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    Luis Pellegrini

    Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

    14 artigos

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    Labaredas da arrogância. O recado que vem do fogo na Califórnia

    Até quando a Terra suportará sem reagir todos os arranhões e feridas que estamos produzindo em sua superfície?

    Incêndios florestais em Los Angeles (Foto: Reuters)

    As chamas que nestes dias consomem vastas áreas da Califórnia causam medo e assombro. Mas para nossos olhos, cansados de ver outros fogaréus, como aqueles que devastam o Pantanal, a Amazônia e o Cerrado, sua visão já não causa o mesmo impacto. Uma outra imagem, no entanto, ressalta e chama a atenção em meio ao cenário devastador dos incêndios naquele Estado norte-americano: a de Brent Pascua, chefe de batalhão do Departamento Florestal e de Incêndios da Califórnia ao mencionar, com rosto lívido e fisionomia contrita, que “o fogo está fora de controle”. Ele descreveu a situação como “apocalíptica" e na fala destacou os desafios praticamente intransponíveis enfrentados pelos bombeiros na luta contra o fogo em Los Angeles e territórios vizinhos.

    No Brasil, os bombeiros são considerados militares. Nos Estados Unidos, não. São civis que trabalham como socorristas de emergência, treinados para combater incêndios, realizar resgates e fornecer assistência médica em várias situações de emergência. Lá como cá, no entanto, tratam-se de homens e mulheres cujas mentes e corações foram moldados pelo espírito de sacrifício e de serviço, coragem e dedicação. Podem imaginar o quanto foi duro para Brent Pascua dobrar o orgulho e a honra e assumir para o mundo, em nome de toda a corporação, a sua total impotência diante de um poder que supera todos os outros: o poder da Natureza quando se rebela?

    Brent Pascua, naquele instante, na verdade não falava apenas em nome de si mesmo, da sua corporação, e nem sequer só do seu país. Falava como emblema de uma inteira civilização, a nossa, assentada sobre os pilares movediços da arrogância, do descomedimento, da perda do sentido de limites. A civilização da ganância e do lucro desmedidos, da injustiça social, da inversão de uma escala de valores éticos e ambientais que levou muitos milênios para ser elaborada e que até hoje nos possibilita a sobrevivência.

    Ou alguém ainda duvida que a arrogância – a perda da consciência de limites, ou húbris, como era chamada pelos antigos gregos – seja hoje um traço dominante do mundo que construímos e no qual vivemos? Basta olhar ao redor, basta garimpar na história e os exemplos dessa corrida desabrida em busca de poder, glória e dinheiro se sucedem. Alguém se lembra de quantos pares de sapatos possuía Imelda Marcos, a ex-primeira-dama das Filipinas? Nada menos de 3 mil pares. Essa coleção se tornou um símbolo de seu estilo de vida extravagante e da corrupção durante o regime de seu marido, Ferdinand Marcos. Enquanto isso, o povo filipino vivia na miséria.

    Para os gregos antigos, a arrogância era a maior de todas as falhas. Era o “pecado” que não tinha remissão. Acreditavam que incorrer nessa falha acarretava a danação eterna. Os deuses não perdoavam o pecado de húbris, pelo simples fato de que, para eles, ele escondia o mais nefasto e proibido de todos desejos: o de se igualar aos próprios deuses.

    Não é assim, desse modo arrogante – feito de destruição e poluição do meio ambiente e de exploração insustentável dos recursos naturais – que tratamos nosso planeta-mãe, a Terra? Convencidos de que somos o centro do mundo e de que todas as coisas foram criadas para satisfazer nossos desejos e necessidades, inventamos uma cultura inteiramente destituída de bom senso: a cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis.

    E na busca cada vez mais louca do ter, em detrimento do ser, não conseguimos mais parar. Seguimos em frente, derrubando e queimando florestas, matando lagos e rios, poluindo os mares e a atmosfera, extinguindo a cada dia várias espécies de plantas e de animais. Sem falar nas mazelas que produzimos para nós mesmos, em termos de perturbações da saúde física, psíquica e mental, ao nos impormos um ritmo e uma carga insustentáveis de trabalho, de produção e de consumismo.

    Embriagados pelo desejo de posse e de poder, cada vez mais distantes das sabedorias antigas das quais somos herdeiros, vivemos hoje no esquecimento de que a arrogância, por contrariar a ordem natural das coisas, constitui um fator maior de desequilíbrio. Sem se lembrar de que, por uma lei natural, toda ação que leva ao desequilíbrio gera uma força igual e contrária que procura restabelecer o equilíbrio. Essa força, que os gregos chamavam Nêmesis, era simbolizada por uma deusa implacável, avessa a qualquer compromisso, a qualquer oferenda, a qualquer intercessão apaziguadora. Para os gregos, o aquecimento global nada mais seria do que uma das tantas emanações de Nêmesis: a consequência nefasta de uma ação errônea.

    Até quando a Terra suportará sem reagir todos os arranhões e feridas que estamos produzindo em sua superfície? perguntava James Lovelock há cerca de três décadas, quando lançou sua teoria sobre a Hipótese Gaia – a de que a Terra é um ser vivo, dotado de corpo, inteligência e alma. Como ser vivo, ela também possui, como nós, instinto de sobrevivência, e este é proporcional ao seu tamanho. Reagirá a toda ação agressiva. Bem, não precisamos esperar muito pela resposta. Ela está aí: O planeta reage às agressões de múltiplas formas e, no momento, a mais ameaçadora delas chama-se aquecimento global, com a ocorrência em todo o mundo de eventos climáticos extremos. Vide os atuais incêndios na Califórnia, enchentes e inundações no Brasil, ondas de calor, secas, tempestades. Mais o degelo polar: A extensão do gelo marinho na Antártida e no Ártico está diminuindo significativamente, contribuindo para a elevação do nível do mar. Sem falar nos impactos sobre a biodiversidade: As mudanças nos padrões climáticos estão afetando os habitats de muitas espécies, levando a migrações, mudanças nos ciclos de vida e, em alguns casos, extinções. E também os impactos na agricultura: As alterações nos padrões de precipitação e temperatura estão afetando a produtividade agrícola, com algumas regiões enfrentando secas severas enquanto outras lidam com inundações.

    Leonardo da Vinci, e muitos outros grandes gênios que a humanidade produziu, já afirmava, em pleno período renascentista: “A natureza é a fonte de todo verdadeiro conhecimento. Ela tem sua própria lógica, suas próprias leis, ela não tem efeito sem causa nem invenção sem necessidade."

    Ele via a natureza como um modelo perfeito de harmonia e equilíbrio, e seus trabalhos frequentemente refletiam essa visão. Leonardo acreditava que, ao estudar a natureza, os seres humanos poderiam aprender a criar obras que fossem igualmente harmoniosas e funcionais. Como nossos indígenas, Leonardo sabia que o diálogo harmonioso com a Natureza é possível e absolutamente necessário. Sabia que a Natureza emite sinais de alerta quando situações de desequilíbrio perigoso estão curso, e ela será obrigada a reagir. Nesse sentido, para quem sabe ler os recados vindos do mundo natural, os incêndios na Califórnia constituem um fortíssimo alerta, e deveríamos ouvi-lo.

    Não terá chegado a hora de voltarmos a refletir sobre os grandes clássicos e toda a imensa herança que eles nos legaram? Podemos começar com um pequeno conto produzido por outro grande da história, Leon Tolstoi, um dos maiores escritores e pensadores da literatura russa e mundial. O conto se chama De quanta terra precisa o homem?. Nele, um homem faz pacto com o diabo. Receberá toda a terra que conseguir percorrer a pé, durante um dia, do nascer ao pôr-do-sol. O homem passa o dia sem se conceder descanso. Quando o sol já se aproxima do horizonte, ele não se dá por satisfeito. Intensifica o esforço, corre. Falta-lhe fôlego, mas ele não para. Quer ainda possuir aquele vale, aquele bosque. Quando cai morto de fadiga, o conto explica de quanta terra precisa um homem: se ele não tem consciência de limites, apenas um par de metros lhe bastam. Mais do que isso não é preciso para ser enterrado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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