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    Marcelo Pires Mendonça

    Professor da rede pública de ensino do DF e especialista em Direitos Humanos

    16 artigos

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    Memória global sob ameaça: como o apagamento de Trump inspira alertas no Brasil e no mundo

    Experiência norte-americana serve como um alerta para o perigo de governos utilizarem seu poder para reescrever a história de acordo com suas conveniências

    Presidente dos EUA, Donald Trump - 13/03/2025 (Foto: REUTERS/Evelyn Hockstein)

    Exclusões de publicações oficiais da internet sobre vacinas, prevenção do HIV, saúde reprodutiva, descobertas sobre a transmissão da gripe aviária, informações sobre o ataque ao Capitólio de 6 de janeiro... Em resumo, mais de cento e dez mil páginas do governo americano foram apagadas desde o retorno de Trump à Casa Branca. Especialistas comparam o processo a uma "queima de livros digitais" e destacam que se trata de um movimento tão assustador quanto impreciso. Um exemplo é o fato de que as agências oficiais excluíram desde materiais sobre apoio a jovens transgêneros na escola até ensino infantil sobre a doença falciforme, que afeta desproporcionalmente a população afrodescendente, para atender a uma ordem oficial do governo: combater o "extremismo de ideologia de gênero"... 

    Esses são apenas alguns exemplos recentemente divulgados por inúmeras notícias acerca da exclusão de documentos escritos, vídeos e outros registros diversos sobre temas considerados progressistas pelo governo norte-americano. Dentre as várias reportagens nos chama atenção o artigo publicado pela revista The New Yorker, intitulado “The Data Hoarders Resisting Trump's Purge” (ou "Os acumuladores de dados que resistem ao expurgo de Trump", em tradução livre), que retrata um cenário alarmante em que a preservação de dados e a memória histórica são ameaçadas por motivações ideológicas da extrema direita que se esforça continuamente para ressignificar, e agora também para apagar, a realidade.

    A narrativa expõe como a administração de Donald Trump, ao priorizar agendas políticas da extrema direita, promoveu um expurgo massivo de informações públicas, eliminando registros essenciais para a compreensão de temas como saúde pública, direitos civis e história recente. Diante desse cenário, a resistência organizada por profissionais de arquivos, bibliotecas, outras instituições de memória e comunidades atentas à segurança da informação emerge como um ato de salvaguarda da memória coletiva e da verdade. Essa discussão ressoa profundamente no contexto brasileiro, especialmente no que diz respeito à política de preservação de arquivos, memória e verdade adotada pelo Governo Lula 3, que busca fortalecer o Arquivo Nacional e o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) como órgãos responsáveis pela gestão e proteção dos arquivos públicos.

    A preservação de arquivos e memória é um pilar fundamental para a construção e manutenção da identidade de uma sociedade, mas é, também, instrumento de resistência ao apagamento histórico. No artigo citado, vemos como a destruição de dados públicos nos Estados Unidos não apenas apaga informações, mas também ameaça a capacidade de futuras gerações de compreenderem seu passado e tomarem decisões informadas. No Brasil, a política de preservação de arquivos adotada pelo atual governo assume o papel de garantir que documentos históricos, registros governamentais e dados públicos sejam protegidos contra a destruição ou a manipulação ideológica. Tal política tem sido construída com a participação da sociedade, que pode contribuir por meio da 2ª Conferência Nacional de Arquivos, prevista para ocorrer esse ano. A conferência será um espaço fundamental para que profissionais de arquivo, gestores públicos, pesquisadores e a população em geral possam debater políticas públicas sobre a temática. O fortalecimento do Arquivo Nacional e do CONARQ como instituições centrais nesse processo é crucial, pois ambas atuam não apenas armazenando e preservando documentos, mas também assegurando que a memória do país seja acessível a todos.

    A experiência norte-americana serve como um alerta para o perigo de governos utilizarem seu poder para reescrever a história de acordo com suas conveniências. No Brasil, onde o passado recente inclui períodos de autoritarismo, censura e ascensão das fake news, a preservação da memória é ainda mais urgente. As políticas públicas em curso no atual governo, ao priorizarem a verdade e a transparência, buscam evitar que eventos como o apagamento de registros da ditadura militar se repitam. Tais iniciativas não apenas fortalecem a democracia, mas também garantem que a sociedade tenha acesso a informações que permitam a construção de uma narrativa histórica precisa e inclusiva.

    Além dos esforços governamentais, cabe destacar a importância dos arquivos comunitários e populares na preservação de dados e memória. Nos Estados Unidos, pessoas e grupos dedicados a lutas históricas das comunidades vulnerabilizadas, demonstram como a mobilização coletiva, numa ação de guerrilha contemporânea, pode ser uma força poderosa contra o apagamento histórico. Esses grupos, muitas vezes formados por cidadãos comuns, assumem a responsabilidade de proteger informações que, de outra forma, seriam perdidas. No Brasil, os arquivos comunitários e populares desempenham um papel semelhante, atuando como guardiões de narrativas que não são priorizadas pelos registros oficiais.

    Ana Flávia Magalhães, Coordenadora Geral do Grupo de Trabalho sobre Arquivos Comunitários da Associação Latino-americana de Arquivos (ALA), destaca que representantes do campo progressista no Brasil precisam estar atentos aos significados das ações de Trump contra políticas que permitiam algum respiro para grupos que lutam por dignidade e garantia de direitos humanos, mas que são reduzidos à conservadora categoria de identitários. Há uma proximidade perigosa entre aqueles que nos EUA e no Brasil desqualificam os termos em que o protagonismo popular se apresenta, algo que fica evidente no caso dos arquivos comunitários. O respeito às diferenças depende fundamentalmente da possibilidade de sabermos lidar com elas sem que isso seja um legitimador de desigualdades.

    Os arquivos comunitários e populares são espaços de resistência e inclusão, onde a memória de populações vulneráveis — como indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, trabalhadores rurais e urbanos, movimentos sociais, dentre outros — é preservada e valorizada. Eles não apenas guardam registros em papel, fotografias, áudios e vídeos, mas também promovem a participação ativa das comunidades na construção de suas próprias histórias e asseguram subsídios para as lutas cotidianas. Essa prática democratiza o acesso à memória e desafia as narrativas hegemônicas, que frequentemente excluem ou distorcem as experiências de grupos minoritários. Uma política de preservação de arquivos inclusiva deve reconhecer e apoiar essas iniciativas, fornecendo recursos, capacitação e infraestrutura para que os arquivos comunitários e populares possam se fortalecer e expandir seu alcance. Além disso, é essencial criar pontes entre esses acervos e o Arquivo Nacional, de modo que as memórias locais e comunitárias sejam integradas à narrativa histórica nacional. 

    A experiência dos "acumuladores de dados" norte-americanos também nos inspira a pensar em soluções tecnológicas para a preservação da memória. No Brasil, iniciativas como a digitalização de acervos e a criação de repositórios on-line acessíveis podem ampliar o impacto dos arquivos comunitários, garantindo que suas histórias sejam conhecidas e compartilhadas por um público mais amplo. Em um país marcado por desigualdades sociais e históricas, os arquivos comunitários e populares são mais do que espaços de guarda de documentos: são territórios de luta e de afirmação identitária. Ao preservar as vozes e experiências daqueles que foram silenciados, eles contribuem para a construção de uma memória coletiva mais justa e plural. A política de preservação dos arquivos e da memória de uma sociedade, em toda a sua complexidade, tem o potencial de não apenas proteger o passado, mas também de garantir que ele sirva como base para um futuro mais democrático e inclusivo.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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