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    Paulo Moreira Leite

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    Verdades duradouras na obra de Dodora Arantes

    Obra de Dodora Arantes revela o custo psíquico da militância clandestina e resgata, com coragem e sensibilidade, memórias ocultas da ditadura de 64

    Protesto de mulheres contra a ditadura militar (Foto: Divulgação)

    Trabalho de mestrado de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, psicóloga e psicanalista que assumiu responsabilidades de peso na militância política sob a ditadura militar de 64, “Pacto Re-Velado – Psicanálise e Clandestinidade Política” constitui uma obra que merece mais atenção do que têm recebido até hoje.

    Fruto da memória pessoal de Dodora, acompanhada por depoimentos de personagens do período, “Pacto Re-Velado” (Editora Escuta, 212 páginas) é uma obra tão estranha quanto interessante. Retrata momentos dramáticos da luta contra o regime militar com a intimidade de quem pode falar sobre os fatos do período com razoável conhecimento de causa, pois acompanhou de perto – muitas vezes em sua própria casa – os debates e iniciativas que marcaram a história do país e as disputas políticas do período.

    “Qualquer que seja a avaliação da eficácia política dessa iniciativa,” escreve o psicanalista Renato Mezan, uma das referência do país, em breve texto publicado na orelha, “a originalidade deste livro consiste em tomar o problema pela outra ponta: qual o custo psíquico para o militante?”.

    Mezan acrescenta: “com que meios mantinha-se o equilíbrio emocional, numa situação marcada pelo anonimato forçado, pelo risco de vida permanente e por frustrações mais pesadas do que as que todos temos que suportar?”.

    “Pacto Re-velado” mostra uma época particular e marcante na história política brasileira, aquela em que o regime de 64 abandonava a fantasia de tom moderado dos preparativos do golpe para avançar na construção de uma ditadura escancarada e violenta, pelo massacre da luta social e a tortura de militantes. Enquanto isso, fatias inteiras da juventude entravam na clandestinidade para enfrentar o regime com armas na mão e projetos revolucionários na cabeça.

    O resultado político é sabido – mas não se conhece toda a história, obviamente. Nesse sentido, “Pacto Re-Velado” é uma tentativa duradoura e meritória de esclarecer lacunas e vazios sobre uma época tão conhecida e tão pouco estudada.

    Combinando a sólida formação de psicanalista com os devidos títulos acadêmicos na PUC de São Paulo, associada a uma prolongada experiência militante, de quem vivenciou boa parte das lutas do período, vivenciando inclusive situações que seriam narradas no livro, Dodora reconstrói a teoria ao lado da prática.

    Debate o universo de cinco lideranças maiores da Ação Popular, uma das principais organizações de esquerda revolucionária da época. Fala de homens e mulheres – jovens em grande parte -- que abandonaram a existência de cidadãos de classe média para mergulhar num Brasil remoto e miserável, com a perspectiva de promover uma revolução a partir da realidade de famílias de trabalhadores e deserdados do Nordeste brasileiro.

    “Os ensinamentos de Ho Chi-Min e Mao Tsé-Tung encontram um terreno receptivo entre os militantes da AP,” observa Dodora, dando nomes a um processo de “revolucionarização ideológica” pelo qual homens e mulheres com um perfil social de classe média tornaram-se capazes de abraçar um projeto de existência inteiramente diferente daquela que parecia encomendado por pais, avós e professores.

    O ponto mais estimulante do livro encontra-se no capítulo “Psicanálise e Clandestinidade Política". Aqui, Dodora apresenta argumentos que, combinando áreas diversas do conhecimento e da luta social, ajudam a compreender a motivação de milhares de jovens para abandonar uma existência que obedecia às regras determinadas pela legislação em vigor, sob o ferrão do AI-5, e assumir a vida numa espécie de realidade paralela – documentos frios, endereços desconhecidos – além de cuidados redobrados com a própria segurança e enfrentamentos sem fim.

    “Entrar na clandestinidade significava abrir mão de entrar na legalidade imposta”, observa Haroldo Lima, uma das lideranças históricas do AP, em depoimento para o livro. “Você passava a atuar politicamente defendendo todos os seus pontos de vista, estava numa situação em que era livre para defender suas opiniões nas reuniões, nos congressos, nas viagens”.

    Era um risco imenso, como se veria com o tempo, pelo qual milhares de vidas foram sacrificadas, num processo desigual, criminoso e injusto, pelo qual o regime enfrenta pesada condenação, dentro e fora do país, até hoje.

    Num parágrafo que combina noções típicas da luta política com conceitos próprios da psicanálise, Dodora estabelece distinções úteis para o que pretende dizer.

    Contrariando o lugar-comum que costuma apresentar a militância política do período como uma espécie de pesadelo sem fim, distingue formas diferentes de prazer na luta do período, numa escala que vai desde o prazer máximo (“a derrota do inimigo, provavelmente também o aniquilamento”), chegando à “satisfação possível”, “ao prazer suficiente” e assim por diante.

    Num comentário pertinente sobre o livro, a professora Maria Vitória Benevides esclarece: o livro descreve "um opção de luta" e não uma "opção de fuga".

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    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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