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    Fernando Horta

    Fernando Horta é historiador

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    Se você não pode fraudar uma eleição, fraude o processo de auditoria

    Minha hipótese é que Maria Corina já tinha um banco de dados pré-organizado

    María Corina Machado (Foto: Reuters)

    Por Fernando Horta, PhD – Há um pressuposto lógico em Teoria e Metodologia da História que os alunos de graduação aprendem já no primeiro semestre. Toda vez que uma informação muda de meio não se tem mais 100% de certeza sobre ela. Imagine que eu sei que numa caixa há duas bolas vermelhas. A informação está comigo. Se eu contar a uma outra pessoa, não há meio possível desta pessoa ter 100% de certeza nessa informação. Ela, no máximo, saberá o que eu falei a ela e nunca a informação que tenho. Na História aprendemos desde cedo que precisamos de meios metodológicos para nos certificarmos da veracidade de uma informação, por mais óbvia que ela seja.

    Mas como isso influencia uma eleição?

    Bom, quando eu deposito um voto numa urna, eu sei em quem votei. Mas, depois do depósito ninguém mais terá 100% de certeza do que foi votado. E, como o princípio da democracia moderna é a desindentificação dos votos (para evitar compras, violências, ameaças e etc.), logo, uma vez que depositei o voto, apenas o sistema de depósito é fiador dessa certeza.

    Se tomarmos a forma como os gregos votavam – que eram cascalhos dentro de um tipo específico de urna – uma vez terminada a votação se contam os cascalhos em cada urna, e esse é o sistema lógico de menor incerteza possível. Temos que cuidar apenas para que alguém não consiga empurrar dois cascalhos de uma vez só n avotação, que as urnas estejam completamente vazias de cascalhos, e que a contagem dos votos seja transparente e sem cascalhos que possam ser agregados, ou mãos que possam suprimir os já lá existentes.

    Ocorre que esse sistema não é viável para grandes números de votantes como a história eleitoral do Brasil, desde a república velha até os anos 90, mostra. O número de fraudes na república velha permitiu centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, e quem já participou de um escrutínio físico sabe que até comer cédula de voto tinha escrutinador especialista.

    Assim, todo processo de carregamento de informação depende de confiança social para ser bem-sucedido. Uma eleição – especialmente para países inteiros – é um grande processo de carreamento de informação e, portanto, depende de confiança social. A partir do século XVII nós chamamos essa “confiança social” com a palavra “soberania”. Soberania é a capacidade que um Estado tem de dar a última palavra sobre seus assuntos. É verdade que num mundo globalizado nem os EUA tem soberania plena, eis que mesmo eles precisam de algum nível de consenso internacional para agir.

    Proponho aqui um exercício lógico. Suponha que eu queira fraudar uma eleição como a brasileira. Como deveria proceder? Ou eu tenho capacidade técnica, logística, funcional e financeira de fraudar o sistema, ou eu crio condições de derrubar a confiança sobre o processo eleitoral como um todo.

    Bolsonaro tentou, por todas as maneiras, fraudar as eleições brasileiras. Propôs grupos de militares para “terem acesso” ao código das urnas. Depois, propôs que os militares “supervisionassem” a programação das urnas e até – com tecnologia estrangeira – grampeou e rompeu sigilos de pessoas que ele imaginava tinham acesso a esses meios informacionais para fraudar as urnas. Tudo isso foi negado pelo TSE e, em última instância, pelo STF. Mas Bolsonaro não se deu por vencido, tentou até o final (e é preciso dizer que o fez com a ajuda de uma parte da esquerda) impor um sistema de “auditoria” dos votos para “aumentar a confiança” na eleição. Tudo isso foi negado. O futuro presidiário-presidente chegou a propor uma “contagem paralela” dos votos. Também negada.

    Mas por que tudo isso?

    Porque se você não pode fraudar uma eleição, tente fraudar a auditoria.

    As pessoas em volta de Bolsonaro sabiam que uma eleição depende de confiança e soberania, e se você atacar qualquer uma delas, a eleição cai. Imagine que 99% da eleição brasileira fosse digital e apenas 1% em papelzinho. Mesmo que se conseguisse fraudar o papelzinho, dificilmente isso alteraria o resultado da eleição, correto?

    Falso.

    Se esse 1% feito no papelzinho for parte do processo de auditoria, basta que você fraude a auditoria para quebrar a confiança em toda a eleição. Bolsonaro não precisaria mais do código das urnas, de supervisão militar, de ajuda de “experts” em informática, nem nada. Ele só precisava lançar dúvida sobre qualquer que fosse o meio de auditoria da urna. E foi exatamente por isso que o ministro Barroso e, depois, Alexandre de Moraes negaram isso o tempo todo. A “auditoria” das urnas APÓS a eleição, NÃO AGREGA certeza aos resultados, mas abre flanco para gerar ruptura de confiança e assim destruir uma eleição.

    Agora, corta rápido para o que está acontecendo na Venezuela.

    São 30.026 urnas, cada uma com uma ata física distribuídos entre os 24 estados da Venezuela (23 mais o distrito federal). A eleição ocorre por meio digital, assim o CNE tem o resultado da eleição tão logo o processo de votação termine. E o tamanho dos pacotes de informação que precisam ser trocados com o resultado puro são MUITO MENORES do que os pacotes das atas digitalizadas.

    Este relatório aqui (https://www.netscout.com/blog/asert/venezuelas-election-seen-cyberspace) feito por uma empresa norte-americana com mais de 40 anos no mercado de cibersegurança e com um faturamento de quase 1 bilhão de dólares anuais mostra cinco coisas:

    • Mostra que a Venezuela foi alvo de diversos ataques, com técnicas diferentes, durante todo o mês de julho de 2024. Como se alguém tivesse “testando a água”.
    • Mostra que no dia da eleição (29) a Venezuela (e o CNE em seus principais sites) foram alvo de uma técnica específica de ataques que só funcionam porque conseguem evadir sistemas de defesa cibernéticos específicos. Como se alguém tivesse identificado as fragilidades.
    • Mostra que os ataques entre os dias 28/07 e 01/08 não são ataques sazonais (que aconteçam todos os meses em função de alguma outra coisa) e foram direcionados ao processo eleitoral venezuelano.
    • Mostram que os ataques foram de DDoS e, portanto, direcionados a ACABAR com as comunicações entre os diversos pontos de votação no território venezuelano e o CNE em Caracas. De forma pontual e direcionada.
    • Que o tráfego anormal de dados foi direcionado com um aumento de mais de 10 vezes o fluxo esperado dos sistemas de comunicação.

    Dois dias depois da eleição, a líder da oposição, Maria Corina apresentou um site paralelo com quase 25 mil atas supostamente “digitalizadas”. Fiz meu mestrado e doutorado todo em bancos de dados de documentos digitais e perdi as contas de quantos documentos já digitalizei. Imagino que eu possa dar uns cinco minutos para cada digitalização de uma ata física. Isso porque é preciso checar se a digitalização está legível, se foi bem-feita, se há as informações necessárias, e é um processo que não é simples. Isso significa que precisaríamos de 125 mil minutos para uma pessoa digitalizar tudo isso (sem contar com o tempo de buscar essas atas, problemas de envio, pessoas não capacitadas em diversos pontos ... enfim. Vamos ficar no básico. Seriam necessários mais de 86 dias para toda a digitalização. Claro que com mais pessoas, menor o tempo. Mas ainda assim, acho pouco provável que em 48 horas ela tenha todo esse banco de dados e, ainda por cima, organizado.

    Minha hipótese é que Maria Corina já tinha um banco de dados pré-organizado, feito segundo um processo estatístico que já previa testes de consistência do banco de dados (que vieram “misteriosamente” a aparecer no início da semana passada, feitos por uma Universidade norte-americana) e, assim que as eleições terminaram, ela esperou um tempo (para não despertar suspeitas) e abriu o “banco de dados” publicamente, enquanto ainda o CNE lidava com os problemas tecnológicos do envio das atas digitalizadas para Caracas. É a supremacia tecnológica destruindo a soberania nacional.

    Vários são os vídeos nas redes mostrando ataques e incêndios a locais de votação, feitos pela oposição ANTES DA DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS. Ou seja, eram ataques dirigidos a impossibilitar as auditorias que se sabia seriam atacadas pela própria estratégia da oposição. Isso significa um ataque à soberania e confiança do processo eleitoral venezuelano que, ferido de morte, pouco importa a algumas pessoas o que venha a ser mostrado pelo CNE.

    Para completar o quadro, sabendo que por normal social – derrogada a presunção de verdade do CNE, e derrogada a soberania venezuelana – seria “aceitável” exigir os documentos completos da auditoria eleitoral que nos EUA, por exemplo, nunca foram mostrados e que foram inclusive alvo de acusação de Donald Trump para tentar impugnar a eleição por lá. O Brasil e outros países latino-americanos foram dragados para a armadilha do ataque de desestabilização informacional, enquanto os próprios opositores na Venezuela já se tinham garantido que a auditoria estava impossibilitada por ação terrorista deles. Como, aliás, Jair Bolsonaro tentou aqui.

    Na prática, a estratégia de impugnar as eleições por meio do ataque às auditorias parece ser comum a toda extrema direita mundial. Mas, enquanto nos grupos de fascistas brasileiros não existe capacidade tecnológica, quando se trata de se contrariar interesses de uma potência digital como os EUA a coisa muda de figura. Trocando em miúdos, nenhum dos ajudantes de Bolsonaro tinha qualquer forma de gerar um desgaste nos processos eleitorais brasileiros em meios digitais e tecnológicos, por total falta de capacidade intelectual. (Talvez por isso colocaram a Polícia Rodoviária Federal a dar batida em ônibus, já que essa é a única expertise tecnológica que eles tinham). Já, quando se trata de EUA, a coisa é muito diferente. A Venezuela foi alvo de um ataque massivo de desestabilização informacional que conjugou ataques cibernéticos às estruturas de envio de dados do país, com uma intensa campanha de desinformação nas redes (fakenews), operada de forma transnacional, e que atingiu inclusive parte da audiência brasileira.

    Mas e o Carter Center? Você pode estar perguntando ...

    Presidente Jimmy Carter, certificou as eleições da Venezuela como “as mais perfeitas que ele tinha testemunhado” em 2012. Para, depois de ser atacado internamente, fechar os escritórios da agência em território venezuelano em 2015. Agora, a CEO do centro veio a público e disse duas coisas: por um lado disse que “não poderia certificar como democráticas as eleições na Venezuela” em grande medida por conta das restrições que foram feitas aos candidatos da oposição e aos votantes residentes no exterior e, depois, afirmou que “não havia indícios” de que o banco de dados do CNE tivesse sido atacado.

    Os ataques de DDoS que a Venezuela foi vítimas não são ataques primariamente de invasão e, portanto, muito provavelmente não danificaram os bancos de dados do CNE. Apenas impediram a chegada dos documentos (atas digitalizadas) em tempo suficiente para gerar incerteza. Na prática, a CEO do Carter Center não mentiu nesse ponto, mas também não agregou nada sobre o problema que aqui expus.

    Já, com relação a não dar à eleição na Venezuela o caráter de “democrática” surge uma interessante explicação. No chamado “Acordo de Barbados” (assinado em outubro de 23) existia uma “cláusula secreta” em que os EUA retirariam todas as sanções contra a Venezuela caso as eleições de 24 fossem “democráticas”. Não houve exigência da saída de Maduro. Assim, para não serem obrigados a retirarem as sanções no caso de o presidente Maduro continuar como presidente, os EUA se asseguram que ao menos o Carter Center não reconheça as eleições democráticas. Talvez o presidente Lula ou o ministro Celso Amorim possam confirmar essa cláusula secreta e ajudar a colocar um fim nesse problema todo. Embora eu, como historiador, esteja calejado de saber somente décadas depois que informações negadas “veementemente” por diplomatas e políticos eram – na realidade – verdadeiras.

    No final das contas, por exigir auditoria e não reconhecer a soberania do CNE o Brasil e outros países latinos caem exatamente na armadilha lógica que tinha sido preparada para o próprio Brasil e que o TSE tão habilmente conseguiu evitar por aqui. Aqui não foi aceita qualquer “contagem paralela” e nem qualquer “banco de dados” sem nenhuma credibilidade pública para que os resultados fossem aceitos. Aqui, se preservou a soberania brasileira e o nosso sistema eleitoral sustentou nosso construto político, sendo os EUA o primeiro país estrangeiro a reconhecer a vitória de Lula.

    No caso do país que tem a maior reserva de petróleo do mundo, parece que as coisas são diferentes.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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