e a que dedicara o melhor da sua vida.

      Logo a seguir, revoltados com o comportamento inqualificável dos órgãos directivos do CES, com as ilegalidades por eles cometidas e a má-fé por eles denunciada ao longo todo o processo, cinco investigadores seniores do CES igualmente se demitiram, em total solidariedade a BSS.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

      ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

      ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

      iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

      Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

      Relacionados